quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Diferença e repetição: entrevista com Keith Fullerton Whitman























Tarefa nada simples a de circunscrever em termos estéticos a militância eletrônica que Keith Fullerton Whitman conduz com autoridade de um inventor. São muitos os trabalhos envolvendo seu nome, mesclando formatos (CD, CDr, cassete, LP), selos (No, PAN, Root Strata, etc.), parcerias, aparatos técnicos e vertentes da eletrônica experimental — ambient, drone, eletroacústica, além de momentos do mais enervado artesanato noise. 

Compositor de música eletrônica e eletroacústica norte-americano, Whitman se tornou conhecido primeiramente como Hrvatski, pseudônimo para seu trabalho mais voltado para drum’n’bass e IDM. A partir de 1999, passou a lançar discos assinando com seu próprio nome, utilizando-se primeiramente de samplers e guitarra processada e, posteriormente, operando sintetizadores. Desde então, lançou uma série de trabalhos importantes no domínio dos sintetizadores modulares analógicos e digitais.

Ultimamente, Whitman tem se dedicado a desenvolver meios para interação com sintetizadores modulares e softwares no sentido de viabilizar uma apresentação de música eletrônica em tempo real. Em decorrência deste trabalho, Whitman editou dois álbuns pelo selo austríaco Editions Mego: Generators e Occlusions, totalmente improvisados e, segundo o próprio, “tocados sem ajuda de quaisquer materiais pré-gravados ou mesmo pré-arranjados”. O músico comandou o estúdio Reckancomplex/Mimaroglu e mantém a distribuidora de música de vanguarda Mimaroglu Music Sales. Abaixo, a reprodução da conversa que tivemos por e-mail, sobre vários aspectos de sua carreira. (B.O.)

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Esta entrevista pretende servir como uma introducão de seu trabalho no Brasil, de modo que não poderei fugir desta pergunta famigerada: por favor, conte-nos um pouco sobre como você começou a se interessar por música. Quais foram as influências musicais e não-musicais que o levaram a trabalhar com música?
Me interessei por música simplesmente por estar cercado por ela desde que era uma criança. Havia música constantemente lá em casa, inclusive a que vinha pelas ondas do rádio. Cresci na cidade de Nova York durante o final dos anos 70, de modo que tive acesso a quase todos os tipos imagináveis de música. Ficava fascinado com qualquer música que caísse em minhas mãos. A proximidade deste ambiente, o rádio e as vendas de garagem (“garage sales”) foram, provavelmente as minhas maiores influências não-musicais.

Quais caminhos o levaram até os primeiros discos do Hrvatski? Neste período, a guitarra parecia ser mais importante do que os sintetizadores.
Na verdade, toco muito pouco a guitarra nos registros Hrvatski — uma linha aqui, outra acolá — a maioria são samples. Até cheguei a produzir música sampleando faixas pré-existentes. Não faço mais, embora pense sobre isso o tempo inteiro. Estudei guitarra durante todos os anos de faculdade, portanto acho que ainda é meu principal “instrumento”. Então, compus um pouco para guitarra processada com o auxílio de computadores no final da década de 90 e início dos anos 2000, mas foi tudo com meu próprio nome.



Playthroughs (2002) parece indicar uma guinada em seu trabalho, uma guinada para a ambient, o drone e para paisagens sonoras mais contemplativas. Como se deu essa mudança de perspectiva?
Minha mãe ficou doente e, em seguida, faleceu. Durante esses anos, não me via fazendo uma música alegre, exuberante, talvez até mesmo irreverente. Playthroughs refletiu uma séria mudança na forma como comecei a conceber a música em geral. Fazer música tornou-se minha vida desde então, e não me arrependo.

Houve um movimento deliberado na passagem da guitarra processada para os sintetizadores? Podemos dizer que nessa transição, sua música migrou de uma percepção do ritmo como “repetição” para uma concepção irregular e subjetiva?
Playthroughs, em essência, foi uma síntese de padrões, um colcha de retalhos. Na minha juventude não tive acesso a sintetizadores de verdade. Quando comecei a produzir, quase todo esses equipamentos já existiam em softwares. Então, não acompanhei todo esse período em que trabalhava-se com teclados e sintetizadores. Era tudo novo quando comecei a operar sistemas como sistemas Buchla ou Serge no início de 2000. Por outro lado, todas as idéias polirrítmicas que estão no final de Playthroughs permanecem em evidência no meu trabalho atual. Nesse sentido, eu não mudei muito.























