Uma motocicleta (acidentada?) deitada ao chão, um pano de cetim amarelo jogado de forma displicente sobre um jardim de contornos superficiais, como os que vemos nos shopping centers e centros comerciais. Que me lembre, a última capa de disco capaz de vincular a forma e o assunto de modo eficaz como a de Black Light Spiral, foi a de Classical Curves (2012), estreia do inglês Jack Latham, mais conhecido como Jam City. Tanto a capa quanto o trabalho de Latham buscavam reproduzir uma desnorteamento programado diante da eminência de algo incompreensível que, por não sabermos do que se tratava, transmitia insegurança. A tensão se manifestava através de uma música bruta, repleta de intervenções aparentemente aleatórias (gritos, estrondos), fortemente sincopada e portadora de um brilho sinistro.
Por sua vez, a capa de Black Light Spiral, primeiro álbum de Jack Dunning, ou Untold, produtor de Hertfordshire, também expressa o conceito sonoro com eficácia. A foto reproduz o exato momento em que um singelo porquinho de porcelana é atingido por um tijolo na cabeça. Diferentemente da capa do Jam City, que retrata algo que já passou, a foto flagra justamente o momento em que o tijolo atinge sua orelha e se quebra, enquanto ele permanece tal e qual, estúpido e sorridente. Ora, esta capa se dirige à fugacidade envolvente do instante e do ambiente. Ainda que imersos em um contexto determinado, não somos aptos a perceber a quantidade de acontecimentos que atravessam nossa percepção. Ao congelar o instante, a capa de Black Light Spiral remete a esta sensação ambivalente de familiaridade e espanto, que de certa maneira caracteriza o disco. Teremos a oportunidade de confirmar essa hipótese diante da qualidade imersiva e da infinidade de detalhes de cada uma das faixas desse trabalho estranho e desafiador que é Black Light Spiral.
O disco se inicia com ruídos variados distribuídos sobre uma marcação em volume baixo. A textura é interrompida pela eclosão de sirenes de todos os tipos: ambulâncias, alarmes, carros de polícia. Os ruídos não se resumem aos bleeps comuns nesta seara, mas possuem algo de ameaçador, carregados de um aspecto documental, como se fossem extraídos das ruas. O grave se torna proeminente enquanto o clima de desorientação toma conta do ambiente. Estamos situados no âmago do descontrole urbano inerente ao imaginário da eletrônica londrina. Porém, o que geralmente se apresenta como uma vinheta de introdução, em “5 Wheels” dura quase cinco minutos. Não se trata somente de uma indicação de contexto, tal como nas vinhetas desse tipo, mas a tentativa de envolver o ouvinte em uma atmosfera rarefeita e impessoal.
Além da qualidade imersiva, há em Black Light Spiral uma estratégia de produção das batidas que passa ao largo do paradigma percussivo grave/agudo, comum ao techno. Neste sentido, seu trabalho trava um diálogo interessante com o Ekoplekz de Nick Edwards, sobretudo pelo fato de que, em ambos os casos, o “kick drum” do techno não serve de fio condutor. O ritmo é produzido por amálgama de elementos diversos, inclusive elementos supostamente não-percussivos. Como, por exemplo, em “Drop it on the One”, em que o suingue deriva da repetição contínua e circular de samples de vozes, bumbos, rangidos e um som grave em glissando. Este efeito é produzido através da transliteração de elementos que não são usualmente utilizados nas batidas, à semelhança do trabalho com vozes no juke ou na poética falada de Anne-James Chaton. “Sing a Love Song” confirma esse procedimento ao elaborar o ritmo a partir de recortes de um sample de voz que entoa o verso “Sing a Love”.
Em “Strange Dreams”, talvez a que mais se aproxime do que Dunning produziu anteriormente, percebe-se que o grave, depositado geralmente sobre a atuação do contrabaixo e dos bumbos, soa na estrutura rítmica através de timbres mais agudos, quase estridentes. Em “Hobthrush”, no lugar do bumbo e do baixo, um som saturado cria as marcações, enquanto a combinação de estalidos e baixas frequências determinam a ambiência de “Wet Wool” e “Ion”. Techno, dubstep, industrial, experimental, o rótulo parece não importar tanto quanto a capacidade de síntese. Cada faixa exprime algo como uma organização ambígua, caótica e, ao mesmo tempo, pensada, estudada. Em uma de suas primeiras entrevistas, Untold teria definido seu trabalho musical da seguinte maneira: “It’s design not art.” (apud FACT Magazine). Levemos essa declaração em consideração.
Desde 2008, Dunning vem lançando seus Eps e colaborações (alguns por seu próprio selo, o Hemlock), demonstrando estar atento para muitas vertentes da música eletrônica de pista. Sua produções são baseadas em batidas sincopadas e timbres marcadamente sintéticos, comparáveis aos sobressaltos de 2562 (como em “Sweat”); algumas delas, são mais afinadas com o universo específico da pista de dança (“Kingdom”), outras parecem querer abalar sua estrutura — como a série de Eps Gonna Work Out Fine e a parceria com o trio LV, “Beacon”. Porém, em Black Light Spiral, a impressão é a de um território completamente aberto, para além da síntese de experiências pregressas. Dunning investe em uma técnica de composição linear, análoga àquela empregada pelos que utilizam Ableton, calcada no jogo de sequenciamento, adição, subtração e justaposição. O resultado, porém, impressiona ao soar com a singularidade de um procedimento novo. Opressivo e rico em ideias, Black Light Spiral representa um ponto alto não só na carreira de Dunning, como também um dos lançamentos mais singulares da música eletrônica recente.
Bernardo Oliveira
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