Escritos advindos de épocas longínquas, hoje disponíveis na internet, indicam que a mística da medicina universal, a Alquimia de Trismegisto, viria ao mundo não pelos saberes de um químico medieval, como o suíço-alemão Paracelso, nem de um cientista moderno, bancado, equipado e atualizado como o russo Prigogine. Mas pelas mãos firmes e cadenciadas de um ogã de terreiro de candomblé, ritmista de escola de samba ou qualquer outro mestre dos transes rítmicos. Um ser prático em estreita comunhão com seus tambores e apetrechos percussivos, a espalhar uma sorte de feitiço capaz de transmutar a matéria inferior, intervir em todos os seus estágios, sobrepassar o nigredo, o albedo, o citrinitas em direção à pedra filosofal. E, é claro, catalisar o elixir da longa vida.
O ogã e o ritmista prolongariam a ciência alquímica pela competência neuromuscular de evocar as claves tridimensionais, figuras rítmicas expansoras da consciência, — os chamados “elementos acendrados”, doravante EA, poderosos liberadores de seus efeitos. Dominando as técnicas da batucada, o batuqueiro domina também o elemento primordial que rege o funcionamento, a cadência e o grau de expressão em todas as coisas: a Ciência do Ritmo. Depois, aplica seus conhecimentos em processos transdutores festivos ou devocionais, expandindo ressonâncias psicocoletivas com incontestes benefícios medicinais. A ciência do batuque, com seus arsenal de claves e floreios, viradas e quiálteras, graves, médios e agudos timbrados por couro, ferro e madeira, transforma os toques do candomblé e os desenhos rítmicos das Escolas de Samba em poderosos indutores do transe purificador.
Há que se notar, contudo, o controverso efeito narcopolítico: o ritmo que chama o corpo, o corpo que chama a dança, a dança que chama a pisada e a pisada que revolve o barro e o asfalto, interferindo na estabilidade precária do chão onde todos pisam, emanando efeitos gravitacionais que se alastram sob a forma de tempestades elétricas, desestabilizando a curvatura do espaço-tempo e, assim, a consistência do sistema que sustenta planetas, estrelas e galáxias. Documentos esparsos, alguns deles bastante misteriosos, dão conta deste enorme contrapoder, como o do cearense Tristão de Alencar Araripe Jr., que relata uma noite em pagode no interior do Sertão, ainda no século XIX: "As violas temperaram-se; [...] e das unhas dos tocadores nasceu um baiano rasgado, capaz de fazer estremecer ao mais bisonho filósofo".
Talvez por esse motivo pululem as narrativas, por vezes apócrifas, acerca dos viajantes cósmicos em busca de EAs. O objetivo é capturar, sugar e enviar esses elementos, reconduzindo-os primeiramente para a América do Norte, depois para o epicentro da galáxia NGC 6872, na Constelação de Pavão, onde um poder descomunal, tecnicamente desenvolvido, porém perigoso e despótico, toma conta do pedaço. Longe de serem os nobres exploradores pintados pelo cinema americano em trajes de astronauta, esses viajantes são seres mutantes que tomam emprestadas as formas dos habitantes locais com o objetivo de se misturar à população e extrair os EA de onde quer que eles sejam emitidos: casas de santo, terreiros de samba, praças das cidades do interior, beira de riacho, botequins... Percorrem wormholes e teias cósmicas como mercenários desvairados, incumbidos por um governo intergaláctico tirano de usar seu poder tecnológico com o objetivo de capturar os EA, na maioria das vezes criados, conservados e ampliados por civilizações mais sábias e antigas que as que hoje dominam o espectro do universo observável.
Algumas descrições, igualmente lacunares, introduzem a personalidade mesquinha de um desses mercenários cósmicos, vulgarmente conhecido como Walter Scott, que teria se materializado no Brasil em algumas situações. Em 1812, no interior do Recife, segundo uma célebre descrição realizada pelo satírico Lopes Gama, padre pernambucano que cantava: "Aqui pelo nosso mato, qu'estava então mui tatamba, não se sabia outra coisa senão a dança do samba”. Com seus aparelhos altamente sofisticados, Scott teria detectado o EA no batuque dos negros que, com a consolidação da vida urbana nos centros nordestinos no século XIX, foram relegados ao interior rural. Sua tendência pela batucada africana em detrimento do coco, do sabão e do lundu chorado que grassavam na cidade grande, foi indicada pelo poderoso espectofotômetro quântico que carregava a tiracolo.
