terça-feira, 9 de julho de 2013

Ikue Mori: A Arte do Ritmo Assimétrico

























Ikue Mori & Steve Noble – Prediction and Warning (2013; Fataka, Reino Unido)


























Ikue Mori & Maja S.K. Ratkje – Scrumptious Sabotage (2013; Bocian Records, Polônia/Noruega/EUA)


Em 1977, quando, sob a influência do punk, veio de Tóquio para morar em Nova Iorque, Ikue Mori descolou seu primeiro trabalho como percussionista/baterista do DNA de Arto Lindsay e Tim Wright. Sua presença no grupo foi decisiva, tendo sido eleita a responsável por elaborar estruturas rítimicas que se adequassem aos rompantes impostos pela guitarra anômala de Lindsay. Críticos de música da época chegaram a compará-la a um baterista de free jazz, talvez por se recusar a prestar contas à regularidade que se espera de uma baterista de rock. Mas, sobretudo, por desenvolver um método particular para inserir elementos rítmicos descontínuos em uma estrutura relativamente aberta, participando, assim, da linhagem de percussionistas que conduz de Babatunde Olatunji a Maureen Mo Tucker — artistas que conceberam a bateria enquanto um instrumento liberado de sua forma meramente técnica, mantendo diálogo permanente com técnicas oriundas de outros instrumentos de percussão.

Posteriormente, Mori passou a operar a bateria eletrônica utilizando-se de um método original de improvisação, e, nos anos 2000, adotou o lap top (por vezes chamada “percussão eletrônica”), mantendo-se firme na tentativa de elaborar um discurso percussivo transgressor, pautado na irregularidade e na assimetria. Indicando claramente que esta tendência ainda vigora em seu trabalho, dois lançamentos recentes marcam a presença luminosa de Ikue Mori neste ano que já escorre pelo ladrão. Prediction and Warning, em parceria com o baterista inglês Steve Noble; e Scrumptious Sabotage, com a experimentadora norueguesa Maja Ratkje, ambos lançados em maio deste ano, dois anos depois da excepcional colaboração com Julianna Barwick.

Nesta última colaboração, editada pelo selo Rvgn Intl. como o sexto volume da série FRKWYS, observou-se um desacordo pontual entre o approach carregado da artista japonesa com os sintetizadores espectrais da lourinha de Louisiana. Um descompasso evidente entre estilos, que se encaminhou de forma brilhante no decurso da improvisação. O ato de improvisação, por assim dizer, forçou uma intervenção mais enérgica de Mori em relação às texturas evocativas dispostas por Barwick, propiciando assim um equilíbrio artificial que somente a generosidade e a força da concepção podem impor. O mesmo não se pode afirmar quando Mori se propõe a dialogar com alguns parceiros com os quais mantém evidentes laços de afinidade. Nestes casos, observa-se que a artista opta pela abundância em substituição à parcimônia, liberando todo um arsenal de “vibrações, estridulações, rangidos, zumbidos, estalidos, arranhões, fricções” que anunciam a “idade dos insetos” na música (preconizada por Deleuze-Guattari, Mil Platôs IV, p. 111).

Iniciada em 2010 em um concerto no Café Oto, em Londres, a afinidade entre o pensamento musical de Mori e Steve Noble se evidenciou pela forma aberta com que concebem seus respectivos instrumentos. De tal maneira que, como se pode ler no release de Prediction and Warning, Noble se posiciona como “o espelho acústico da música eletrônica de Mori”, procurando traduzir e incrementar as articulações nervosas da percussão eletrônica com texturas extraídas do rufar de peles, da alternância de baquetas e do estalido dos pratos. Já em relação as extravagâncias vocais de Maja Ratkje, com quem Mori já dividiu algumas gravações e apresentações, trata-se de uma colaboração entre artistas que operam praticamente no mesmo território, isto é, perseguem o aspecto alienígena, “monstruoso”, dos sons. Se Noble representa o “espelho acústico” da assimetria rítmica proposta por Ikue Mori, Scrumptious Sabotage mostra de que forma Mori e Ratkje, a partir de um diálogo entre iguais, tornam-se o espelho invertido uma da outra.

Em Prediction and Warning, gravado em novembro de 2011, percebe-se que há um regime determinado de posicionamento e inserção de acordo com as construções assimétricas propostas pelos artistas. Como “espelho acústico” de Mori, Noble cria as texturas a partir do rufar veloz dos tambores, procurando realçar os sons digitais e orgânicos que Mori produz com o lap top. Dinâmicas de esvaziamento e preenchimento, baixos e altos volumes, valorização dos detalhes ou produção de massa sonora, favorecendo tanto a saturação por sobreposição, como o diálogo percussivo por subtração de elementos. Não há como determinar de forma deliberada quem mantém o domínio do jogo, sobretudo em momentos  de memoráveis miríades sonoras como “Seismic Waves” e nas perturbadora “Convenction”.

