segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Scott Walker – Bish Bosch (2012; 4AD, Reino Unido)



























“If shit were music,
you’d be a brass band…”
[Scott Walker, “SDSS1416+13B (Zercon, A Flagpole Sitter)”]


I. “sonic fiction”

Dois aspectos se encontram intimamente ligados em Bish Bosch, novo trabalho de Scott Walker. Primeiramente, é o estatuto do corpo, problematizado através de uma relação determinada entre os sons e as palavras. Os sons dos corpos (peidos, suspiros, gemidos), mas também a conexão entre os diversos corpos, sejam históricos, biológicos ou culturais. Em segundo lugar, é a dimensão teatral da vida que nos permite traçar contornos e conexões atemporais com tudo o que lhe diz respeito, desprovida de distinções radicais entre a natureza e a cultura. O corpo e o teatro: se há hoje um autor capaz de produzir a convergência entre as múltiplas possibilidades evocadas por esta relação, este autor se chama Scott Walker e Bish Bosch é um espaço privilegiado para que elabore sua obra-prima.

Em uma entrevista recente, realizada em virtude do lançamento do disco, David Toop advertia o leitor para o conteúdo esfíngico da trama: “Bish Bosch is not easy to get into, but why should it be?” Para ele, a senha para a complexidade se dá a partir da contradição, característica que dificilmente se pode negar diante das faixas do disco: “…a lot of contradictions (…) there are no mysteries solved.” Ora, mirando atentamente para “O Jardim das Delícias Terrenas”, a obra mais conhecida do pintor holandês Hieronymus Bosch, pode-se tomar consciência do mistério a que se refere Toop. Tal concepção do mistério subjaz sua trama poética, em particular com relação aos procedimentos estéticos e ao tema das relações imprevisíveis entre os corpos, sejam territoriais (Dinamarca, Hawai, os Alpes), culturais (os gregos, Roma), míticos e humanos (Gorbachev, Átila, o Huno). Não dizendo respeito ao mito encoberto, nem ao assassino oculto, o primeiro mistério de Bish Bosch é o corpo em suas mais variadas relações— “o que pode um corpo…”, perguntava no século XVII outro holandês, Baruch de Espinosa. 

Por outro lado, guardadas as devidas proporções de tempo, intenção e consistência, Bish Bosch indica uma inclinação semelhante a que perfaz Tragedy (2011) de Julia Holter. A obra de Holter obtém uma estrutura própria em diálogo com a tragédia grega Hipólito, de Eurípedes, ao passo que Bish Bosch se constitui a partir de um efeito semelhante. Pode-se extrair deste parentesco a consolidação de uma certa inclinação contemporânea à busca de referências e matéria-prima fora do espectro da produção musical — tanto em relação aos procedimentos de produção, como no que diz respeito às perspectivas conceituais e filosóficas. Ou, em último caso, podemos falar de uma obra atenta ao teatro como metáfora da vida, um teatro que convoca o leitor a reconstituir, à sua maneira, as imagens cifradas pelo autor. Com a característica diferencial de partir não de uma obra somente, mas de uma miríade de referências que vão desde o pintor holandês que contribui para o título, passando por diversos períodos históricos, considerações e metáforas a respeito da história recente, da biologia molecular, das ciências médicas, da Bíblia…
















II. “…a lousy a life”

Assim que se inicia Bish Bosch, o tom de precaução que batiza a primeira faixa se agiganta. Os tambores retumbam violentamente, servindo de prenúncio às reviravoltas climáticas que se anunciam. À moda de um ditirambo dionisíaco, “See You Don't Bump His Head” se concentra sobre a imagem dissonante que se manifesta nos versos do coro:

“While plucking feathers
From a swan song…”

Alguém pode interpretá-los como uma consideração irônica do autor, com a intenção de anunciar que está mais vivo do que nunca. A imagem sugestiva, a própria consideração depositada sobre a imagem de um “canto do cisne depenado”, indica que podemos ir além. Na sequência, os primeiros versos de “Corps De Blah?”, indicam que trata-se não de um processo de reação ou redenção, mas de algo que se debate conflituosamente, algo que aponta para uma inclinação subterrânea, simultânea à morte e à fundação imaginária de mundos possíveis. Algo, enfim, que joga um lance de dados com o abismo e aponta para a instabilidade perigosa entre o estado de vigília e a inconsciência: 

“Hence went and cracked
An atom age old egg
Beneath my nose,
The sky-clads ash 
With jettisoning the roost.
I’m bumping into leghorns in the darkness.
Excuse me.
Dear god, excuse me…”

Um ovo quebra, dentes queimando, machados de lâmina dupla, genitália. Ao longo da audição, percebe-se que o autor convoca os sons, os músicos, as palavras e até mesmo o ouvinte-leitor para experimentar das agruras e delícias de suas alegorias, ainda que esse convite os conduza inevitavelmente a experiência-limite do fígado devorado incenssantemente pelo reino dos mitos e das coisas. Em contrapartida ao chamado geral, a consciência individual como que se esvai…

“A sphincters tooting our tune.
If only ‘I’ could pick you.
Wed slosh, wed slide, wed cling
round a kelloggs floor.
His severed, yellow-eyes 
Weeping DA-DA-DA, DA-DA-DA.
From the spit-roast smoke curling.
DA-DA-DA
DA-DA-DA.
‘RACK OFF!’”

