quinta-feira, 17 de outubro de 2024

O ELEMENTO ACENDRADO
























Escritos advindos de épocas longínquas, hoje disponíveis na internet, indicam que a mística da medicina universal, a Alquimia de Trismegisto, viria ao mundo não pelos saberes de um químico medieval, como o suíço-alemão Paracelso, nem de um cientista moderno, bancado, equipado e atualizado como o russo Prigogine. Mas pelas mãos firmes e cadenciadas de um ogã de terreiro de candomblé, ritmista de escola de samba ou qualquer outro mestre dos transes rítmicos. Um ser prático em estreita comunhão com seus tambores e apetrechos percussivos, a espalhar uma sorte de feitiço capaz de transmutar a matéria inferior, intervir em todos os seus estágios, sobrepassar o nigredo, o albedo, o citrinitas em direção à pedra filosofal. E, é claro, catalisar o elixir da longa vida.


O ogã e o ritmista prolongariam a ciência alquímica pela competência neuromuscular de evocar as claves tridimensionais, figuras rítmicas expansoras da consciência,  — os chamados “elementos acendrados”, doravante EA, poderosos liberadores de seus efeitos. Dominando as técnicas da batucada, o batuqueiro domina também o elemento primordial que rege o funcionamento, a cadência e o grau de expressão em todas as coisas: a Ciência do Ritmo. Depois, aplica seus conhecimentos em processos transdutores festivos ou devocionais, expandindo ressonâncias psicocoletivas com incontestes benefícios medicinais. A ciência do batuque, com seus arsenal de claves e floreios, viradas e quiálteras, graves, médios e agudos timbrados por couro, ferro e madeira, transforma os toques do candomblé e os desenhos rítmicos das Escolas de Samba em poderosos indutores do transe purificador.


Há que se notar, contudo, o controverso efeito narcopolítico: o ritmo que chama o corpo, o corpo que chama a dança, a dança que chama a pisada e a pisada que revolve o barro e o asfalto, interferindo na estabilidade precária do chão onde todos pisam, emanando efeitos gravitacionais que se alastram sob a forma de tempestades elétricas, desestabilizando a curvatura do espaço-tempo e, assim, a consistência do sistema que sustenta planetas, estrelas e galáxias. Documentos esparsos, alguns deles bastante misteriosos, dão conta deste enorme contrapoder, como o do cearense Tristão de Alencar Araripe Jr., que relata uma noite em pagode no interior do Sertão, ainda no século XIX: "As violas temperaram-se; [...] e das unhas dos tocadores nasceu um baiano rasgado, capaz de fazer estremecer ao mais bisonho filósofo".


Talvez por esse motivo pululem as narrativas, por vezes apócrifas, acerca dos viajantes cósmicos em busca de EAs. O objetivo é capturar, sugar e enviar esses elementos, reconduzindo-os primeiramente para a América do Norte, depois para o epicentro da galáxia NGC 6872, na Constelação de Pavão, onde um poder descomunal, tecnicamente desenvolvido, porém perigoso e despótico, toma conta do pedaço. Longe de serem os nobres exploradores pintados pelo cinema americano em trajes de astronauta, esses viajantes são seres mutantes que tomam emprestadas as formas dos habitantes locais com o objetivo de se misturar à população e extrair os EA de onde quer que eles sejam emitidos: casas de santo, terreiros de samba, praças das cidades do interior, beira de riacho, botequins... Percorrem wormholes e teias cósmicas como mercenários desvairados, incumbidos por um governo intergaláctico tirano de usar seu poder tecnológico com o objetivo de capturar os EA, na maioria das vezes criados, conservados e ampliados por civilizações mais sábias e antigas que as que hoje dominam o espectro do universo observável.


Algumas descrições, igualmente lacunares, introduzem a personalidade mesquinha de um desses mercenários cósmicos, vulgarmente conhecido como Walter Scott, que teria se materializado no Brasil em algumas situações. Em 1812, no interior do Recife, segundo uma célebre descrição realizada pelo satírico Lopes Gama, padre pernambucano que cantava: "Aqui pelo nosso mato, qu'estava então mui tatamba, não se sabia outra coisa senão a dança do samba”. Com seus aparelhos altamente sofisticados, Scott teria detectado o EA no batuque dos negros que, com a consolidação da vida urbana nos centros nordestinos no século XIX, foram relegados ao interior rural. Sua tendência pela batucada africana em detrimento do coco, do sabão e do lundu chorado que grassavam na cidade grande, foi indicada pelo poderoso espectofotômetro quântico que carregava a tiracolo.


Depois, Scott migrou para a Cidade de São Salvador em 1835, durante uma insurgência batizada como Revolta dos Malês — "imalês", muçulmanos cultos de língua iorubá, conhecidos como nagôs que, vestidos de branco e imbuídos de suas crenças religiosas, buscaram tomar o poder na cidade. O conflito violento ocasionou a derrota do grupo pelas mãos das forças policiais, mas desempenhou um notório papel de enfraquecimento do regime escravocrata. Houve a suspeita, relatada aqui e ali sob a forma de enigma, de que Scott teria sido absorvido e possivelmente eliminado pelos estampidos das balas nas ruas e, posteriormente, pelos toques dos aguidavis nos terreiros.

Aportou, porém, alguns anos depois, mais precisamente em 1859, caindo de paraquedas no interior do Ceará, sob olhares curiosos da população que, obviamente, desconhecia o artefato esvoaçante. Tratava-se de uma festa de samba e de fado, onde se articulavam várias danças, algumas delas bastante insinuantes do poderoso quantum sexual emanado pelo choque dos umbigos, conhecido como embigada, transformando a consciência cósmica de todos os envolvidos e disparando processos de acendramento rítmico e purificação coletiva. 


O viajante tem uma missão e não pode falhar: capturar as claves acendradas que atravessam e concentram a força vital em todos os elementos. Por isso, viaja através de muitos tempos e temporalidades. Sua viagem é meticulosamente caótica, construída como um mapa de saltos entre dimensões excêntricas, nunca a linha reta. O sentido e a direção não mudam: o mapa está aberto, as coisas estão aqui e ali dispersas. O que esse mercenário intergaláctico procura?


Conta o estudioso Francesco H. que, em virtude do crescimento do primeiro terreiro de bamba no bairro do Estácio, Rio de Janeiro, nem todos os foliões conseguiam escutar a melodia e a letra que eram entoadas pelos seus criadores. Com a intenção de resolver este problema técnico, o sapateiro Alcebíades lançou mão de suas habilidades, revestindo com papel de saco de cimento umedecido  uma lata de manteiga de vinte quilos. O resultado demiúrgico foi a criação deste instrumento grave ao qual denominaram "surdo". Consta que Alcebíades teria manufaturado quatro exemplares deste novo instrumento, que durante os desfiles eram comandados pelo Lacerda, que também soprava a flauta, como poucos. Este era o objeto da missão: capturar os efeitos amplificadores emanados pelo excelso tambor. 


