terça-feira, 29 de abril de 2014

Malawi Mouse Boys – Dirt is Good (2014; IRL, Malawi/Reino Unido)

























Um álbum lançado este ano na República do Malauí é capaz de provocar elucubrações insuspeitas. Uma delas, por exemplo, sugere que basta ouvir as suas primeiras notas – e tendo em mente o seu título – para se lançar a um esforço de adivinhação de qual seria o destino do rock caso suas diretrizes iniciais fossem outras. Ou, indo mais direto ao ponto: se, em vez do rock’n’roll clássico formatado por Chuck Berry, o universo criativo de que tratamos fosse mais guiado pelo senso rítmico de Bo Diddley, artista cuja influência, apesar de imensa entre músicos, ainda não se traduz em suficiente reconhecimento crítico ou adesão de público. O elemento em questão é a sujeira, a mesma que nomeia o segundo álbum dos Malawi Mouse Boys. Neste, trata-se de apenas um dos seus ingredientes sonoros. Um outro é a presença simultânea da linha melódica em arranjos simples que contam com assovios e corais precisos que recortam as suas 15 faixas. Daí a menção a Bo Diddley, bússola de tantos artistas que, na tradição pop, deixaram-se nortear pelo apreço à estrutura melódica e, ao mesmo tempo, pela experimentação sônica: The, Kinks, The Sonics, The Jimi Hendrix Experience, The Velvet Underground, The Jesus & Mary Chain etc. (Aos não iniciados em Diddley, recomenda-se começar pela encardida “Mumblin’ Guitar”, de 1959.)

Realmente, essa é apenas uma das referências que Dirt is Good evoca. Há muito mais que pode vir daí.

Sou obrigado a admitir que a cultura musical do Malauí, localizado na África Oriental (Malauí significa “sol nascente” em cinyanja, idioma local do tronco linguístico banto), não é muito frequente nas minhas pesquisas. Do país, conhecia a coletânea Music Of Malawi – From Lake Malawi To The Zambezi, interessante amostragem do repertório tradicional nativo que, caso consultado, o etnocentrismo ocidental certamente definiria como “folclórico”. Mas nada mais natural que a minha ignorância: a África, por si só, transcende desde sempre as nossas limitações em saber sobre ela – e, por extensão, sobre nós mesmos, que dela viemos todos.



Os Malawi Mouse Boys são vendedores de beira de estrada da iguaria (assada no espeto) que trazem no nome. Nos intervalos do expediente, executam o seu tipo peculiar de gospel com instrumentos confeccionados artesanalmente e outros, improvisados – uma lata de refrigerante, por exemplo, pode ganhar uma inusitada função percussiva. Uma dessas sessões ao ar livre foi assistida pelo produtor inglês Ian Brennan, que logo decidiu gravá-los. Sob o critério da precariedade técnica e do decorrente senso de improviso que ela inspira, podemos traçar certo paralelo entre a banda e uma outra, um pouco mais conhecida: a congolesa Staff Benda Bilili. 

O estilo coral ao modo gospel dos Malawi Mouse Boys lembra a cultura musical jive da África do Sul. A relativa proximidade geográfica explicaria a afinidade? Talvez. Muito provavelmente o fator étnico não conte tanto se considerarmos que a religiosidade é o motor criativo dos músicos. Afinal, mais evangelizador que os títulos traduzidos de algumas das faixas de Dirt is Good, só mesmo o auge de uma pregação frenética: “Love Of Jesus”, To Be Saved”, “My Lord”, I Like That Jesus Loves” e “My Sins Are More”. Apesar das diferenças sonoras, a comparação do trabalho da banda com o das veteranas Lijadu Sisters, que retornam aos palcos este ano pelas mãos de Damon Albarn, do Blur, é inevitável. As irmãs gêmeas da Nigéria também usam a música como veículo para render louvor a Cristo, só que em composições de rítmica iorubá que não dispensam sintetizadores e agressivas guitarras ligadas em linha.



(Que se diga uma coisa: Dirt is Good é um álbum para ser ouvido sempre na íntegra. Sua coesão é nítida. Portanto, nesta resenha, preferi não tratar de cada faixa em particular.) 

Os Malawi Mouse Boys têm uma flagrante vocação pop que nem de longe flerta com a estética da world music (afinal, o que é este rótulo além da tentativa de pasteurizar toda música produzida na África desde os anos 1980, e cujo prazo de validade infelizmente ainda não expirou?). E essa vocação não abre mão do despojamento que é a condição do seu ambiente original. Muito pelo contrário: ao que tudo indica, a banda grava suas composições na própria comunidade (ou na fatal “aldeia”, como preferem os focloristas?). É preciso dizer que Ian Brenner tem seu mérito ao registrá-las tal como as ouviu pela primeira vez. Mas não se deixe enganar por aquilo que se poderia tomar por “primitivismo”. Artistas e comerciantes de estrada que são, os Malawi Mouse Boys parecem estar bem mais sintonizados com o largo espectro da indústria cultural do que se desconfia. Sua capacidade de diálogo é invulgar. Sem dúvida, é aí que reside a sua verve. E ela é descomunal.

Lucio Branco