quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

(crítica – disco) Siba – Avante (2012; s/g, Brasil)
























São muitas as virtudes que fazem o grande artista, e muitas são as perspectivas quando se trata de arte. Porém, pelo menos em nossa era, o grande artista é aquele que consegue, a partir de um material dado, dar à luz um recorte singular, seja referindo-se, seja desprendendo-se daquilo que lhe é legado. O debate acerca da possibilidade de emergência do “novo”, que se arrasta durante todo o século XX e invade o XXI sem pedir licença, resta carente de argumentos, pois não existe outra possibilidade para definir a criação humana que não se dê a partir de uma tensão entre o que já se passou e o que virá:

“Na descompressão do grito
De liberdade e revolta
Se abriram os portões pesados
Um touro bravo se solta
Quem parte berrando: avante!
Pode cair mas não voltar” (“Avante”)

Em Avante, Siba fornece mais argumentos para se inscrever com folga no rol dos artistas que conseguem parir o “novo”. Como no trabalho anterior, Toda vez que eu dou um passo o mundo sai do lugar (sem contar a parceria com Roberto Corrêa), o “cantautor” se destaca por obter conceitos e sonoridades próprios, sobretudo em relação ao substrato de suas canções, referente a gêneros nordestinos como a toada, o coco, o maracatu, o galope, entre outros. E o que é então esse “novo”? Ele se resume ao grito de “avante!” que batiza o álbum? Ou se refere à reabilitação dos gêneros abordados, prescritos aos guetos folcloristas? Trata-se portanto de uma motivação? De uma pesquisa? De uma inspiração sem maiores consequências? Reflexo de uma história pessoal? Todos os itens acima? A resposta vem sob a forma de poesia: o turbilhão dos acontecimentos pode ser representado pela imagem de um touro que se desprende, e a criação humana como esses indivíduos que partem berrando “avante!”, e que podem cair, mas não voltam…

Conceitualmente, seu trabalho se constitui a partir de dois movimentos, e isto se pode afirmar tanto de Avante, como dos discos anteriores. Primeiro, apropriar-se dos gêneros listados acima com naturalidade, tal como se trabalha com o rock, o samba e o reggae, compondo canções com temáticas variadas. Em segundo, experimentar na roupagem sonora, modificando-a conforme o conceito do álbum. Se no disco anterior, o grupo regional se mostrava adequado, desta vez Siba escalou Leo Gervázio, integrante da Fuloresta, na tuba, Samuel Fraga na bateria e Antônio Loureiro no vibrafone e teclados, além de tocar guitarra e viola. Produzido por pelo compositor, instrumentista e produtor Fernando Catatau (Cidadão Instigado), Avante se destaca pela inserção de vibrafone, tuba e guitarra nos arranjos, que resulta em uma sonoridade coesa, porém multifacetada. Tal combinação suscita nexos com a música pernambucana dos anos 70, o rock’n’roll dos 60, a jovem guarda, Cidadão Instigado e até mesmo hardcore (em "Canoa Furada"), mas guarda também a singularidade do diálogo instrumental, como se pode ouvir na sensacional combinação de guitarra distorcida e vibrafone na faixa-título, e na simbiose de afrobeat e maracatu na lírica de “Qasida”. Destaque para a vinheta “Mute/Um Verso Preso”, cuja textura demonstra as habilidades instrumentais de Siba, capaz de sintetizar rock’n’roll e viola nordestina nas guitarras – habilidade também perceptível nos pontuamentos "guitarrísticos" em “Avante”.



Envolvendo essa dupla característica, a sensibilidade excepcional de poeta, capaz de exprimir humor e plasticidade em versos como os de “Canoa Furada” (“E a canoa velha deixou/Muita água minar/Eu nunca aprendi a nadar/Será que essa água é molhada ?”), melancolia, como em “Brisa” (“A brisa, por ser carinhosa, é quem mais tem castigado”), e delírio, como em “Preparando o Salto”:

“Não vejo nada que não tenha desabado
Nem mesmo entendo como estou de pé
Olhando um outro num espelho estilhaçado
Que reconheço mas não sei quem é”

O exercício original da métrica e da rima, muitas vezes organizadas em formato entrelaçado, como em “Qasida”, “Canto de Ciranda na Beira do Mar” e “Ariana”, reforça a temática cotidiana, reiterando a visão particular do autor. Constituída por imagens oníricas, que contraditoriamente se desprendem do caráter aparentemente coloquial dos versos, a poesia de Siba manifesta a consciência ao mesmo tempo trágica e ferina de poetas nordestinos como Jorge de Lima ou Patativa do Assaré. Mas aqui, o trágico não se configura como sinônimo de tragédia ou mau agouro, mas uma compreensão do infinito, para além do bem e do mal…

“Imagens são balões presos
Por um cordão que se tora
Porque poesia é presença
De um vulto que não demora
O canto espalha no vento
E o tempo desfaz na hora.”

… e que também opera na seara do nonsense, criando impagáveis gags visuais como em “A Bagaceira”:

“No fim da bagaceira
Minha vista escureceu
Se alguém souber meu nome
Diga pra mim quem sou eu
Vou dormir na calçada
Abraçado a um cachorro
Pra uma alma sebosa
Me levar carteira e gorro
E ainda se dá mal
Pois não tem um real
Pode acabar-se o mundo
Vou brincar meu carnaval”



















À vontade entre a previsibilidade e a diferença, Avante confirma o talento de “cantautor”, apto a transfigurar o legado riquíssimo, deixado de lado pelas bandas “sudestinas”. Por fim, vale retomar a questão do primeiro parágrafo: o novo não é algo que irrompeu em tempos imemoriais para nunca mais voltar, mas, consequência inevitável, que surge no trabalho de alguns indivíduos que conseguem enxergar para além do horizonte de expectativa da grande maioria. Um desses indíviduos é Siba e Avante é mais um documento que atesta sua visão privilegiada. 

Bernardo Oliveira

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