quarta-feira, 25 de abril de 2012

(crítica – disco) THEESatisfaction – Awe Naturale (2012; Sub Pop Records, EUA)

























Em uma época em que o hip hop parece ter se desdobrado não só na diversidade de manifestações do rap americano, como também na auspiciosa proliferação ao redor do mundo (sobretudo na África e na América Latina), é no mínimo curioso que este disco apareça justamente pelas vias acinzentadas da Sub Pop. Parceiras de Sa-Ra Creative Partners e do Shabazz Palaces (que contaram com os backing vocals das moças no incensado Black Up, também editado pela Sub Pop), Stasia Irons e Catherine Harris-White compartilham o gosto por uma certa inflexão da cultura negra norte-americana, expressa no visual andrógino, colorido e elegante, como se a dupla figurasse na capa de 3 Feet High and Rising. Mas nem tudo é cor e glamour em Awe Naturale, primeiro disco da dupla THEESatisfaction. 



Como 3 Feet… e The Low End Theory, Awe Naturale sobressai pela harmoniosa combinação de muitos elementos: melodias simples convivem com harmonias incomuns, tapeçaria de vozes se sobrepõe à sutileza das percussões, a doçura dos vocais contrastam com as referências bem dosadas à luxúria soul de Marvin Gaye e às experiências antiquárias de Madlib. Mas esse aparente imbroglio, por incrível que pareça, resulta em um trabalho coeso, através de composições que sintetizam a candura easy listening do cool jazz, a pegada firme do rap e o minimalismo caro ao espírito da época. Repetições, timbres suaves (porém estranhos), dissonâncias discretas, quase imperceptíveis: Awe Naturale reivindica dois espaços incomuns no hip hop, entre a melodia pop e um grau de abstração entre o rap e suas fronteiras.

Da vinheta festiva “Awe” até a “impostura” de “naturalE”, Awe Naturale se mantém dentro de um equilíbrio difícil de sustentar: é jazzy sem ser Berkley (como na incrível “Existinct”); é arriscado sem ser pretensioso (como em “Crash”); se utiliza dos sons com propriedade, mesmo quando parece que vai desandar – como na gratuidade de “Enchantruss”, ou na vibe disco de “QueenS”

Pergunta-se: na última década, à exceção de Madlib e Georgia Anne Muldrow, quais os artistas do gênero que retomaram, inesperada e criativamente, a infusão jazzy que caracterizou o rap inovador de Tribe Called Quest e do De La Soul? Não posso garantir que os trinta minutos de Awe Naturale constituam uma resposta, mas que ela tenha vindo de Seattle já é motivo suficiente para surpresa. Porém, antes de mais nada, Awe Naturale é uma audição prazerosa e altamente viciante, que enfileira pequenos clássicos (refinados, discretos), como “Sweat” (Theo Parrish?), “God”, “Bitch” (matador!), “Deeper” (me lembrou Janelle Monáe), “Juiced”, et cetera. 

Bernardo Oliveira

quinta-feira, 12 de abril de 2012

(crítica – disco) Sidi Touré – Koïma (2012; Thrill Jockey, EUA [Mali])

























No último dia 06, o Mali foi palco de um golpe militar, poucos dias antes do lançamento de Koïma. Consta que um motim no quartel central do país, depôs o presidente Amadou Toumani Touré, enquanto o movimento separatista tuaregue MNLA tomava parte de Gao com ajuda de islamistas radicais, reivindicando seu estado independente, chamado “Azawad”. Temo não possuir estofo suficiente para discorrer com precisão sobre o tema, de modo que, para evitar equívocos, cito o historiador Gregory Mann, especializado em história da África francófona.

“Seria difícil exagerar a bagunça que foi feita do Mali na última quinzena. Um golpe de surpresa, uma rebelião acelerada que dividiu o país em dois, e um embargo econômico perpetrado por vizinhos do país sem litoral, têm castigado o que teria sido, até recentemente, uma história de sucesso no Oeste Africano. Acrescente-se a isso uma crise alimentar iminente na região nordeste, e temos uma bela bagunça! Mas o mundo não pode voltar atrás: o Mali é muito importante para amortizar os 20 anos de democracia no país como uma experiência fracassada.”

Os tuaregues, os mesmos que foram massacrados por forças militares francesas em meados da década de 40, reivindicam seu estado independente, dividindo o país, multiplicando conflitos, fragmentando histórias… Características comuns a estados unificados à forceps pela violência colonialista e federalista. Talvez por isso, e não pelo golpe de estado, que o lançamento de Koïma adquire um significado especial. Sua música testemunha que há nesta “bagunça”, localizada em um pedaço de terra ficticiamente delimitado, uma cultura viva e intercambiante,apesar das intempéries históricas. Esta cultura se exprime de forma brilhante nas canções, arranjos e sonoridades de Koïma.

A beleza do trabalho se deve à contribuição direta da cultura songhäi e da habilidade específica de Touré de conduzir seu ensemble e as canções. Acompanhado por um quarteto formado por violão, calabash, soukou (o violino malinês) e uma cantora, Touré apresenta uma outra faceta de sua música. Koïma difere bastante da beleza intimista e espontânea de Sahel Folk, lançado ano passado, soando como um passeio pelas ruas de Gao, através do entrelaçamento de arabescos do soukou e do violão e da percussão extremamente bem marcada. Pode ser encarado também como um songbook, uma seleção de canções arranjadas com sobriedade, sem prejuízo para a beleza idiossincrática de cada composição. Destaco “Ni see ay ga done”, “Woy tiladio” (em 3/4) e “Chacun Sa Chance” e “Tondi Karaa” como as que melhor representam a contribuição de Touré à apresentação e desenvolvimento da tradição songhäi.


Sidi Touré - Ni See Ay Ga Done from Thrill Jockey Records on Vimeo.

Sidi Touré e sua música nada podem contra a “bagunça” em seu país, assim como Fela Kuti não pôde sustentar sua luta contra a ditadura nigeriana, nem Bob Marley converter sua música “revolucionária” (com aspas, por favor) em melhorias efetivas para os jamaicanos. Mas, ao mesmo tempo, somente através da arte e dos artistas, tomados como grandes tipos culturais, se pode consolidar exemplos de que a dinâmica da concórdia e da criação podem servir de exemplo para todo um povo.

Bernardo Oliveira