Essas ideias lhe passavam pela cabeça, como em um flashback premonitório, enquanto lhe chegavam memórias do futuro. Despontava o verão de 1928. O tempo retrocede em fast forward: o ensaio já estava armado fazia pelo menos algumas horas, quando o forasteiro aprochegou-se ao número 29 da Rua do Estácio, uma loja de roupas situada no futuro. Uma descontração frágil escondia o arrancar das tripas: forasteiro é pra ser visto, avaliado dos pés à cabeça! Já estavam lá o Silva, o Bastos, o Barcelos (mais conhecido como o Bide), o Baiaco, o Brancura, o “Amor” e até mesmo o renomado Lacerda! O clima não era bem o das poses dramáticas de um western norte-americano, mas o de um épico russo, clima mafioso encasacado e charuteiro que vemos em “Tempestade sobre a Água” do bolchevique Pudóvkin.


Aproxima-se do cortejo, sob o olhar ensimesmado do pessoal da bateria. O aparelho que se prende ao seu encéfalo e a todo sistema nervoso por meio de uma bioporta, capaz também de sugar veias poéticas, conecta-se rapidamente com os graves emitidos por aquele estranho objeto técnico. O processo é altamente precarizado quando ocorrem interferências, como as que emanam a alguns quilômetros dali, oriundas de aparelhos como o Fonógrafo Elétrico, o Grafofone e o Cinematógrafo. Scott perde tempo, faz ajustes, nada adianta. Os surdos desengomam na avenida, o balanço se faz sentir a cada macetada no coro e na madeira. É quando os militares, mancomunados com os policiais e os assistentes de farmácia, se adiantam em assaltar o invento logo nas primeiras horas do desfile, assassinando o supremo artífice Alcebíades sob olhares cúmplices de todo o Largo e deixando o mercenário literalmente na mão.


Dois casos corriam à miúda, quase em paralelo ao episódio do Estácio. Breves aparições sem grande êxito nas gravações do “Canto de Ogum” e outros pontos de umbanda por Mano Elói e Getúlio Marinho, “o Amor”; e na gravação de “Na Pavuna”, música de Almirante e Homero Dornelles (codinome Candóca da Annunciação) em 1930, primeiro registro fonográfico dos instrumentos de percussão do samba, como o surdo e o pandeiro, o ganzá e o tamborim. Mais tarde, a chamada Operação Fagner ocupa grande parte de seus planos. Em 1892, Fred Fagner chegava ao Rio de Janeiro após ter percorrido algumas cidades do Nordeste Brasileiro e se encantado com as águas do Mucuripe. Maravilhado com as belezas nacionais, decidiu aparafusar o Brasil na cachola e escolheu o Rio para fixar residência, trazendo na bagagem o Fonógrafo Elétrico do yankee Edílson Tomás, com toda a parafernália de cilindros, baterias e vidros para diafragma. Feitos de cera, os cilindros podiam ser raspados e polidos para novas gravações. Scott fez questão de baixar na Rua do Ouvidor e soprar no ouvido do então cientista e produtor fonográfico: a temperatura escaldante do Rio de Janeiro favorecia a penetração cósmica do som, aperfeiçoando o método de captura, garantindo o bom resultado para muitas das gravações realizadas na época e melhorando sua expectativa de emissão através das galáxias.


Na mesma época em que Segreto e o bicheiro Cunha Sales importavam a máquina de roubar vistas para o Brasil, multiplicavam-se as primeiras juke-boxes, os clientes podendo escolher a música mediante a aplicação de moedas. No mesmíssimo local, mais precisamente na Rua do Ouvidor, aportavam, de Nova Iorque, os fonógrafos de Edílson, exportados por Frederico Prescott, enquanto Thomaz Mitchell mandava trazer cilindros e grafofones de Columbia, todos arrematados por Fagner. Concomitante à Abolição da Escravatura, o novo invento permitia a coleta providencial, ainda que limitada, de lundus e batuques negro-brasileiros. As antenas ligadas do fundo cósmico, em pleno contato com os norte-americanos, detectaram a polêmica operação de captura. 


A última notícia que se teve da aparição desse visitante de mau agouro se deu ainda nos anos 40, na Festa da Penha. Dizem que Scott fumava um robusto cigarro de liamba e rumava desengonçado ao lado do Tuna Mambembe de Raul Malagutti e do Grupo Fala Baixo, que trazia à frente o violão de Sinhô. Lá teria topado uma tal Clementina, portadora de uma voz cujo alcance, seus sofisticados aparelhos confirmavam, não havia registro em qualquer galáxia conhecida. Percebendo a presença do rato olhando como um demônio faminto por sobre o ombro da cantora, Donga se antecipou na frente do monstro e gritou: “Sai Ojô-Kokorô!” O forasteiro deu um salto pra trás, como Corisco em Deus e o Diabo, e se desmaterializou em frente à escadaria, causando, primeiro, espanto pelo inusitado espetáculo de seu desaparecimento, e, depois, um alívio certo em todos os presentes. E o samba continuou.


Me ocorreu que o diligente alienígena poderia ter voltado agora à velha Penha, seus aparelhos completamente desnorteados com a gira digital que se podia auscultar nas imediações da chamada Rua Aimoré, onde, aos sábados, terráqueos malemolentes espraiavam-se uns sobre os outros ao som de um beat acelerado que lhe lembrava muito as claves sedutoras do sertão negro. Aos invés de couro, ferro e madeira, relegados a funções estruturais, estes sons advinham de máquinas muito semelhantes àquelas que Scott carregou por séculos a serviço de um poder que, agora, lhe abandonara pelas galáxias da vida. E que, cansado de subserviência, enamorado do sambão e dos seres de pele escura que nortearam sua vida por tanto tempo, teria resolvido servir não mais ao poder, mas ao contrapoder. Em busca de redenção, culpado por sua atuação servil nos séculos anteriores, armou-se para encarar o despotismo local e libertar na marra um dos líderes desta nova e carismática seita, preso como bode expiatório e simbólico do novo e velho racismo que o acompanhou por toda a sua trajetória brasileira. Conferiu os bolsos, as armas carregadas e a munição de sobra, granadas, facas e facões, tensão a mil. Deu uns tecos na nota de dois e, em busca do EA perfeito, se dirigiu à delegacia como quem vai de encontro a um destino inexorável.


