sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Sobre Repas Froid, décimo primeiro álbum de Ghédalia Tazartès


























Sabe-se que Ghédalia Tazartès começou a cantar aos 12 anos, por ocasião da morte de sua avó. Sabe-se também que ele costumava se apresentar por conta própria no Bois de Vincennes… Lendas que circundam a vida pouco conhecida deste cantor e compositor parisiense, nascido em 1947 e falecido esse ano. Com o lançamento de seu primeiro álbum em 1979, Diasporas, Tazartès adquiriu alguma notoriedade. Em 1982, lançou o que muitos consideram como seu álbum mais importante, Une éclipse totale de soleil, uma experiência com música eletrônica. Trabalhou regularmente como compositor para teatro e cinema. Sua obra transita entre aspectos da música oriental – principalmente a música árabe –, música concreta, noise, drone e colagens com sonoridades pouco convencionais. Repas froid é seu décimo primeiro álbum.

Muitas são as dificuldades e particularidades apresentadas pelo trabalho de Ghédalia Tazartès, especialmente neste Repas froid. Diante do mistério que envolve seu nome e o caráter esporádico e desafiador de seus álbuns, somos tentados a falar mais do artista que do disco em questão, o que não faremos. Mas, visto que muito do aspecto anômalo de sua obra advém da capacidade de a cada momento reportar as obras anteriores, numa espécie de autofagia cíclica, cabe notar que Repas froid não é seu álbum mais impressionante, ficando com o de 1982, Une éclipse totale de soleil, o papel de representar o extremo criativo deste artista idiossincrático. Nele, ainda que algumas características recorrentes estejam ainda presentes, como a aproximação com o canto árabe (ou talvez arabo-andaluso) e a inclusão de vozes cotidianas, Tazartès explora de forma mais ampla a música eletrônica, criando sonoridades que podem alçá-lo tranquilamente a precursor de um Autechre, por exemplo. Assim, para tentar compreender o estatuto de Repas froid na obra de Tazartès, procurei conhecer todos os seus álbuns, o que me levou não somente a surpresas de ordem estética, como também tive acesso a uma sorte de reflexão que ultrapassa a própria questão musical em direção ao campo da reflexão sobre arte. Pois, na minha opinião, Guédalia Tazartès é um “artista plástico”, no sentido contemporâneo do termo, que se utiliza da música para propor questões próximas da arte.

De Duchamp, por exemplo, percebemos a influência no modo com que ele descodifica certas formas musicais, como a música árabe e a música concreta, utilizando-as de outra forma, geralmente irônica ou fake. Ou ainda como sua música tem uma dimensão de jogo, de gadget, projetando e recortando formas musicais avulsas e sintonizando-as com contextos absolutamente diferentes dos originais. De Kurt Schwitters percebemos um desenvolvimento particular da idéia de “obra de arte total”, na medida em que ele transforma em matéria artística até mesmo as sonoridades que não se identificam com o discurso musical. O método também ecoa nos modos da música: reza a lenda que, como um colecionador de objetos, Tazartès produz trechos e os compila em um enorme arquivo, de onde podem sair excertos diversos, compostos em datas variadas. Muitas vezes, graças a este procedimento, somos surpreendidos por vozes e sonoridades que já existiam em álbuns anteriores, mas que retornam como meio de autorremissão, mas também de descontextualização. Extremamente particular e ousada, a música que emana deste Repas froid é inseparável deste contexto: tanto é uma experiência sonora que joga com as noções de “música”, “autoria” e “ineditismo”, como também coloca em perspectiva o pensamento inaudito deste verdadeiro autor.

A audição, por sua vez, não é simples nem fácil. Requer do ouvinte que ele jogue o jogo e se deixe inebriar pela sequência de faixas sem título repletas de momentos esculpidos com delicadeza e espírito. Em Repas froid, discussões familiares são entrecortadas por fanfarras poliétnicas, barulhos diversos, interlúdios chopinianos, cantos de variadas procedências e tipos, corais, orquestras, sons eletrônicos, repetições, conversas, bate-boca, balbucios, coisas quebrando, cenas cotidianas, minutos de silêncio… Sem dúvida são elementos variadíssimos, mas posso estar passando a falsa impressão de que se trata de uma balbúrdia… Ocorre porém que algumas audições vão dando contorno a uma concepção muito bem delineada. Sim, trata-se de uma bricolage, mas, ao contrário da gratuidade que percorre muitas bricolages contemporâneas, as criadas por Tazartès são preenchidas por altas carga de expressão poética e dramática, tanto no que diz respeito ao seu poder de maravilhar, como também na capacidade de criar nexos surpreendentes e reportar a questões de ordem reflexiva. E começo até a me contradizer, tamanha a confusão que Repas froid causa: não sei se ele intriga mais que leva a reflexão, ou vice-versa.

Embaralhamento de sentido, poder de transfiguração, carga reflexiva. Se estas características definem o álbum e, em certa medida, todo o esforço de Tazartès, isso fica claro assim que passsamos a ouvi-lo. Pois o sabor de Repas Froid não se manifesta enquanto não encaramos a estrada árdua que leva ao cerne da dimensão filosófica de seu trabalho, a saber: que a música nada mais é do que aquilo que elegemos como parte integrante do discurso musical, e mesmo a vida pode ser música conquanto está em nosso poder exprimir uma perspectiva; que o discurso musical é apenas um enfoque determinado por condições morais que se refletem diretamente na fruição e que a expressão humana contém potencialmente todas as formas da arte; e que, por fim, a imaginação de um artista não carece necessariamente de diálogo com a arte, mas sobretudo com o “fora” da arte, com o movimento propriamente dito da vida. A música de Tazartès é um fervoroso louvor a este “fora”, ao movimento das coisas, e Repas froid exprime de forma admirável este pensamento.

PS.: Será este garoto que fala no disco é o mesmo que fala em Une éclipse totale de soleil? Será que é o jovem Tazartès em gravação de arquivos?

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