Um método particular de composição ou execução instrumental, a elaboração de uma concepção musical consistente ou o refinamento da percepção do improviso: técnicas e ideias que se constituem às custas de experiências contumazes, obsessivas. O “modelo”, o “mestre”, o “pupilo”, isto é, as categorias consensuais da pedagogia moderna, não fornecem as pistas mais adequadas para experimentar a trôpega violência do artista singular, e, por conseguinte, compreender seu percurso próprio, repleto de pequenas conquistas e fracassos preciosos, técnicas e procedimentos que derivam de uma obsessão cotidiana. Deste percurso repleto de dificuldades nasce o iconoclasta.
Roscoe Mitchell é, sem dúvida, um desses artistas, capazes de perseguir um conjunto de ideias por anos a fio, elas mesmas exigindo novas inflexões de seu autor, decompondo-se no tempo, redefinindo-se a cada trabalho, seja em seu maior projeto, o Art Ensemble of Chicago, seja em seus trabalhos solo.
Desde o primeiro disco, Sound, lançado em 1966, o trabalho de Mitchell vem se caracterizando por uma síntese de várias pesquisas. Uma que aposta no horizonte aberto do atonalismo e do tempo-livre, entre o free jazz e o rigor da composição europeia. Momentos áridos, silêncio e poucos elementos alternam-se com ruidosas erupções instrumentais. Um trato diferenciado à percussão, preenchida por objetos e miuçalhas diversas. Climas, ambientes sonoros, dramas e tensões: mais do que a “música”, “o som”; mais do que formas estéticas, o povo, a rua encrustada no jogo do erro e do acerto, das práticas e expectativas. A música de Roscoe Mitchell abdica do formalismo estético e abraça as forças vitais.
Duets With Tyshawn Sorey and Special Guest Hugh Ragin traz Mitchell e o baterista e percussionista Tyshawn Sorey conduzindo a instrumentação de forma cuidadosa e eloquente: um tema, um ritmo, alguns ruídos e algo estala no ar. Depois, a paciente exploração do terreno sonoro, ou a reviravolta que precede o excesso de notas e a harmonia completamente atonal do piano, como em “A Game of Catch”. As vinhetas melódico-percussivas (“The Horn”, “Meadows” e “Windows with a view”) pontuam faixas longas, como “The Way Home” (cercada pelo aspecto onírico das sobreposições harmônicas), “A Cactus And A Rose” (reparem nos desequilíbrios entre a profusão de graves da percussão e do sax barítono), “Bells in the Air” (onde percebe-se o contraste entre o lirismo do sax e da flauta com os ruídos de papel e pedaços de ferro), e “Scrunch”, com sua percussão retumbante e o saxofone, ora pontuando o ritmo, ora solando freneticamente. Destaco também as notas agudas do saxofone, caçando desesperadamente o timbre metálico dos sinos em "Waves", e o ostinato em “Chant”, bem como a forma caótica que toma seus últimos minutos.
Convém enfatizar a elaboração concentrada e paciente do improviso, que requer que os músicos desenvolvam um certo grau de “clarividência”, tornando o diálogo entre instrumentos cada vez mais consistente e eficaz. Em suma, perseguir a expressão do descontrole lançando mão de um alto grau de controle.
Até o presente momento, 2013 nos trouxe boas colaborações em dupla, como Bill Orcut e Chris Corsano, Merzbow e Oren Ambarchi, Thiago França e Kiko Dinucci, Keith Rowe & Graham Lambkin e, sobretudo, Ikue Mori & Steve Noble, com o sensacional Prediction and Warning. Porém, entre todos esses duetos, o disco de Mitchell e Sorey sobressai. Ora, não me parecerá de todo injusto se alguém argumentar que trata-se aqui de “mais do mesmo”, pois de fato estão presentes todos os elementos característicos listados acima, perfazendo cerca de 50 anos de carreira. Mas com que concentração! Com que entrega, precisão, rigor e suingue. Com que força de expressão se reitera aqui uma pesquisa, décadas a fio insistindo em promover o desmantelamento de todo formalismo, de toda constrição acadêmica, liberando o jazz das armadilhas que ele mesmo se impôs ao investir na cristalização, por exemplo, de uma grade rítmica ou um tipo de harmonização. Duets With Tyshawn Sorey ratifica a ideia de que, mais do que um compositor e instrumentista inigualável, Mitchell resiste como inspiração e reserva criativa aparentemente inesgotável.