2020


terça-feira, 2 de julho de 2024

CANDEIA E A OUTRA FILOSOFIA DO SAMBA















Antônio Candeia Filho foi compositor, instrumentista e portelense desde a infância. Seu pai, Antônio Candeia, integrou a escola de samba Vai Como Pode, que deu origem à Portela em 1923. Integrou a segunda geração da Escola, junto a baluartes como Monarco, Casquinha, Manacéia, Catoni, Norival Reis, entre outros. Em 1953, com apenas 18 anos, ganhou o primeiro dos cinco sambas que venceria na Portela. A partir de 1957 se tornou policial militar com fama de truculento e arbitrário, chegando a prender o próprio irmão de criação, segundo o testemunho do compositor Waldir 59. Em 1965 levou um tiro em briga de trânsito que o encerrou em uma cadeira de rodas, evento que alterou profundamente sua visão de mundo e sua música. Foi gravado por dezenas de artistas, emplacando sucessos na voz de Clara Nunes (“O Mar Serenou”), Cartola e Marisa Monte (“Preciso me encontrar”), Elizeth Cardoso (“Minhas Madrugadas”) e Paulinho da Viola (“Filosofia do Samba”), entre outros. Pouco antes de sua morte em novembro de 78, publicou, em parceria com Isnard, o livro “Escola de Samba — A Árvore que Esqueceu a Raiz”, denunciando a interferência de “influência externas” nas Escolas de Samba.[1]

Ainda hoje é reconhecido como um personagem decisivo na preservação das tradições ancestrais da cultura negra no Brasil. No entanto, um olhar mais atento revela que, mais do que um tradicionalista ou um defensor das “coisas nacionais”, Candeia foi um artista capaz de olhar para o futuro e reinventar o samba de muitas maneiras. Em 1975, preocupado com os rumos excessivamente comerciais das escolas de samba, fundou o Grêmio Recreativo Arte Negra Escola de Samba Quilombo (GRANES Quilombo). A iniciativa agregou o apoio imediato de compositores da envergadura de Nei Lopes e Wilson Moreira, que escreveram dois sambas antológicos para a agremiação: “Ao Povo em Forma de Arte” e “Noventas Anos de Abolição”. Por outro lado, recebeu críticas negativas de jornalistas como Sérgio Cabral, pois “os integrantes da Quilombo deveriam usar a sua energia para tentarem modificar suas próprias escolas.” Afeito à polarizações simplórias, o ambiente cultural carioca titubeava diante de um personagem tão idiossincrático: ora o o compreendia como profeta, ora como niilista. Como lembrança pelos seus 80 anos, lanço uma pergunta: entre essas duas perspectivas, o profeta e o niilista, não haveria a possibilidade de pensarmos um outro Candeia?

Através do manifesto do Quilombo, Candeia assinava sua carta de intenções:

“Não sou radical. Pretendo, apenas, salvaguardar o que resta de uma cultura. Gritarei bem alto explicando um sistema que cala vozes importantes e permite que outras totalmente alheias falem quando bem entendem. Sou franco atirador. Não almejo glórias. Faço questão de não virar academia. Tampouco palácio. Não atribua a meu nome o desgastado sufixo -ão. Nada de forjadas e mal feitas especulações literárias. Deixo os complexos temas à observação dos verdadeiros intelectuais. Eu sou povo. Basta de complicações. Extraio o belo das coisas simples que me seduzem. Quero sair pelas ruas dos subúrbios, com minhas baianas rendadas sambando sem parar. Com minha comissão de frente digna de respeito. Intimamente ligado às minhas origens. Artistas plásticos, figurinistas, coreógrafos, departamentos culturais, profissionais: não me incomodem, por favor."

O manifesto marcou o início de um projeto revolucionário que, em sua opinião, se fazia necessário: o combate a todas as formas de degeneração do povo negro em geral e do sambista em particular. O método para efetivar este programa em nada modesto, tomaria como ponto de partida o cultivo das tradições negras, especialmente a música brasileira de matriz Africana, como o jongo, o afoxé, o maculelê, o batuque da capoeira, etc. A fundação do GRANES Quilombo constituía um dos pilares desta “revolução”, acompanhada de outros elementos que Candeia cultivava através de declarações proferidas de maneira firme e didática, bem documentada por Leon Hirzsman no curta-metragem . Essa naturalidade assertiva e, ao mesmo tempo, pedagógica, por vezes adquiria uma tonalidade ideológica problemática, que alguns estranhavam como sendo xenófoba e, eventualmente, “racista”. De alguma forma, a reputação de Candeia se consolidou a partir do vigor com que se expressava, para o bem e para o mal. Se hoje os arautos do “samba de raiz” o consideram um exemplo a ser seguido, isso decorre da paixão com que defendia seus argumentos e do rigor com que compunha suas canções.

Sou da opinião de que essa fala vigorosa, essa convicção com que ele se dirigia a todos aqueles que o cercavam, fizeram dele um personagem controverso. Mas não explicam sua obra, influência e importância na história do samba. Me distancio dos argumentos aparentemente sectários, para além das palavras e das aparências, e me proponho a encarar a matéria propriamente dita, isto é, a música. Percebo, então, uma saudável e polêmica confusão, estimulada talvez pelo próprio Candeia. Tomemos Raiz, seu segundo álbum autoral, seu trabalho mais expressivo se adotarmos como critério não o vigor de seu discurso ideológico, mas o seu ímpeto criativo, sua capacidade de remodelar as tradições musicais que se dispunha a preservar e defender das “influências externas”. Lançado em 1971 pelo selo Equipe, o disco se chama, estranhamente, Raiz, embora o seu segundo título, escolhido para a reedição de 1976 pelo selo Padrão, fosse mais condizente com o conteúdo: “Filosofia do Samba”.

Isto porque o disco põe a própria noção de “raiz” em xeque e lança seu olhar para o futuro do samba como um futuro de progressivo amestiçamento, não só com ritmos locais, mas também com os ritmos estrangeiros. Sabe-se que Candeia era um ouvinte contumaz do jazz e do funk norte-americanos.[2] A concepção musical híbrida permeia cada faixa do álbum, o que nos obriga a descartar de saída qualquer preceito purificador e, portanto, qualquer possibilidade de se pensar o samba a partir de supostos elementos originários. Em Raiz, podemos observar uma síntese dinâmica de muitas formas de samba e de música negra do Brasil e do mundo: samba-enredo, samba de partido alto, jongo, funk, balada soul, samba jazz, choro, e outros ritmos e gêneros misturados indiscriminadamente. Somente essa característica já seria suficiente para destacar Raiz e o nome de Candeia do balaio purista da música brasileira. Mas não para por ai.

As letras de Candeia são diferentes de tudo o que o samba produziu até hoje, não somente pelo forte conteúdo poético e político, mas, sobretudo, pelo modo prodigioso com que ele operava sobre a forma e os nexos da poesia, entrelaçando palavras incomuns e criando deslocamentos semânticos independentes da língua culta. Um exemplo: em “Filosofia do Samba”, o seguinte verso: “pra cantar samba, não preciso de razão, pois a razão, está sempre com os dois lados”. Trata-se de uma nítida referência à razão objetiva científica ou filosófica, realocada em um sentido coloquial. A razão universal substituída por um encontro entre duas “razões” subjetivas, que debatem entre si como se estivessem em um botequim. Como bom partideiro (portador da capacidade de se exprimir no Partido Alto), especializou-se na arte do improviso, desenvolvendo um talento particular para incorporar palavras estranhas ao corpus lírico do samba sem parecer pedante ou exagerado. A exemplo de “Outro recado”, presente em seu primeiro disco de 1970 (“No recado que eu mandei a ela, eu dizia francamente o nosso amor chegou ao fim/Mas repercutiu profundamente em meu subconsciente, pois não podia ficar assim…”) ou no clássico “Dia de Graça” (Hoje é manhã de carnival, ao splendor/As escolas vão desfilar garbosamente…).

