quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

(crítica - disco) Sorry Bamba – Volume One 1970-1979 (2011; Thrill Jockey, EUA [Mali])

O altissonante, uníssono e quase unânime “NÃÃÃÃÃÃOOOOOO!!!” que ecoou na gare da Leopoldina, no Rio de Janeiro, no segundo dia do festival Back2Black, à pergunta que Oumou Sangaré endereçou ao público presente: “Vocês conhecem o meu país?” (“conhecia” não na acepção turística estrita do termo, mas no que se refere mesmo a sua existência no mapa mundi), fornece a medida do grau de interesse em geral pela África, entre nós. Sangaré, responsável por um dos momentos mais elevados do festival, ao lado do “conterrâneo” Tinariwen (as aspas, aqui, lembram que seus membros nômades podem ter nascido em qualquer um dos países recortados pelo Saara, como determina o incerto e secular roteiro tuareg), pertence ao Mali, nação situada na costa ocidental africana composta, em grande parte, pela influência cultural do Islã.

Esta introdução serve para fazer as honras ao lançamento da compilação de um outro e referencial conterrâneo dessas duas atrações presentes à última edição do referido festival: Sorry Bamba.
A gravadora independente nova-iorquina Thrill Jockey – através da prospecção, produção e compilação realizada pelos dois guitarristas da banda Extra Golden (que funde rock com a benga queniana), os norte-americanos Alex Minoff e Ian Eagleson – lança o primeiro volume de um período específico da carreira de Sorry Bamba, Sorry Bamba: Kanaga Orchestra of Mopti, Regional Orchestra of Mopti (1970-79), cuja “Porry”, que integra a coletânea World Psychedelic Classics 3, Love’s a Real Thing: The Funky Fuzzy Sounds of West Africa, de 2005, decerto já não era novidade para quem realmente se interessa por música africana. Nascido em Mopti, a “Veneza do Mali”, situada na confluência fluvial e metafísica dos rios Niger e Bani, Sorry Bamba, a frente da sua L'Orchestre Kanaga De Mopti (para a Thrill Jockey, Kanaga Orchestre of Mopti), é um autêntico autor musical. Filho de um nobre fiel ao Império Mandinga de Samory Touré – o histórico líder e estrategista militar da resistência malinesa à colonização francesa –, Bamba se manteve inicialmente afastado do seu verdadeiro ofício para vê-lo praticado exclusivamente pelos griots, conforme o rigor da tradição local. Daí, só veio a abraçar finalmente o seu dom na adolescência, com a morte do pai. Em 1957, formou o Group Goumbé, logo renomeado de Bani Jazz, após a independência do Mali (ignoramos a possível relação entre ambos os eventos) e, mais tarde, ao final da década de 1960, rebatizada – até os dias atuais – de L'Orchestre Kanaga De Mopti. A trajetória de Sorry Bamba acabou por torná-lo um dos artistas mais célebres do seu país.

Mas tratemos propriamente de Sorry Bamba: Kanaga Orchestra of Mopti, Regional Orchestra of Mopti (1970-79)...

O órgão meio “mântrico” de “Yayoroba” abre o álbum apresentando a atmosfera geral das suas faixas. E atmosfera é mesmo o termo preciso, já que o repertório em geral de Sorry Bamba se apoia no prolongamento e na repetição que propiciam o transe – características de parte considerável da música elaborada e executada em território malinês. “Boro”, a faixa seguinte, além de apresentar o domínio de uma percussividade mais suave, própria a sua música, é aquela que traz mais ostensivamente o dedilhado da kora, instrumento de cordas original da costa oeste africana, muito utilizado pelos griots. “Astan Kelly”, a quarta faixa, destaca-se como a composição de maior sotaque afrocaribenho da coletânea. (Não há dúvida de que ela carregue as marcas das vias de ida e vinda do roteiro traçado pelo “Atlântico Negro”, como o “canônico” sociólogo Paul Gilroy cartografa a diáspora negra mundial. Precisamente onde e quando a sonoridade “afrocaribenha” despontou nesse roteiro é uma questão que condena, de antemão, todo e qualquer esforço de pesquisa a sondar o Mistério.) “Sekou Amadou”, que figura aqui como um registro supostamente ao vivo (tudo indica que os aplausos que ressoam em três momentos sejam enxertados), é mais abertamente afim à cultura musical muçulmana (seu canto é prova disso). Na faixa seguinte, “Sayouwe”, comparece a batida soulfunky mais ao modo de uma Orchestre Poly-Rythmo, de Benin, notória por fundi-la com o sato, ritmo usado nos rituais vodu. (É claro: esta impressão pode causar grande espanto e/ou contrariedade a um malinke.)

Mas há duas omissões imperdoáveis na coletânea. “N’Do N’Do”, do álbum de 1977 da orquestra (e cuja capa é uma peça de arte por si só), está incompreensivelmente ausente dela, com a sua síntese de guitarra funky e teclados hipnóticos com as estruturas rítmicas da etnia dogon, à qual pertence Bamba. É possível entreouvir nessas estruturas uma involuntária sugestão da sonoridade eletrônica contemporânea (e notemos o quanto as derivações do funk costumam ser pouco reconhecidas a sua fonte original), o que ajuda a desmontar as convicções de um tão acionado “darwinismo musical” que ainda teima em apontar avanços e atrasos segundo critérios culturais sempre parciais. De resto, nesta faixa em particular, há momentos (principalmente no diálogo meio falado, meio cantado do maestro com a sua orquestra) que não à toa lembram, e muito, outro conterrâneo de Sorry Bamba, mestre dessa forma específica de sincretismo musical afrodiaspórico que é – e não é – a tão recorrente aclimatação do funk às suas “origens”: o saxofonista Moussa Doumbia. (Entenda-se: é pelo ângulo panafricano, que estende a África a toda a presença negra no mundo; e não é pela sabida impossibilidade de se delimitar com exatidão as fronteiras em que se encerraria seu território cultural; afinal, alguém aí saberia precisar em que etnia o tronco familiar dos Brown da Carolina do Sul deita suas raízes? Quem o souber, favor informar...) Doumbia é, de fato, uma rara referência de visceralidade na tradição da fusão afrofunk (suas gravações dos anos 1970 fazem a agressividade rítmica do queniano Matata soar bem mais palatável, em comparação). A outra omissão, a autorreferente “Kanaga”, também do álbum de 1977, abusa da polirritmia num arranjo que inclui experimentações com ecos vocais e wah wahs que remetem, sem chance de erro, à estética psicodélica. (Evidentemente, o repertório da presente coletânea, também.)

Apesar das omissões apontadas, Sorry Bamba: Kanaga Orchestra of Mopti, Regional Orchestra of Mopti (1970-79) é uma obra-prima porque, coerentemente, compila material que faz jus a essa qualificação. Aguardamos por Sorry Bamba, no esplendor dos seus 73 anos, como a carta malinesa da vez na próxima edição do festival Back2Black. Assim desejamos...

Lucio Branco

Ouça a faixa "Astan Kelly"

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