domingo, 4 de setembro de 2011

(artigo) A Música Pós-Industrial Brasileira

(Artigo publicado hoje, 04 de setembro, no Diário do Nordeste, de Fortaleza)  

Crítico de música traça um paralelo histórico das últimas mudanças ocorridas na música brasileira. Ele destaca alguns dos motivos e personagens que vêm ajudando a definir o cenário atual

Em "Incidente em Antares", Érico Veríssimo descreve a saga de duas famílias que disputam o poder no Sul do Brasil: dois lados de uma mesma moeda. Trata-se de um dos romances mais sarcásticos da literatura brasileira, que denuncia, entre outras vicissitudes, a tendência nacional em reduzir a pluralidade de conflitos a algumas correntes predominantes, geralmente opostas. De forma semelhante, faz parte do ambiente intelectual brasileiro o hábito de perceber o mundo através da força embriagante das oposições simétricas. Esta tendência migrou para a República, e perdura nos dias de hoje, ainda que mal das pernas. Os desmentidos cotidianos evidenciam que as contradições brasileiras são mais intrincadas do que os "fla-flus" a que estamos habituados, principalmente no plano da cultura.

Foi assim que, durante o Festival da Canção de 1967, criou-se uma divergência entre o grupo tropicalista e os artistas que catalisavam o interesse das correntes nacionalistas de esquerda, simpatizantes do legado da Bossa Nova e do Centro de Cultura Popular da UNE. De um lado, Caetano, Gil, Os Mutantes; do outro, Sérgio Ricardo, Edu Lobo e Chico Buarque.

O filme "Uma Noite em 67" pôs lente de aumento sobre esse evento, trazendo à tona uma perspectiva mais heterodoxa. Ao ser vaiado, o cantor Sérgio Ricardo quebrou seu violão à moda de Pete Townshend, o roqueiro Roberto Carlos cantou um samba ("Maria, Carnaval e Cinzas") e mesmo o jornalista Sérgio Cabral, jurado do concurso e notório defensor das "glórias nacionais", rendeu-se aos encantos da guitarra elétrica…


Contudo, no calor do momento — atiçada pela intervenção da TV Tupi e da conturbada situação política da época -, a expressão "chicolatria" foi criada, se não me engano, pelo poeta Augusto de Campos. É evidente que não se trata de uma crítica à obra de Chico Buarque, mas à sua cooptação pela xenofobia "avant la lettre" que impregnava a mentalidade de setores da esquerda brasileira.

A "chicolatria" não só indicava o caráter do ambiente cultural que elegeu Chico Buarque de Hollanda como o oponente adequado às incursões tropicalistas, como também ressoava um prolongamento do conservadorismo nacionalista, outrora alinhado a correntes políticas em nada progressistas - o Integralismo, por exemplo.

MPB
As décadas seguintes, porém, mostraram que entre Chico Buarque e os tropicalistas não havia exatamente uma distância ideológica. Chico e Caetano gravaram discos e programas de TV, declararam admiração mútua, e seus álbuns, diversos na forma e no conteúdo, foram abrigados sob um rótulo vago, mas apaziguador e comercialmente adequado: MPB.

Há muito que se observa no ambiente intelectual brasileiro, particularmente vinculado aos estudos culturais, a necessidade de um maior enfrentamento das questões que surgem com a velocidade das inovações técnicas e científicas. Ficamos confortavelmente ancorados em um território de temas consolidados, deixando de lado o profundo caráter ideológico de siglas como a MPB e a dinâmica da atualidade.

Não há dúvidas de que os acontecimentos ocorridos durante a década de 60, ainda hoje fornecem as balizas para quem deseja pensar a música no Brasil - quando se fala, por exemplo, em "samba de raiz" em oposição ao "samba paulista", supostamente mais comercial. Algumas vezes, tenho a sensação de que aquela noite de 67 ainda não acabou, mas, ao mesmo tempo, ela parece não só distante, como também desproporcional em relação à música que é composta, gravada, produzida e veiculada hoje no Brasil.

Contexto atual
A última década viu surgir uma série de procedimentos e condições de produção musical, alimentadas pelo vertiginoso desenvolvimento dos programas de gravação e edição digital. Pois este aparato técnico ocasionou um período extremamente fértil e controverso da produção musical brasileira, cujo desenrolar aponta para reconfiguração das relações de poder e da paisagem estética que vigoraram no País até o fim do século passado.

O surgimento dos estúdios caseiros (home studios) permitiu que muitos artistas gravassem seus trabalhos sem, necessariamente, assinar contrato com uma gravadora. Nordestinos e sulistas não são obrigados a migrar para o Sudeste, como nas décadas passadas, mas gravam em seu próprio território, utilizando-se das referências locais.

Pouco depois, veio a internet fechar o ciclo virtuoso: além de produzir, o artista ainda pode negociar seu trabalho diretamente com o público. Parece evidente que esta safra de músicos se desenvolve em uma época tomada pela influência da internet, pela acessibilidade dos equipamentos digitais, e por trocas culturais antes inviabilizadas pela presença massacrante da indústria fonográfica.

Esta estrutura independente, aparentemente idealizada, pode ser verificada não somente no grande número de selos independentes e artistas que administram o próprio trabalho, mas também no leque "geomusical" que se abriu nos últimos dez anos. A música brasileira atual é fragmentária e não comporta as velhas oposições da chamada MPB. Ela ainda é território de conflitos, mas localizados de forma mais democrática e, portanto, mais complexa.

Produções
Surgiram gêneros populares, marcadamente híbridos, como o tecnobrega de Gaby Amarantos e o funk "tamborzão" de MC Catra. Manifestações antes circunscritas a seu local de origem, passaram a aparecer no âmbito nacional, representados pela guitarrada paraense dos Mestres da Guitarrada, o carimbó do saudoso Mestre Verequete e o Jongo da Serrinha, no Rio de Janeiro. Digna de nota a atuação do Circuito Fora do Eixo, rede de trabalho que nasceu da confluência de produtores das cidades de Cuiabá, Rio Branco, Uberlândia e Londrina, cujo maior representante é a banda de rock instrumental cuiabana Macaco Bong.

Como consequência da profusão de fontes sonoras presentes na internet, advindas da Europa, Ásia, América Latina e, sobretudo, da África, não é incomum escutarmos combinações entre o afrobeat nigeriano e o maracatu de pernambuco - como no caso do Nação Zumbi. Ou mesmo uma releitura dos toques de candomblé, com o sotaque eletrônico do baiano Carlinhos Brown e seu álbum Candombless. Ou ainda o avant-rock do paraibano Burro Morto, responsável pelo excelente "Baptista Virou Máquina".

E mesmo no Sudeste, surgiram artistas, grupos e coletivos apresentando propostas diversificadas. Entre eles, Romulo Fróes, os coletivos Hurtmold e Instituto, os rappers independentes como Quinto Andar, Criolo e Emicida, o paulistano Metá Metá e o carioca Do Amor. Note-se que essa geração não carece dos habituais conflitos com a geração anterior, como ocorreu com o "BRock" dos anos 80. Pelo contrário, nomes como Chico Buarque e Caetano permanecem plenamente compatíveis com as propostas estéticas da atualidade.

Pode-se criar objeções quanto à sua amplitude e potencial emancipatório, mas não há como negar que está em curso um processo de descentralização criativa na geopolítica da produção musical brasileira. O eixo produtivo se deslocou do sudeste para privilegiar outros mercados e aportes culturais, configurando o que pode ser chamado de período "pós-industrial" da música brasileira.

Bernardo Oliveira

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