Por fim, destaco a concepção musical e os arranjos. Especialmente neste quesito, Raiz é um álbum que possui alguns paralelos com o caráter experimental dos discos de João Nogueira, Paulinho da Viola, Clementina de Jesus, Dona Ivone Lara, Roberto Ribeiro durante a década de 70: percussões gravadas de formas não-padronizadas, timbragens que variavam de faixa para faixa, aspectos incomuns se levarmos em consideração os discos de samba gravados hoje. Mas permanece como um exemplar único de ousadia formal e diálogo com tradições afro-diaspóricas overseas. Reparem, por exemplo, em “Saudação a Toco Preto”, uma das gravações mais originais de toda a música brasileira: maculelê rasgado, tema religioso, mas executado com a contribuição de uma sessão de metais no estilo do funk norte-americano. O resultado estimulou mais a imaginação da chamada MPB do que dos sambistas propriamente, regravada mais tarde pelo compositor carioca Pedro Luis. Possivelmente influenciada pelo mesmo movimento Black Rio que supostamente pretendia combater[3], “Imaginação” é um soul existencial muito semelhante aos que Tim Maia gravou em seus quatro primeiros discos, embalado por uma cama de teclado Hammond, cascata de cordas, solos de violão, bateria e contrabaixo “aveludados”. Nota-se também o emprego de efeitos de estúdio na bateria em “Vem É Lua” e no samba-canção “Quarto Escuro”, procedimento incomum no samba da época. Destaque para “Minhas Madrugadas”, a clássica ode à boemia, parceria com Paulinho da Viola. Mistura de ritmos, letras sagazes e arranjos inteligentes fazem de Raiz uma obra-prima artística (e filosófica) de primeira ordem.

Mas o que teria ocorrido com a reputação de Candeia? Por que, apesar de exprimir uma perspectiva plural através de sua música, foi reconhecido como um aguerrido defensor das “coisas nacionais”, um símbolo de luta e “resistência”, quando seu trabalho como compositor não se propunha exatamente a “resistir”, mas se afirmou através de uma obra singular? Ocorre que a atenção aos ritmos afro-brasileiros renegados pela indústria cultural, folclorizado pelos intelectuais e precarizados pelos aproveitadores de plantão,  identificava-se automaticamente com alguns dos discursos disponíveis na época, no caso, o nacionalismo e a valorização da negritude. Naturalmente, Candeia identificava-se com uma perspectiva que se confundia com o nacionalismo sectário de certas vertentes ligadas à academia e ao ambiente cultural, e usava o vocabulário e o aporte teórico disponíveis para justificar seu trabalho. Na opinião de alguns dos importantes intelectuais desta vertente — Sérgio Cabral e José Ramos Tinhorão, por exemplo —, o ato de resistir implicava no ato defensivo da preservação, não no ato positivo da criação. A prática, a música e a agitação cultural promovidas por Candeia assemelhava-se mais à uma proposta de reconstrução, recriação, remodelação do legado, do que na sua preservação. À moda de um tropicalista, Candeia deglutiu as informações que o cercavam e revivificou os ritmos afrobrasileiros, inclusive dispondo à sua maneira da música norte-americana da época. Como Tim Maia, como Tom Zé, como Pedro Sorongo, entre muitos outros.

Assim como, nos idos de 1940, o Terreiro de samba foi transformado em “Escola”, com o objetivo de revestir o samba de uma legitimidade considerada necessária, o pensamento do sambista nos últimos 30 anos agarrou-se a uma perspectiva fundadora, aparentemente radical, porém frágil e irrefletida. Não há nem nunca houve “samba de raiz”. O que ocorreu foi a reprodução impensada de mecanismos ideológicos em favor de sobrevivência e posicionamento social. Mecanismos que buscaram atrelar o samba de Candeia a uma história que o separaria, por exemplo, do movimento Black Rio ou do pagode paulista dos anos 90. Levou tempo até que o samba e o sambista pudessem se imiscuir “pelos salões da sociedade”, onde entrou “sem cerimônia”, como cantou Cartola. Algo semelhante ocorre hoje com o Funk Carioca. A busca por respeitabilidade perante uma sociedade racista e classista se constituiu a partir da fundação de uma “história” mitológica, pois foi preciso abrir o passado nebuloso a golpes de machado, o que nem sempre resulta em bom veredito. Como este não era, definitivamente, o caso de Candeia, vale resgatá-lo em seus 80 anos com as feições de um gênio criativo que não enxergava fronteiras, nacionais, estéticas ou culturais.


Publicado na revista Piauí online — 06 mar 2015_16h35

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[1] Pouco antes, em carta a Carlos Teixeira Martins, presidente da Portela nos idos de 1975, escrevia: “Escola de samba é povo em sua manifestação mais autêntica. Quando se submete a influências externas, a escola de samba deixa de representar a cultura de nosso povo. Essas influências externas sobre as escolas de samba provêm de pessoas que não estão integradas no dia-a-dia das escolas. Não é mais possível continuarem os integrantes da escola sem acompanhar de perto tudo que se passa na Portela”.

[2] “Veja, eu era muito amigo do Candeia, ia na casa dele todo dia. Quer ver uma coisa engraçada? Quando se fala em raiz, sempre citam o seu nome, não é? Mas você sabe o que o Candeia gostava muito de ouvir? Aquela ‘Take five’, do Dave Brubeck. Ele era maluco por essa música. O cara pode ter um estilo, mas ele é influenciado por tudo que está aí. Você não pode restringir seu universo. (Guinga, em entrevista produzida por Thales Ramos e Emiliano Mello, com foto de Bruno Villas Bôas para o blog “O Samba”. Link: http://osamba.wordpress.com/2007/03/22/41/)

[3] Uma das maiores entusiastas de Candeia e do Quilombo, a jornalista Lena Frias, publicou em 17 de julho de 1976 o artigo “Black Rio – o orgulho (importado) de ser negro no Brasil.” Procurava documentar de forma crítica a penetração dos Bailes Black na Zona Norte e nos subúrbios cariocas, geralmente embalados pelo funk e o soul norte-americanos.




quarta-feira, 26 de junho de 2024

Gil engendra em Gil rouxinol





















“Alô, mulatas! Alô, alô, mulatas! O barulho que vocês estão ouvindo é um barulho de latas!” (“A luta contra a lata ou a falência do café”, 1968)




