sexta-feira, 1 de março de 2013

Bassekou Kouyate & Ngoni ba – Jama Ko (2013; Out Here Records, Mali [Alemanha])




A grande maioria das resenhas dedicadas a avaliar as qualidades inegáveis de Jama Ko, sugerem o nexo entre o golpe de estado que agravou a situação política conturbada do Mali e sua respectiva repercussão sobre a aparição de tendências mais agressivas do Ngoni Ba, o grupo que acompanha Bassekou Kouyate. Ainda que a situação se apresente de forma bem mais complexa que a perspectiva de Kouyate pode fazer supor, vale destacar seu desabafo em entrevista recente por ocasião do lançamento de Jama Ko: “Há mais de 90% de muçulmanos no Mali, mas nossa forma de islamismo não tem nada a ver com uma forma radical da Charia: esta não é a nossa cultura. Temos entoado canções de louvor para o Profeta por centenas de anos. Se os islamistas interromperem a música que as pessoas fazem por aqui eles vão arrancar o coração do Mali.”

Jama Ko se apresenta com uma sonoridade mais frenética e incisiva, tanto em relação aos álbuns anteriores, Segu Blue (2006) e I Speak Fula (2009), como também no que diz respeito às inflexões mais conhecidas da música malinesa — Youssou N’dour, Amadou et Mariam, Ali Farka Touré, entre outros. Embora pareça bastante provável que tais características decorram de um conturbado contexto político — basta dizer que o álbum foi gravado no Mali, durante o golpe em março de 2012 — convém destacar os elementos propriamente musicais que contribuíram para o êxito de Jama Ko.

Primeiramente, podemos notar uma diferença substancial no punch das percussões e dos ngonis, sem prejuízo para as sutilezas das justaposições rítmicas e harmônicas. Ao contrário dos dois primeiros álbuns, produzidos respectivamente pelo jornalista Jay Rutledge e pela etnomusicóloga Lucy Duran, a produção de Jama Ko ficou a cargo de um músico ligado ao rock, Howard Bilerman, ex-baterista do Arcade Fire. Com sensibilidade “antropológica”, a produção de Bilerman foi responsável por uma sonoridade mais forte e robusta, mantendo relativamente intactas as formas timbrísticas características do ensemble. Digo “relativamente” porque esta síntese se favoreceu ainda mais da utilização de distorção e wah-wah no Ngoni de Kouyate — sobretudo nos solos desvairados de “Ne me fatigue pas” e na parceria com o bluesman americano Taj Mahal, “Poye”.

Mixado por Bilerman e Rutledge em Montreal, Jama Ko recebeu ainda a bateria e a guitarra de Andrew e Brad Barr, além do órgão de Dominic Salole em “Ne me fatigue pas”. Ao invés de nivelar a sonoridade malinesa com a timbragem “ocidentalizada” (como no último disco de Oumou Sangaré), Bilerman reforçou sua singularidade unindo o órgão, a bateria e a guitarra às tramas de cordas e percussões dos Ngonis, Doun Doun, Yabara, entre outros instrumentos musicais malineses. Esta escolha refletiu a variedade de ritmos e arranjos desenvolvidos pela Ngoni Ba, com ênfase nas dinâmicas e convenções instrumentais — como no caso do andamento pontuado de “Mali Koori” e “Wagadou”, nas texturas pontilhistas de “Dankou”, ou na recorrente sensação de um emaranhado de cordas, particularmente em “Kensogini” e “Sinaly”.


As participações especialíssimas de seu pai (Moustafa Kouyate) e seus filhos (Fousseyni Kouyate e Mamadou Kouyate) no ngoni e de sua esposa Ami Sacko nos vocais, somada às presenças da cantora de Timbuktu, Khaira Arby e do guitarrista americano Taj Mahal, conferem um clima familiar às gravações, mas que volta e meia é quebrado pelo cosmopolitismo anômalo e futurista que emana das encruzilhadas de Bamako. Composto por uma diversidade de grupos étnicos e variantes etnolinguísticas, o Mali é uma espécie de enclave cultural absolutamente peculiar na África Oriental, onde Mandês, Songhais, Tuaregs, Fulas, entre outros, se distribuem e se miscigenam em um território marcado por guerras e experiências políticas peculiares. Soma-se a isto o fato de que os gênero e os instrumentos musicais são batizados com o nome dos grupamentos humanos que os cultivam, nem todos situados no Mali — os Ngoni, assim como os Songhai, habitam também o Zâmbia, a Tanzânia, etc.

Em um território povoado por muitas culturas e que dificilmente se oferece à compreensão imediata do estrangeiro é importante valorizar o papel do “contador de histórias” ou “preservador das memórias”, o griot. Mais do que um trabalho em franco diálogo com o interesse americano e europeu, Jama Ko (que em fula quer dizer “uma grande reunião de pessoas”) nos reporta a um estado de coisas, como uma polaróide de uma cultura em ebulição tanto no que diz respeito aos problemas políticos, como na produção artística. Assim, Bassekou Kouyate, o griot, dispõe do formato-disco, Jama Ko, como mais um canal para exprimir sua história, sua música e sua visão do presente.

Bernardo Oliveira

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