A peça “Dream House Variations” sugere uma experiência análoga às intervenções espacializantes que artistas como Eliane Radigue desenvolveram nos anos 70? Como você pensa sua música em relação a esse universo das artes, particularmente a chamada “arte sonora”?
Essa peça é tão específicamente dedicada a La Monte Young que é impossível vê-la de qualquer outra forma. Trata-se de uma meta-resposta às políticas de “portas fechadas” (“closed-door policies”) de La Monte. Foi uma peça definitivamente destinada a ser irreverente. Dito isso, eu sou um grande fã da chamada “primeira onda” de artistas sonoros. Eu penso neles da mesma forma como penso nos músicos da época. O problema é que a ênfase nos componentes visuais e físicos de seus trabalhos se perderam para mim, pois os descobri através de gravações. Relaciono esses compositores com a ideia de um tempo musical extensivo e irregular, que trabalha, por exemplo, com músicas muito longas, performances extremamente curtas, etc.

Ao contrário da estrutura econômica de Generators, Occlusions segue por uma linha mais “granulada”? Mas consta que os procedimentos são muito semelhantes. Em linhas gerais, como você definiria suas estratégias técnicas e conceituais para a utilização de sintetizadores modulares em tempo real? Conte-nos um pouco sobre a produção dos dois álbuns lançados pelo selo austríaco Editions Mego: Generators e Occlusions.
Ambos os registros foram feitos quase que simultaneamente, utilizando exatamente a mesma configuração e o mesmo gravador — um Dictaphone de $ 99. Depois, os sons foram completamente remodelados com aparelhos digitais. Fazia sentido publicá-los quase ao mesmo tempo, mas eu mesmo fiquei espantado com a diferença radical de Occlusions em relação a Generators. Isso se deu como resultado de uma forma específica de “quantificar” as frequências mantendo o tempo relativamente sub-dividido. De outra forma, eles corresponderiam literalmente aos mesmos padrões. Eu gostaria de mostrar como a música pode ser amplamente variável de acordo com meios técnicos e procedimentos semelhantes. Embora, no final, eu tenha ficado com a impressão de que a experiência tivesse fracassado. 

Sobre trabalhar com o Editions Mego e com Peter (Rehberg, diretor do selo) foi perfeito, é claro, assim como trabalhar com Graham Lambkin na arte para o Generators.



Tenho uma curiosidade particular com o split que você fez com Eli Keszler. Você parece partir da premissa sonora posicionada pelo maquinário de Keszler. Vocês trabalham esse split juntos? 
Sim, eu realmente me deixei influenciar pela abordagem de Eli Keszler para o solo de caixa (snare drum). Admiro muito a forma coesa com que Eli aperfeiçoa suas soluções para tocar ao vivo, trata-se de um músico fantástico. Nós fomos para o estúdio no ano passado e gravamos vários dias de música bastante interessante, mas tive que lutar para encontrar o tempo e os recursos para sentar e passar algumas semanas mixando e desenvolvendo o trabalho. O tempo nunca parece ser suficiente diante de tantos shows, de minhas responsabilidades aqui em Cambridge, etc.



Curioso observar que desde o Hrvatski até seu trabalho com os “greatest hits”, você parece gostar muito de descaracterizar grandes sucessos de mercado. Conte-nos um pouco sobre esse interesse, quais os principais conceitos por trás desses processos de descaracterização? Eles são políticos? Em que sentido?
Realmente não penso os “Greatest Hits” como algo além de uma rotina pessoal, terapêutica. Eu estava na dúvida se deveria compartilhar esses experimentos publicamente depois de fazê-los por tanto tempo (10 anos!). Mas, no fim das contas, tive algum retorno positivo. Sim, alguns deles funcionam como um comentário à falta de qualquer “policiamento” real no modo como a música é apresentada na internet, que se reflete na confiança das pessoas em seus resultados de busca no Google. Se você procurar por várias dessas canções, o Soundcloud dos “Greatest Hits” é o seu primeiro resultado de busca, que é ao mesmo tempo muito revelador do estado atual desta área específica da cultura musical que me parece extremamente problemático. E isto me abriu alguns diálogos muito frutíferos.



Por favor, conte-nos um pouco sobre sua experiência compondo “Rythmes Naturels” no antológico estúdio INA-GRM em Paris.
Isso foi realmente algo muito importante. Uma comissão adequada após entrar por tantos anos em muitos desses estúdios pela porta dos fundos, uma experiência real estilo “porta da frente”. Eu mal podia conter a minha emoção, e no final, compus uma peça que me deixou muito feliz. Eu teria adorado passar mais um mês lá, mas é importante saber quando seguir em frente.