Meu amigo Frederico Coelho pede para que eu escreva sobre os 70 anos de Gilberto Gil. E imediatamente me ocorre uma história, na verdade uma espécie de anedota familiar, segundo a qual eu teria assistido à estreia dos Doces Bárbaros no Canecão em 1975. Aos seis meses e no colo. Tempos depois, revirando os discos com a brutalidade natural das crianças, (re)descobri aquela figura pitoresca, que além das tranças no cabelo, vestia um macacão branco bordado com lantejoulas. A imagem deste ser andrógino teve para mim o efeito indelével de uma tatuagem, como somente as imagens da infância costumam produzir. Assim como a capa do disco Extra, de 1983, que girava sem parar no toca-discos lá de casa: Gil sem camisa, tomando banho de espuma, ladeado por duas ilustrações inusitadas. A primeira, o disco voador referente ao ET de “Extra”; a segunda, o veado, em alusão à canção que encerra o disco, “O Veado”. Um chorinho, pilar da sacrossanta tradição musical brasileira, acerca do animal que empresta seu nome à forma preconceituosa de se referir aos homossexuais. Para além da provocação, “O Veado” encena, com a habitual serenidade, frases ambíguas que ora contemplam a beleza plástica do animal “evoluindo, correndo evasivo”, ora sugerem a consciência da provocação: “Ó, veado/Quanto tato/Preciso pra chegar perto?”


Alguns anos antes, em 1975, Gil editava em Refazenda outro chorinho, desta vez destilando versos confessionais com descontração acima de qualquer suspeita: “eu passei muito tempo aprendendo a beijar outros homens como beijo meu pai”. O aprendizado árduo e prolongado (“eu passei muito tempo aprendendo…”) que o poeta generosamente nos relata através dos versos da canção. Contudo, executada pela excelência da instrumentação de Dino Sete Cordas, Canhoto e Altamiro Carrilho, a fluência da melodia amortecia o impacto das ideias, que, creiam-me, para um pré-adolescente de classe média baixa da zona norte eram motivo de previsíveis confusões morais. Mesmo a relativo contragosto do ambiente que me circundava, as canções e suas ideias libertárias entravam pelos poros. Afirmo sem medo de errar — e, provavelmente, errando — que “Pai e Mãe” é o tipo de canção capaz de dinamitar preconceitos e inaugurar uma saudável confusão na cabeça do preconceito machão latino-americano. Não me refiro à construção individual da sexualidade, mas a um certo ambiente moral-cultural permemável a diversidade, um alargamento de horizonte moral. E então me recordo de uma entrevista com outro personagem admirável, Carlinhos Brown, que declarara algo do tipo: “Minha escola foi Gilberto Gil e Caetano Veloso”. O “eterno deus mu, dança”…


Recentemente, assisti no Youtube a um vídeo que me deixou emocionado, ainda que ligeiramente perplexo, no qual Itamar Assumpção e a banda Isca de Polícia tocam a canção “Extra”. Reticente em lançar mão do repertório alheio, Assumpção demonstra concentração, particularmente nos versos: “Eu, tu e todos no mundo no fundo, tememos por nosso futuro/ ET e todos os santos, valei-nos, livrai-nos desse tempo escuro.” Olhar circunspecto, mira a câmera frontalmente, valorizando com dicção acurada a ressonância silábica entre os trechos “no mundo/no fundo” e “valei-nos/livrai-nos”. Não sei até que ponto se pode atribuir a “Extra” a tendência costumeira da canção política, geralmente cantada sob o ponto de vista da primeira pessoa do plural, endereçada a um determinado âmbito político ou existencial. Trata-se de uma canção que transpira a urgência sincera dos anthems jamaicanos, mesmo que envolta pela roupagem pop de Liminha e impregnada pela brisa suave do Caribe. Um tema duro de cozinhar, mas que Gil transforma em inigualável iguaria, se utilizando de artifícios, desenhos poéticos e melódicos, uma banda extraordinária. Notório adepto da lapidação minuciosa da palavra, Assumpção parece ter compreendido como poucos a sutileza desta canção.


Mais tarde, já marmanjo, outras canções de Gilberto Gil mobilizaram minha atenção de forma decisiva, geralmente circunscritas ao que podemos chamar linhagem filosófica, tais como “Era Nova” e, mais recentemente, “Pop Wu Wei”, do disco Quanta, de 1997. Novamente, a entonação poética condensa com leve ironia um tema filosófico, que diz respeito à permanência imanente de tudo aquilo que é, em outras palavras, da “eternidade”: “Falam tanto numa nova era/Quase esquecem do eterno é”, ou ainda, “Os cabelos da eternidade/São mais longos que os tempos de agora/São mais longos que os tempos de outrora”. Mas em “Pop Wu Wei” a certeza do “eterno é” — bem diferente da estabilidade do “ser” platônico — se converte em princípio ético (“O movimento está para o repouso/assim como o sofrimento está para o gozo”), finalizando, novamente, a partir de um equilíbrio improvável entre a profundidade da reflexão, a leveza da perspectiva e a beleza produzida pelo cantor, compositor e exímio instrumentista:


“o fato é que eu sou muito preguiçoso

tudo que é repouso me dará prazer

se Deus achar que eu mereço viver sem fazer nada

que eu faça por merecer.”


Depois da cultura (uma relação com o outro, pautado em uma tolerância vivida), da política (sem nunca se deixar envenenar pela “indignação”) e da cosmologia (a afirmação do “eterno é”), Gil também ensina o delírio, a curva delicada, que pode ser derivada da “estética do sonho” de Glauber, das experiências lisérgicas de Timothy Leary, da palavra mística dos repentistas. Ele canta, no álbum gravado ao vivo em 1974: “Esta localidade de lá/Uma abertura de si/Com um embocadura pra dó/Sustenido/Uma passagem pra ré/Mi bemol…” Em um complexo exercício poético, Gil transfigura parcialmente o advérbio “lá” e o pronome “si” em nota músical. Embaralhando a sintaxe e reforçando a ambiguidade com a utilização dos mesmos acordes, convida o ouvinte a experimentar as fronteiras do sentido, do som e das palavras. A torrente de imagens de “João Sabino”, assim como a narrativa rizomática de “Abre o Olho”ou o haikai existencial em “Oriente”, testemunham que há um excepcional engenho de artista por trás dos delírios criativos de Gilberto Gil.


Somando-se o homem de ação ao artista, e, ainda mais, o político, Gil é Darcy Ribeiro, é Zumbi e irmãos Villas-Boas. Alguém tem dúvida que ele foi maior ministro da cultura que o Brasil já teve? Generoso em sua visão do sentido da cultura, visionário no que diz respeito a temas espinhosos como direito autoral, patrimônio e produção cinematográfica, Gil cumpriu a meta, citada no programa do seu mandato, de fazer um “do-in antropológico” nos diversos pontos do Brasil. 