Mesmo em momentos de evidente preeminência — como nas duas faixas que encerram o álbum, “Land Of Famine” e “Inferno”, praticamente conduzidas por Mori, ou na ironia marcial na introdução de “Black Death” e no beat ao final de “Atmospheric Pressure” — é possível detectar o esforço conceitual dos artistas de criar modulações que justifiquem não apenas o caráter brutal da enxurrada sonora, mas algum nível de organização que se aproxime de uma composição. Mas essa característica não compromete a espontaneidade, pelo contrário: em “Montparnasse Derailment”, há uma conversa entre pratos e percussões com erupções pontuais de células do house-techno, indicando, para além de pesquisa e experimentação, a presença indefectível da ironia e da paródia como parte do trabalho.



Após a conversa com seu “espelho acústico”, partimos para o diálogo com o “espelho invertido”. Reconhecida por seus experimentos radicais com processamento de voz e improvisação eletrônica em grupos como o SPUNK e o Fe-Mail, Maja S.K. Ratkje é uma daquelas personalidades multifacetadas, cujo trabalho abrange e tematiza tanto a música contemporânea da primeira e da segunda metade do século (Stockhausen, Xenakis), como as searas particulares da poesia sonora, experimentações eletrônicas, manipulação de fita magnética, pesquisa de timbre, etc, sempre em busca de promover antagonismos terríveis entre os sons estranhos e incômodos. Ora, ninguém mais adequado para uma parceria com Ikue Mori do que outra artista com quem ela pode partilhar a quimera — a “deliciosa sabotagem” — de fazer as máquinas soarem como se estivessem quebradas.

O único som que se pode identificar em Scrumptious Sabotage como pertencendo a alguma estrutura material que não seja o lap top é a própria voz de Ratkje, ainda assim, consideravelmente alterada. Habitamos um território completamente diferente daquele que foi constituído pela dupla Mori/Noble. As peles dos tambores, os ferros e madeiras: de alguma forma os sons eram acompanhados por suas representações orgânicas, passíveis de serem identificadas pelo ouvinte. O mesmo não ocorre em Scrumptious Sabotage, construído integralmente com os lap tops e, ao contrário do construtivismo de Prediction and Warning, opta por promover o vandalismo e a destruição. As faixas se assemelham mais a uma sobreposição de ruínas — a ruína de um sample, de um procedimento — do que qualquer construção, ainda que assimétrica.

Por outro lado, a percussão permanece ignorando, rompendo as amarras da harmonia, seja a harmonia das notas e acordes, seja a harmonia das formas rítmicas. Elemento central do trabalho de Ikue Mori, a ênfase na percussão põe em primeiro plano os aspectos rítmicos dos estrilados de Ratkje. Talvez por essa potencialização do ritmo na música da norueguesa, a dupla exiba uma desenvoltura no que diz respeito à capacidade de produzir o inusitado. Chamo a atenção do leitor para as texturas acidentadas de “Bactrian Camel”, o drone cavernoso em “The Crown” (uma das poucas faixas que mantém um mesmo clima por toda a duração) e, encerrando o disco, a nuvem de graves, repleta de intervenções vocais e ruídos, intitulada “Rivers of Belfast”.


Tomando a trajetória de Ikue Mori pelos apetrechos com os quais ela opera sua linguagem singular — isto é, bateria, drum machine e lap top — é possível distinguir uma tendência a utilizá-los dentro de uma concepção musical regular, ritmicamente contínua e progressiva. Na medida em que ritmo e regularidade se encontram no cerne de grande parte da música que é produzida hoje, a trajetória de Ikue Mori pode ser descrita como um desses esforços incessantes em subverter (ou expandir) a paisagem sonora contemporânea. Contudo, mais do que duas audições formidáveis, Prediction and Warning e Scrumptious Sabotage dão provas suficientes de que sua obsessão pela assimetria não prejudica o diálogo. Ao invés de afastar e isolar, a arte assimétrica de Ikue Mori se abre para a contribuição de outras assinaturas sonoras e se amolda a elas. Esta aparente antipatia, esta personalidade apta a encarar as dificuldades impostas por uma arte que joga com a repulsa e a destruição, paradoxalmente carece da dinâmica colaborativa para dar continuidade a suas ideias.    

Bernardo Oliveira

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