Como tem se desenvolvido as apresentações ao lado de Mark Fell?
Mark é alguém cujo trabalho respeito há muito tempo, desde os primeiros 12 polegadas do SND em meados dos anos 90. Nós nos conhecemos há alguns anos e realmente nos entendemos bem. Em seguida, tocamos em alguns shows juntos no ano passado na Alemanha. Isso levou à colaboração atual, que eu estou achando muito satisfatória no momento. O resultado da parceria não tem sido diretamente ligado nem ao meu, nem ao seus interesses estéticos, mas parace apontar para algum caminho próprio. Estou muito curioso para ver onde essa parceria irá nos levar.



Você é um artista prolífico, e ainda encontra tempo para administrar um estúdio (Reckancomplex) e uma loja online especializada em música experimental (Mimaroglu Music Sales). Você pode ser considerado um cara que trabalha muito. Como essa saturação de tarefas repercute/interfere sobre seu trabalho? A condição de workaholic é uma premisa do trabalho artístico contemporâneo, especialmente o trabalho com música experimental?
O Reckankomplex está fechado já há algum tempo, mas ainda comando a Mimaroglu no meu tempo livre. Para mim, é fundamental ter todas estas ocupações diferentes acontecendo ao mesmo tempo. Sempre comparo com a imagem circense de ter muitos pratos girando sobre as varas. Eventualmente, alguns pratos cairão no chão, mas é relativamente fácil levantá-los e colocá-los para rodar novamente. Mas não acho que uma ética do trabalho pesado seja necessariamente parte da música experimental. Alguns dos meus artistas favoritos trabalham lentamente e de forma esporádica ao longo de décadas em uma única idéia! Eu sou um pouco mais curioso e não estou tão preocupado em me repetir.

Sim, estou constantemente trabalhando com música, seja produzindo, seja na Mimaroglu. Mas não lanço um registro adequado há dois anos, um recorde! Em parte, isso tem a ver com as variações eternas para me manter à tona. Mas também não estou interessado em lançar algo simplesmente por lançar. 

Você costuma escrever sobre a música que você vende na Mimaroglu e é sempre muito interessante. Você acha que a crítica de música tem uma certa influência especial sobre as obras do artista hoje em dia?
Minha crítica não deveria ter qualquer efeito sobre qualquer outra pessoa. Raramente pode ser considerada como uma “crítica”, mas, principalmente, um comentário. Sempre quis ser despreocupado, bem-humorado. Acho desafiador o trabalho de apresentar a música experimental na linguagem cotidiana, para realmente ajudar a quebrar essas barreiras geladas que muitas vezes impedem as pessoas de se aproximarem deste universo.

Em uma recente entrevista para Lasse Mahraug, você observa que alguns dos underdogs mais talentosos da música eletrônica são negligenciados pela academia. Você acha que a academia ainda é uma instituição importante para a música? Eu pergunto isso porque no Brasil, acredito que este papel exploratório foi perdido e foi substituído pela música que é desenvolvida de forma independente.
Eu estava falando especificamente sobre os históricos compositores da Música Eletrônica dos anos 60 e 70 (como Tod Dockstader, por exemplo). Mas, sim, sinto que isso é verdade. Ou, pelo menos, não percebi nenhuma diferença qualitativa real entre o que encontrei no fundo das lojas de discos ao longo dos anos em relação ao que éramos forçados a escutar enquanto estudantes de graduação no início dos anos 90. Acho que um estudo formal de música é sempre uma boa idéia, não tenho arrependimentos de ter cursado uma faculdade de música. Mas sou crítico ao sistema que alimenta uma polarização entre compositores que fizeram seus nomes ligados a alguma instituição e os outros compositores. 

Por fim, gostaria de saber se você identifica particularidades no modo como a música é concebida, produzida e consumida. De onde vem a música hoje?
A passividade do consumo nos dias de hoje parece estranha para mim. Não vivemos em uma época onde as pessoas estejam inclinadas em definir seus próprios gostos. Elas parecem mais felizes em ser alimentadas, seja de forma invisível ou mesmo ativamente. A idéia de pesquisar durante anos para gravar uma composição, depois de ter lido sobre ela uma década antes, é uma coisa difícil de explicar para as pessoas mais jovens. Especialmente nestes tempos de gratificação instantânea e de uma instabilidade ainda mais veloz. Apesar de termos os meios disponíveis para a pesquisa plena e para o mapeamento de qualquer idéia, continuo escutando toneladas de música completamente redunante, que copia quase exatamente a música pré-existente. Me pergunto por que isso acontece em tal escala como ocorre agora.

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