Posso dizer apenas por mim mesmo, mas suspeito que posso ir além: Gil ensina e engendra o mundo, não só para este que vos escreve, mas para artistas da grandeza de Carlinhos Brown e Itamar Assumpção. Gil também engendra em Gil o rouxinol, catalisando em sua obra mais do que uma mistura de ritmos, cores e culturas, mas uma uma forma de ver o mundo que não se resume à nenhuma espécie de universalidade. Esta é uma maneira própria da canção, capaz de produzir reviravoltas monumentais, porém silenciosa, interna, afetiva — “abra-se cadabra-se a prisão”. Uma forma de ver o outro, a sexualidade, a amizade, o gênero. Uma forma de pensamento político para além das ferramentas carcomidas da política institucional. Uma forma de amor que é política de combate à mesmice sem enveredar pela maledicência e a indignação reativa, para além de qualquer voluntarismo. Uma visão de mundo radical, cuja prática nunca é radical, nem violenta. Uma perspectiva da canção como o operador a partir do qual se torna instrumento para o aprimoramento da cultura, da política, da arte, do prazer e, assim, da VIDA.


Publicado no catálogo da exposição 'Gil 70' (2012), no Palacete das Artes, Salvador. Concebida e organizada pelo poeta e designer gráfico André Vallias (1963) com a colaboração do pesquisador e ensaísta Frederico Coelho (1974).









segunda-feira, 24 de junho de 2024

REVENDO AMIGOS: A GIRA INFINITA EM 8½


Na sequência, outro final possível – obviamente, ao recusar o tempo cronológico, 8½ não poderia terminar exalando ares conclusivos. Guido desiste do filme, se despede da equipe e terá sua última conversa com Daumieur (Jean Rougeul) – personagem que representa o conservadorismo da intelectualidade italiana. Daumieur lhe parabeniza por não realizar o filme, pois, afinal de contas, “já há coisas supérfluas demais no mundo, mais desordem é inútil”. Eles entram no carro e o aparecimento do mago Maurice (Abdalqadir as-Sufi) determina outro momento, outra possibilidade de desfecho: “estamos prontos para começar”, anuncia o mago, e o carrossel do delírio se põe a girar: primeiro, o rosto de Claudia (Claudia Cardinale), de seus pais e avós, de Saraghina (Eddra Gale), e, então, segue-se o cortejo dos personagens, todos de branco, caminhando sem rumo, como que revirando sua alma (“Asa Nisi Masa”), revolvendo a terra morta e trazendo alguma alegria, alguma faísca de felicidade; rapidamente, retorna a confusão, o medo, a dúvida. Mas é deste carrossel de sentimentos que o filme se nutre e se renova, assim como a força e a consciência do personagem central. “Esta confusão sou eu”, brada Guido/Fellini, clamando pela compreensão de sua esposa, Luísa (Anouk Aimée). Ele retoma o megafone e grita: “um momento, deixem que eu dou o sinal!”. Um filme que, como a vida, nasce, morre e renasce na gira infinita de todos os dias. 

segunda-feira, 18 de março de 2024

REVOLUÇÃO+1: Entrevista com Masao Adachi







REVOLUÇÃO+1: Entrevista com Masao Adachi [1]

por Go Hirasawa e Ethan Spigland

e-fluxJournal, Edição nº 135

Abril de 2023



Depois de fazer os filmes experimentais Tigela (1961) e Vagina fechada (1963) com o Nihon University Cinema Club, Masao Adachi ingressou na Wakamatsu Productions de Koji Wakamatsu como roteirista. Enquanto escrevia os “filmes rosa” (filmes eróticos suaves) de Wakamatsu, Adachi dirigiu seu primeiro longa-metragem comercial, Aborto (1966). Durante esse período, ele também trabalhou em roteiros como Diário de um Ladrão de Shinjuku (1969) e Três Bêbados Ressuscitados (1968) para Nagisa Oshima, e produziu de forma independente seu filme de vanguarda Galáxia (1967). Em 1969, Adachi, o crítico de cinema Masao Matsuda e o roteirista Mamoru Sasaki colaboraram no filme A.K.A. Assassino em Série (1969), consistindo apenas nas paisagens que Norio Nagayama, de dezenove anos, um serial killer armado, pode ter visto durante suas andanças. Ao fazer este filme, propuseram uma nova teoria visual da política e da revolução chamada “teoria da paisagem”, que tentou localizar a estrutura do poder do Estado não no domínio político, mas sim nas paisagens quotidianas comuns. Em 1971, Adachi e Wakamatsu viajaram para o Líbano e colaboraram com o Exército Vermelho Japonês e a Frente Popular para a Libertação da Palestina para fazer a Declaração da Guerra Mundial do Exército Vermelho-FPLP (1971), um cinejornal que deveria servir de texto para revolução mundial. Desejando subverter a abordagem convencional à distribuição de filmes, Adachi e os seus pares formaram a Red Bus Film Screening Troop, exibindo o filme por toda a Europa e Palestina em espaços não tradicionais. Estimulado por este empreendimento, Adachi trocou o Japão pelo Líbano em 1974, juntando-se ao Exército Vermelho Japonês e comprometendo-se com a Revolução Palestina. Preso em Beirute em 1997 e extraditado para o Japão em 2000. Em 2006, completou seu primeiro novo filme em um quarto de século, Prisioneiro/Terrorista (2007), e seguiu com Artista do Jejum (2016). Seu último filme, REVOLUÇÃO+1 (2022), é sobre o assassinato do ex-primeiro-ministro japonês Shinzo Abe. Esta entrevista foi realizada pouco antes da estreia internacional de REVOLUÇÃO+1 na Semana da Crítica de Berlim, em fevereiro de 2023. Ela foi editada para maior extensão e clareza.


—Go Hirasawa e Ethan Spigland


***

Go Hirasawa e Ethan Spigland: Como você concebeu seu novo filme, REVOLUÇÃO+1 (2022)?


Masao Adachi: Quando ouvi pela primeira vez sobre o assassinato do ex-primeiro-ministro Abe, pensei que fosse um ato de terrorismo político. À medida que fui aprendendo mais sobre o atirador, Tetsuya Yamagami, percebi que ele não tinha qualquer experiência em ação política organizada e era livremente estimulado a agir por preocupações individuais. Achei que o significado desse incidente era imensurável. Imaginei as dificuldades que Yamagami deve ter enfrentado antes do tiroteio. Percebi que o estado da política japonesa estava impondo um sentimento de aprisionamento aos jovens. Senti-me compelido a revelar tais circunstâncias num filme. Para contextualizar, Yamagami foi motivado a cometer este ato pelas ações criminosas da Igreja da Unificação, um grupo fraudulento ligado a Abe que extrai dinheiro e bens de indivíduos e famílias em nome da religião. [2] O ponto chave é que Yamagami agiu como um carrasco individual que tomou a sua própria decisão sobre como lutar contra este grupo criminoso, em vez de ser dirigido por uma organização política ou movimento social.


