terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

"O carnaval é..."























Há apenas uma aparência de consenso em torno do problema do carnaval (ou do carnaval enquanto um problema) — aparência provisória, aparência de classe, aparência-espetáculo, aparência-fim-de-férias, aparência meramente laudatória ou jornalística.

O que o carnaval é — isto é, o que significa ou "torna individual" — pouco importa. O que não impede que façamos um mergulho na busca pela sua essência. Como essência e existência se confundem nos diversos regimes de causalidade que atravessam o carnaval, trata-se aqui de reconhecer a impossibilidade de uma totalidade homogênea. Toda resposta, portanto, deve manter uma certa compostura, pisar "com o devagar" e assumir-se necessariamente provisória, perigosamente fragmentária.

O que é o carnaval? 

Para o técnico de barracão que trabalha em alguma agremiação, ele pode dizer que o carnaval lhe constitui. Sob esse ponto de vista, o carnaval implica no espaço de uma prática de sobrevivência e expressão: arte, técnica e muito trabalho, em geral mal remunerado definem a sua atividade. Sua prática ocupa um espaço-tempo dilatado, se prolonga durante quase todo o ano — "são escultores, são pintores, bordadeiras. São carpinteiros, vidraceiros, costureiras. Figurinista, desenhista e artesão. Gente empenhada em construir a ilusão..." Para este folião, que tem sonhos como a velha baiana, sustento e sustância decorrem de uma prática, de uma cultura, de uma imaginação.

Já para o folião sazonal, o carnaval basicamente representa um período de festa que corresponde justamente àquilo que a grande maioria dos historiadores e teóricos do carnaval apregoam como se não houvesse amanhã: a eclosão de um tempo — o tríduo de Momo — regido pela lógica dionisíaca, a suspensão e a inversão dos papéis correntes que, assumindo o caos da ordem social, por si só já desafiaria o poder e o estado das coisas. A cidade se transforma em uma "festa política" pelo seu suposto caráter transgressor: rasgamos nossa fantasia social diante de um paraíso selvagem onde todos os frutos são saborosamente proibidos e todos os caminhos levam ao êxtase. É muito evidente os limites dessa visão que vem sendo corroborada por dentro dos fluxos do desejo das classes médias — e no caso carioca, o plural se aplica.

Não vou entrar em detalhes no que diz respeito às preocupações dos homens que sustentam as estruturas de poder que regem o carnaval, tanto na Sapucaí, quanto na distribuição territorial dos recursos e permissões do carnaval de rua. Não menciono também o gari, o camelô, o diretor de ala, o jurado branco julgando o samba negro, o músico, o componente de outra cidade e de outro país, os blocos abastados e os blocos deserdados pelas associações e pelo poder público.

A moral da história , sempre provisória: ao enunciar três ou quatro perspectivas sobre a experiência vivida do carnaval podemos perceber o quanto essa festa grita na nossa cara a forma como não há qualquer consenso ou conciliação acerca de sua realidade. Qualquer tentativa de fazê-lo recairá necessariamente no oportunismo e na falácia explícita no mito da inversão.

A política, a cultura, a informação e, sobretudo, o que se costuma chamar de "estética" — no caso do carnaval, talvez uma "tecnoestética" onde o "saber fazer" se torna fundamental — constituem o espetáculo, na rua e na avenida, onde a coisa se complica: há a preparação real, há as interpretações teóricas, há o jornalismo e toda uma cadeia de poderosos e privilegiados que ostentam seus crachás, mas, em todos os cenários, é o povão mais pobre que concebe e orienta o que a gente costuma chamar de produção: a dança, a música, a organização do espetáculo, a percussão e as cordas, a plasticidade das fantasias e dos carros, nada disso foi criado pela classe média purpurinada, tampouco pelos donos do poder. 

Uma ironia insuportável: a ideia de que se trata de um espetáculo popular, alegre e político, contrasta e esconde o manancial de apropriações e "doces ilusões" de integração e função ética. O "ethos" positivista do discurso hegemônico sobre o carnaval esconde o "pathos" (a distância, a injustiça) que marca sua realidade.

E mais uma vez a questão se complica: regido por uma lógica onde o oprimido deseja se tornar o opressor, a produção acaba se confundindo com a reprodução das relações de poder. O carnaval como algo cotidiano e o carnaval como experiência pontual não se confundem, até porque estão separados pelo trabalho manual e artesanal, esse crivo que desde o século XVIII opera um limite a demarcar o estrato social e os conflitos por títulos de nobreza.

O entrudo do XIX e seu desdobramento, o bloco carnavalesco dos anos 30 aos 60 no Rio, Recife e Salvador, que servem de modelo para o "bloquinho" de São Paulo e Zona Sul do Rio, era a festa do trabalhador, do operário, dos deserdados da ordem social. Trata-se mais do que "apropriação", estamos nos perguntando sobre quem de fato produz trabalho e imaginação. Dizer que o carnaval é revolucionário é relativamente simples, basta escamotear a forma como seus aspectos revolucionários são cooptados e amortizados pelos interesses econômicos.

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