Não são apenas os sons de peidos que eclodem, a castigar o gosto e o senso histórico do ouvinte (afinal, já não estamos no século XX…), mas acima de tudo a emersão do palavrório, das entrelinhas, torrentes de palavras e entrepalavras de sentido fluido e maleável, que promovem uma experiência poética radical. Contribuem para a empreitada, a canção de Purcell e Kurtag, Os Cantos de Ezra Pound, as imagens tenebrosas de Lautréamont e da terra devastada de Eliot, o heavy metal, o samba e uma utilização dos instrumentos que remete à experimentação ao mesmo tempo onírica e realista da musique concrète. Além de Walker himself, o bardo…
















III. “job done”

Bish Bosch começou a ser escrito em 2009, enquanto Walker compunha a trilha para o balé Duet for One Voice da companhia ROH2. “Bosch” se refere ao célebre pintor holandês; “bish” é corruptela de “bitch”; mas, no geral, “bish bosch” quer dizer “job done”, “trabalho finalizado”. Acrescente-se a esta informação, uma derivação mítica cunhada pelo próprio Walker: “I was thinking about making the title refer to a mythological, all-encompassing, giant woman artist.” Revestida pela força poética do mito, emerge a figura de uma “mulher artista gigante”, capaz de reaver a sensação de poder e redenção diante de um mundo que apodrece a olhos vistos. Preconizada de forma delirante pelo artista a partir de uma expressão cotidiana, a “mulher gigante” também se impõe como efígie de um mundo natimorto, que se movimenta à custa de sobressaltos, tragédias, genocídios — e “alguma literatura”… Como Bosch, mas também como Rembrandt, o corpo humano é elemento de tenebrosas operações que circunscrevem o corpo doente e moribundo da natureza, da ciência, da cultura e, é claro, da arte.

Produzido por Peter Walsh, Bish Bosch foi gravado por Ian Thomas (bateria), Hugh Burns e James Stevenson (guitarras), Alasdair Malloy (percussão) e John Giblin (baixo), além de contar com as participações de Guy Barker (trumpete) e BJ Cole (pedal steel). As orquestrações são de responsabilidade do diretor musical e tecladista Mark Warman. Instrumentistas comprometidos, primeiramente, em levar a cabo uma iniciativa de cunho sonoro: “os sons vestem as palavras” (“It's just dressing the lyrics”). Não estamos diante de arranjos que vestem canções, mas de uma pesquisa sonora em franco diálogo com as evocações da poesia delirante de Walker. Para fruir a riqueza de Bish Bosch, convém ao ouvinte entregar-se com atenção ao percurso, como quem se entrega a uma experiência entre a performance e a literatura. A cada instante uma modulação situada entre o caos e o silêncio, mas, na maioria das vezes, manifestando confluências inusitadas entre sons e palavras. 

Em “Corps de Blah”, por exemplo, as referências bíbilicas misturam-se a estranhas alusões às ciências médicas (“Eukaryotic gobbler of gavotte, knee to…”), considerações acerca de Tyrol, estado austríaco para onde foram muitos criminosos da segunda guerra (“vacant veins of Sterzing…”), uma série de referências a objetos, sensações, sinestesia radical. Para revestir os versos, Walker e sua banda recorrem a uma série de artifícios e texturas com variações imprevisíveis. Seu canto lacrimoso se inicia, solitário, anunciando um ovo que se rompe e revela o mal: “Dear god, excuse me.” Ruídos em baixo volume, estridentes, cordas e graves soturnos ambientam a lírica de uma terra devastada. De repente, a bateria marcial irrompe, combinada a algo parecido com uma cuíca grave e rouca, sons de animais, sopros que desenham melodias débeis. Silêncio. (Aliás, o silêncio em Bish Bosch nunca é simplesmente a ausência de som, se não que irrompe preenchido de sentido: fôlego, retomada, momento exitante…) Os sons incômodos dos peidos, combinados com percussão e apitos, servem para vestir os versos infames citados acima: “A sphincters tooting our tune…” Segue-se uma sequência de eventos sonoros que vão desde solos de viola, sons de chuva, drones, grooves, solos de xilofone, etc. 

Tomemos o epicentro do álbum, a faixa “SDSS14+13B (Zercon, A Flagpole Sitter)”. As justaposições indicam o cruzamento semiótico de muitas referências. Novamente o silêncio opera o elemento dramático. Zercon, “anão mouro”, guardião da bandeira na corte de Átila, o Huno, se apresenta: 

“This is my job,
I don’t come around and put out
your red light when you work…”

Referências à política do século XX (“Eunuch Ron” Reagan e “Gorbi”), a impérios antigos e ditaduras modernas (grego, romano, huno, galês, britânico e americano), e à depravação na corte de Átila, não escondem o centro gravitacional da faixa: trata-se de uma alusão a condição pós-moderna, tomada comumente como a perda generalizada de referência ou o enfraquecimento da tradição ocidental, mas que na verdade diz respeito a proliferação do conflito entre diversas perspectivas culturais. Em mais de vinte minutos de faixa, Walker conduz os sons em ligação contrastante com justaposições poéticas, nitidamente aparentadas com a logopéia de Ezra Pound. Batidas marciais fornecem o contorno sonoro à declamação dos números romanos, ao passo que a orquestra produz, segundo Walker, “ruídos e texturas, ou grandes pilares de sons, ao invés de arranjos”.