GH e ES: A produção de REVOLUÇÃO+1 foi muito rápida, o que nos lembra de como os filmes da Wakamatsu Productions eram feitos nas décadas de 1960 e 1970, onde eram frequentemente roteirizados, rodados e editados em questão de dias, após os quais eram prontamente exibidos. Na verdade, REVOLUÇÃO+1 foi filmado por Kenji Takama, que trabalhou como assistente de câmera em Wakamatsu nos anos sessenta. Por que você adotou uma abordagem semelhante de baixo orçamento para seu novo filme?


MA: Com algumas exceções – Vagina Fechada (1963), Galáxia (1967), A.K.A. Assassino em série (1975) e Exército Vermelho/FPLP: Declaração da Guerra Mundial (1971) – meus filmes destinados aos cinemas geralmente são feitos com orçamentos baixos e filmados muito rapidamente, por isso não é incomum. No entanto, neste caso, também senti uma sensação de urgência em produzir rapidamente uma expressão cinematográfica antes que os meios de comunicação social fossem capazes de distorcer a situação e propagar o perfil criminoso do atirador ou a sua versão dos motivos deste incidente.


Há vários anos, por ocasião do décimo aniversário da morte de Koji Wakamatsu, seis diretores que fizeram filmes para a Wakamatsu Productions planejaram fazer uma série de filmes no estilo dos antigos “filmes rosa”, mas para o presente. No entanto, o projeto foi abandonado por vários motivos. Eu tinha pensado em Kenji Takama como um dos diretores dessa série e pedi a ele para ser o diretor de fotografia de REVOLUÇÃO+1.


GH e ES: Você fez o filme logo após o tiroteio que vitimou Abe e exibiu a obra durante seu funeral de estado. Foi uma tentativa de situar o filme num contexto político e social? Ou você não endossa essa separação entre cinema e política?


MA: Essa é realmente uma questão importante. Minha própria teoria é que os filmes confrontam inegavelmente a sociedade contemporânea. REVOLUÇÃO+1 reflete a situação política e econômica do Japão e do mundo, ambos caminhando para o colapso e a crise. Como os filmes só existem para serem exibidos, há uma batalha entre a imaginação do criador e do espectador. Penso que esta batalha expressa a situação política prevalecente enfrentada tanto pelo criador como pelo espectador. Enquanto escrevíamos o roteiro de REVOLUÇÃO+1, o atual primeiro-ministro, Fumio Kishida, declarou que lamentaria a morte do ex-primeiro-ministro Abe em seu funeral de estado. Fiquei indignado com esta tentativa fraudulenta de promover Abe como um “grande” político, quando ele era um criminoso político que degradou a democracia, que embora imperfeita, pelo menos uma vez existiu como forma política e perdurou em teoria. Deve-se notar que mais de 60% da população japonesa se opôs ao funeral de estado. [3] Como cineasta, senti-me compelido a expressar a minha discordância ao exibir este filme no exato dia do funeral de Abe, apesar do filme estar inacabado a esta altura. Quando propus esse plano ao elenco e à equipe técnica, eles concordaram e então eu o executei. Então, para responder à sua pergunta, a intenção era praticar um método que transcendesse o suposto binário entre cinema e política, revolução e arte.





GH e ES: Essa versão inacabada do filme foi exibida em Shinjuku na véspera do funeral de estado, em Shibuya e Nagoya no dia exato e em Osaka no dia seguinte. Como o público respondeu?


MA: Na verdade, o filme estava quase concluído quando o exibimos. Fizemos uma versão diferente para os eventos de exibição. Durante o processo de edição, o assistente de direção e a equipe de produção insistiram que deveria haver uma transmissão ao vivo do funeral de estado no início do evento, que seria assistido pelos cineastas, inclusive eu. A versão piloto do filme é, portanto, explicitamente “contra o funeral de Estado”. Realizamos exibições e palestras em três cidades, onde os locais ficaram lotados. O público recebeu os filmes muito bem e também houve discussões muito ativas sobre o ato e os motivos de Yamagami em relação ao filme. Isso ocorreu além da barulhenta multidão de críticos que afirmavam que o filme era mero dogma político. Em vez disso, ao descrever o motivo de Yamagami por detrás do crime e ao discutir o assunto, demonstramos que a natureza do problema no Japão é uma crise política.


Afinal, a questão era: aprovamos o crime de Yamagami, especialmente a sua natureza de tiroteio violento? Yamagami cometeu o crime porque estava desesperado, mas não havia outra solução? Decidi apresentar uma terceira conclusão que não é nem contra nem a favor da violência, para criticar a tendência de pensar em termos binários que prefigura uma conclusão instantânea. Em outras palavras, a violência não é nem totalmente negativa nem totalmente positiva, mas antes algo que deve ser considerado caso a caso. No final, optei por retratar as contradições na sua totalidade e deixar o público tirar as suas próprias conclusões.


GH e ES: Assim como seus dois trabalhos anteriores, a música de REVOLUÇÃO+1 foi composta por Otomo Yoshihide. Você poderia falar sobre sua colaboração?


MA: O roteiro foi finalizado tarde da noite. Sem esperar pela manhã, liguei para ele e pedi que fizesse a música. Otomo imediatamente respondeu com interesse e disse: “Envie-me as imagens e o roteiro”. Duas horas depois, ele disse: “Eu li o roteiro. Isso é muito interessante, estou dentro. Já compus a música!” Fui até onde ele estava gravando música para outro filme e lhe dei algumas imagens. Gravamos a performance imediatamente e pronto.


GH e ES: Sua tentativa de exibir o filme em locais diferentes dos cinemas nos lembra a campanha de exibição de Exército Vermelho/FPLP: Declaração da Guerra Mundial, na qual você exibiu o filme em locais não tradicionais. Nas exibições de teatro que começaram no final do ano passado, as exibições tradicionais em Nagoya, Osaka e Yokohama precederam as exibições irregulares em Tóquio. Presumo que houvesse dúvidas sobre se os microcinemas iriam exibir o filme, apesar de terem surgido dos movimentos de exibição anteriores das décadas de 1970 e 1980.


MA: A exibição de Exército Vermelho/FPLP: Declaração da Guerra Mundial fez parte de um movimento revolucionário que chamamos de “Tropa de exibição de filmes do ônibus vermelho”. Foi um movimento de “eventos de exibição” em que os filmes eram exibidos por todo o país como pretexto para conversas coletivas posteriores. O evento de exibição “Contra o Funeral do Estado” foi semelhante a esse. No entanto, houve alguns pedidos de salas de cinema para ver REVOLUÇÃO+1 com antecedência, uma vez que o filme faz reivindicações políticas diretas. Os teatros foram cautelosos, pois havia a possibilidade de protestos de direitistas ou organizações religiosas. Isto é, obviamente, esperado. Para convencer as salas de cinema, precisei demonstrar que o trabalho seria interessante para o público em geral.


