Autoconsciência: essa bravata hegeliana que rima com autodestruição. O "para si" de uma autoconsciência corresponde a sua duplicação interior, reconhecimento, "pura forma vazia: o 'eu sou eu'" (Sartre). Trata-se uma aposta arriscada através da qual o distanciamento pode vir a implicar em prepotência — e "o ser" resta afrontado por espelhamento, comparação, excesso de si. O reconhecimento do igual para que haja representação e, portanto, duplicação.
O rap e suas técnicas africanas, jamaicanas e norte-americanas de enunciação ritmada, que também manifestam uma autoconsciência, produzida porém pelo jogo/fluxo das sílabas e vogais, entonações e quebras, aceleração e ralentação, timbres e melodias. Qual a função do ritmo na fonação do enunciado se não produzir algum grau de sintonia e arrastamento entre quem fala e quem ouve, entre o espaço-tempo do flow, o território e suas ocupações?
Autoconsciência em Hegel: o espaço de uma duplicação que deglute a si mesma (tautologia); o rap como técnica de enunciação: a duplicação como o efeito de um movimento exterior que produz sintonia rítmica e vibratória. É evidente que no segundo exemplo a história se torna algo mais problemático do que o caráter interno de uma percepção que se reconhece a si mesma — e nesse sentido talvez não exista nada mais revolucionário na passagem do XX para o XXI do que os Racionais MC's e a forma como produziram uma autoconsciência coletiva que percorreu todas as perifas do país — concretizando a profecia de Candeia: "e o samba que criei tão divino ficou, agora sei quem sou".
E, recentemente, nada mais perturbador do que tudo o que se relaciona ao nome de Kanye West.
West assumiu que seu personagem, sua música, suas opiniões, sua "imagem" se tornariam o vetor capaz de concentrar todas as encruzilhadas e conflitos do nosso tempo: a "saúde mental", a dissolução da política, o neoliberalismo de causas, a estética nervosa e misteriosa, as cintilâncias do fim do mundo, o problema do valor, da máquina e do corpo-máquina, a forma como a questão racial vem sendo empacotada para pronta entrega (Amazon), o empreendedorismo, o absurdo efervescente, a forma como os negócios podem se transformar em motivo de uma cegueira, o fantasma do fascismo, o meme...
Hegel quer prolongar uma ficção, seu solipsismo PRECISA ignorar o levante haitiano, sob pena de manifestar a contradição colonial em praça pública.
O rap dos Racionais é a autoconsciência que delira uma coletividade, cujo caráter fraternal nasce das "experiências vividas do negro".
Já Kanye é a autoconsciência duplicada pela impossibilidade de uma coletividade, de uma fraternidade: é o movimento patológico de uma autoconsciência que não se duplica nem interna, nem externamente, provocando curto-circuito em todos os mecanismos de representatividade. Alteridade suspensa. O recurso a si mesmo — sujeito ou boneco ou andróide — foi interrompido, não funciona. Se Michael foi o corpo biônico, prêt-à-porter, farmacobiomaquínico, concebido a partir de uma artesania complexa, jogando de toda forma com os ritmos da rua e da roda de malandragem, posteriormente esquadrinhado até a morte para render na lógica da indústria cultural, Kanye é o proprietário irresponsável, o experimento inconsequente, a impossibilidade de render qualquer tipo de homenagem a tudo o que de mais abstrato o capitalismo do século XX logrou realizar. É desconcertante que ele dispute o tênis e a marca do tênis. É a reterritorialização paródica da autoconsciência que falha em se duplicar para dentro (do eu) ou para fora (nos braços da multidão). Mais do que um reflexo do "estágio final do capitalismo", West parece acelerar seu destino de forma mais eficaz que aqueles filósofos do aceleracionismo... Ritmo e aceleração transbordam da música para travar a máquina.
Go West, quer dizer, prejudique tudo o que produz falso bem estar e "consciência limpa", pois daqui em diante de nada te servirão.
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