Outros destaques do disco remetem ao mesmo estatuto sonoro-dramático: as crepitações percussivas de “Pilgrim”, a impressionante dinâmica dramática de “Epizootics!”, a escola de samba em “Phrasing” (“pain is not alone”), o coro de facas e zumbidos em “Tar”… Se é bem verdade que trata-se aqui mais de uma “ficção sonora” do que um trabalho exclusivamente musical; se se pode afirmá-lo igualmente como uma peça que desafia a própria noção de “canção”, manifestando-se sob o formato de uma ópera ou de um “canto” musicado; e, por fim, se compreendermos que trata-se de um esforço completamente distinto dos trabalhos anteriores de Walker; então pode-se atribuir a Bish Bosch o caráter simultâneo de um apanágio e de um rompante original, mesmo em relação à história de seu autor.

Ora, em que medida o trabalho se insere nesse contexto musical permeado por múltiplos interesses, no qual o teatro – a dimensão do jogo teatral — se torna referência para a criação musical? Poderíamos ir além, perguntando em que medida seu trabalho nos últimos 30 anos vem se tornando referência para procedimentos híbridos, sobretudo a partir de Climate of Hunter (1984), Tilt (1995) e The Drift (2006)? É certo que Walker sobreviveu a quase todos os artistas que influenciou, o que nos autorizaria a atribuir-lhe esta propensão à demiurgia. Mas convém manter a singularidade de Bish Bosch, mesmo em relação ao autor que a tornou possível. Em uma época em que a performance e as demais possibilidades de criação artística são justapostas, fustigando os gostos mais conservadores, Bish Bosch pode até soar excessivo, disforme, doidivanas para além do tolerável. Mas dificilmente se pode negar que manifesta de forma contundente algo raro neste mundo tomado por conflitos e degeneração, qual seja: a decantada e indomável necessidade de “ir-além”. 

Bernardo Oliveira

***

























Em 2000, quando do lançamento do seu filme Branca de Neve, fizeram uma breve entrevista com o cineasta português João César Monteiro. A questão central era a maneira como o público reagiria ao filme, que não fazia nenhuma concessão ao gosto médio e violava um princípio aparentemente fundamental do cinema (o filme é quase que apenas a exibição da tela preta, com voz e trilha sonora, isso por mais de hora e meia). Monteiro, sem hesitar, respondeu ao entrevistador "Eu quero que o público Português se foda!".

Essa atitude é oportuna para comentar Bish Bosch, o novo álbum de Scott Walker, pois acho que revela uma das coisas mais interessantes em um artista. Como fruidor de arte, busco encontrar artistas que pouco se importem para o que eu pense e façam lá o negócio deles; se vou me interessar pelo que fazem ou não são outros quinhentos. Acredito que o negócio começa a ficar rico quando o interesse da audiência não está projetado lá, no nascedouro da obra. O que modula o exercício artístico não é o desejo de dar afago no indiferenciado público, ou de uma suposta satisfação que o artista deva a seus clientes. Em alguma medida todo produtor de arte quer ser ouvido, lido, comentado - mas "Que o público se foda!" é o mantra de quem faz Grande Arte. Bish Bosch é isso, é Grande Arte. É um trabalho que, por um lado, é muito fértil, propiciador de interpretações: o álbum excita e estimula a produção discursiva, a gente quer falar a respeito do disco, quer comentar as faixas. E, por outro lado, é uma esfinge, enigmático e cruel, monstro devorador e gerador de perplexidade. Que diabo, penso, vou falar sobre esse disco? Como dar sentido a essa parafernália de coisas díspares, faixas cheias de tentáculos, doidera? E esse negócio de usar o som do pum nas faixas, de soltar pum na música?

Por essa via, algo como o que aparece no clip de "Epizootics!" atravessa o álbum inteiro. O que vemos no clip é uma perturbação celebrada por um artista que está à vontade com seu ofício e seus instrumentos e que calha de ser também um artista sem conforto. Um disco revivalista de Walker, soltando o vozeirão pra standards e com arranjos luxuosos de cordas provavelmente ia bombar. Mas ao invés disso temos esse objeto não-identificado. Há, em cada faixa, um teatro do absurdo em operação, e o palco no qual os dramas se realizam é o espaço da canção. A membrana sendo esticada aqui são os limites da canção, e tudo tem lugar na dramatização do canto que sempre foi peculiar à excelência de Walker. Para isso, vale tudo: instrumentos insólitos, viradas abruptas, metais em febre a la Scelsi, pum.

Na terra do ostranenie, Scott Walker é rei.

Antonio Marcos Pereira