GH e ES: Qual é o significado do título REVOLUÇÃO+1?


MA: O tema principal deste filme é a autodeterminação. Como é que o protagonista (um Yamagami ficcional) suporta tragédias – os suicídios do seu pai e do seu irmão, a sua mãe sendo apanhada pelo engano do grupo fraudulento que se autodenomina uma religião? É importante ressaltar que Yamagami foi motivado a agir por preocupações pessoais, perguntando-se qual era o seu verdadeiro obstáculo e quem eram os seus verdadeiros inimigos. Ao contrário dos crimes impulsivos e indiscriminados, Yamagami teve como alvo um antigo primeiro-ministro. Foi premeditado; ele se preparou calmamente construindo uma arma poderosa e praticando tiro ao alvo. Todas estas ações cumprem a tarefa de contra-atacar o absurdo das adversidades, que é a base da revolução. Ao interrogar os fundamentos da luta pessoal, não há necessidade de determinar se este ato é um “incitar à ação” individual ou um ato revolucionário de um movimento organizado.


O “+1” em REVOLUÇÃO+1 demonstra a incapacidade de pensar em termos inequívocos. Isso é o mesmo que revolução ou não? Aqui, depois de negar a inequívoca “+1”, chegamos à solução de que pediríamos ao público que decidisse a resposta. Também evoca a esperança de dar o primeiro passo em direção a uma nova revolução. Quer seja violento ou pacífico, o desejo de revolução tem vindo a decair já há algum tempo. As estruturas de solidariedade necessárias para discussão e debate entre camaradas e comunidades já não estão presentes. E assim, em vez de pensar no poder popular, o papel do indivíduo é ampliado. Descrevi a realidade da perda deste impulso coletivo em direcção à revolução, mostrando como as várias crises políticas e sociais criam uma situação em que as ações só podem ser pensadas em termos individuais.


GH e ES: Que estilos e metodologias você escolheu para fazer este filme? Em certo sentido, o filme é um docudrama que retrata diretamente as ações de Yamagami que levaram ao assassinato. Por outro lado, existem muitos elementos experimentais e ficcionalizados: a narração de Yamagami, a chuva torrencial dentro do centro de detenção, o fantasma do irmão de Yamagami, as sequências finais em que Yamagami está deitado em posição fetal numa paisagem estranha e árida.


MA: No que diz respeito ao método, a ideia era retratar explicitamente as mudanças emocionais do protagonista em etapas. Além de suas ações, também tentamos retratar sua vida interior. Como resultado, selecionamos um estilo documental, mas também cenas estilizadas, como aquelas em que a chuva começa repentinamente a cair dentro de casa.


GH e ES: Nas representações de chuva e fetos, podemos ver semelhanças entre REVOLUÇÃO+1 e seus trabalhos anteriores, ou aqueles trabalhos que você escreveu e Wakamatsu dirigiu, como O embrião caça em segredo (1966) e Go Go virgem pela segunda vez (1969), e as estruturas narrativas em loop em Tigela (1961), Galáxia (1967), Prisioneiro/Terrorista (2007) e Artista do Jejum (2016). O filme também nos lembra o protagonista de Sex Jack (1970), na medida em que retrata um anarquista de uma forma diferente das representações habituais de esquerdistas e movimentos de esquerda.


MA: Acho que sempre volto à representação do “despertar para a ação” de um indivíduo. Talvez eu seja mais teimoso do que penso e projetei meu desejo ou autoanálise nas ações do protagonista. Essa é a razão pela qual me considero um surrealista anarquista.


GH e ES: Em termos de retratar a história de um atirador real logo após o incidente, REVOLUÇÃO+1 nos lembrou de A.K.A. Assassino em série. Enquanto em A.K.A. Assassino em série nunca vemos o protagonista, apenas as paisagens que ele pode ter observado, em REVOLUÇÃO+1 o protagonista é visível em quase todas as tomadas. Além disso, as paisagens que vemos em REVOLUÇÃO+1 são muito homogêneas. Como você vê a teoria da paisagem atualmente? [4] Você já mencionou em 2003 (numa conversa com Takashi Sakai) que a paisagem se deslocou para dentro, que “a própria substância do ser humano se tornou a paisagem”. Sugeriu que o papel da teoria da paisagem chegou ao fim, uma vez que o poder do capital para subsumir e mercantilizar tornou-se todo-poderoso. Hoje, com a evolução das mídias digitais e sociais, o capital nos penetra cada vez mais profundamente. Será ainda possível subverter ou ultrapassar a paisagem, que agora está fora e dentro de nós? E você acha que o cinema e a política continuam sendo arenas apropriadas para explorar essas questões?


MA: Em termos de teoria da paisagem, REVOLUÇÃO+1 é uma extensão e uma continuação de A.K.A. Assassino em série, já que ambas as histórias tratam de um protagonista que se vê obrigado a enfrentar a sociedade. Mas enquanto A.K.A. Assassino em série não retrata o protagonista, apenas as paisagens que ele pode ter visto, REVOLUÇÃO+1 segue o protagonista de perto e retrata apenas as paisagens ao fundo. Os filmes se assemelham no sentido de que ambos são provocativos em relação a sua época, mas adotam abordagens opostas. E semelhante a A.K.A. Assassino em série, REVOLUÇÃO+1 enfatiza o processo pelo qual o protagonista percebe que está preso por um muro – um muro de paisagens sociais que o confrontam opressivamente como dificuldades. Quebrar simultaneamente o muro do seu ego e o muro da sociedade é o cerne da narrativa. REVOLUÇÃO+1 retrata esse processo até que Yamagami comete o tiroteio como forma de romper essas paredes.


Notas


[1] Esta entrevista com o diretor de cinema japonês Masao Adachi foi conduzida em conjunto com o programa Landscape Theory: Post-1968 Radical Cinema in Japan, co-apresentado pela e-flux Screening Room e pelo Pratt Institute, de 24 a 27 de março de 2023. Cf. https://www.e-flux.com/events/programs/520535/landscape-theory-nbsp-post-1968-radical-cinema-in-japan/


[2] Sobre a Igreja da Unificação, consulte Justin McCurry, “Japan Begins Inquiry into Unification Church in Wake of Shinzo Abe Killing”, The Guardian, 22 de novembro de 2022. https://www.theguardian.com/world/2022/nov/22/japan-begins-inquiry-into-unification-church-in-wake-of-shinzo-abe-killing


[3] Motoko Rich e Ben Dooley, “Por que o Japão está irritado com o funeral de estado de um líder assassinado”, New York Times, 24 de setembro de 2022. https://www.nytimes.com/2022/09/24/world/asia/shinzo-abe-funeral-unification-church.html


[4] Sobre a teoria da paisagem, cf. https://www.courtisane.be/nl/event/landscapemedia-an-investigation-into-the-revolutionary-horizon-reloaded


Tradução: Bernardo Oliveira