Depois, Scott migrou para a Cidade de São Salvador em 1835, durante uma insurgência batizada como Revolta dos Malês — "imalês", muçulmanos cultos de língua iorubá, conhecidos como nagôs que, vestidos de branco e imbuídos de suas crenças religiosas, buscaram tomar o poder na cidade. O conflito violento ocasionou a derrota do grupo pelas mãos das forças policiais, mas desempenhou um notório papel de enfraquecimento do regime escravocrata. Houve a suspeita, relatada aqui e ali sob a forma de enigma, de que Scott teria sido absorvido e possivelmente eliminado pelos estampidos das balas nas ruas e, posteriormente, pelos toques dos aguidavis nos terreiros.
Aportou, porém, alguns anos depois, mais precisamente em 1859, caindo de paraquedas no interior do Ceará, sob olhares curiosos da população que, obviamente, desconhecia o artefato esvoaçante. Tratava-se de uma festa de samba e de fado, onde se articulavam várias danças, algumas delas bastante insinuantes do poderoso quantum sexual emanado pelo choque dos umbigos, conhecido como embigada, transformando a consciência cósmica de todos os envolvidos e disparando processos de acendramento rítmico e purificação coletiva.
O viajante tem uma missão e não pode falhar: capturar as claves acendradas que atravessam e concentram a força vital em todos os elementos. Por isso, viaja através de muitos tempos e temporalidades. Sua viagem é meticulosamente caótica, construída como um mapa de saltos entre dimensões excêntricas, nunca a linha reta. O sentido e a direção não mudam: o mapa está aberto, as coisas estão aqui e ali dispersas. O que esse mercenário intergaláctico procura?
Conta o estudioso Francesco H. que, em virtude do crescimento do primeiro terreiro de bamba no bairro do Estácio, Rio de Janeiro, nem todos os foliões conseguiam escutar a melodia e a letra que eram entoadas pelos seus criadores. Com a intenção de resolver este problema técnico, o sapateiro Alcebíades lançou mão de suas habilidades, revestindo com papel de saco de cimento umedecido uma lata de manteiga de vinte quilos. O resultado demiúrgico foi a criação deste instrumento grave ao qual denominaram "surdo". Consta que Alcebíades teria manufaturado quatro exemplares deste novo instrumento, que durante os desfiles eram comandados pelo Lacerda, que também soprava a flauta, como poucos. Este era o objeto da missão: capturar os efeitos amplificadores emanados pelo excelso tambor.
Essas ideias lhe passavam pela cabeça, como em um flashback premonitório, enquanto lhe chegavam memórias do futuro. Despontava o verão de 1928. O tempo retrocede em fast forward: o ensaio já estava armado fazia pelo menos algumas horas, quando o forasteiro aprochegou-se ao número 29 da Rua do Estácio, uma loja de roupas situada no futuro. Uma descontração frágil escondia o arrancar das tripas: forasteiro é pra ser visto, avaliado dos pés à cabeça! Já estavam lá o Silva, o Bastos, o Barcelos (mais conhecido como o Bide), o Baiaco, o Brancura, o “Amor” e até mesmo o renomado Lacerda! O clima não era bem o das poses dramáticas de um western norte-americano, mas o de um épico russo, clima mafioso encasacado e charuteiro que vemos em “Tempestade sobre a Água” do bolchevique Pudóvkin.
Aproxima-se do cortejo, sob o olhar ensimesmado do pessoal da bateria. O aparelho que se prende ao seu encéfalo e a todo sistema nervoso por meio de uma bioporta, capaz também de sugar veias poéticas, conecta-se rapidamente com os graves emitidos por aquele estranho objeto técnico. O processo é altamente precarizado quando ocorrem interferências, como as que emanam a alguns quilômetros dali, oriundas de aparelhos como o Fonógrafo Elétrico, o Grafofone e o Cinematógrafo. Scott perde tempo, faz ajustes, nada adianta. Os surdos desengomam na avenida, o balanço se faz sentir a cada macetada no coro e na madeira. É quando os militares, mancomunados com os policiais e os assistentes de farmácia, se adiantam em assaltar o invento logo nas primeiras horas do desfile, assassinando o supremo artífice Alcebíades sob olhares cúmplices de todo o Largo e deixando o mercenário literalmente na mão.
Dois casos corriam à miúda, quase em paralelo ao episódio do Estácio. Breves aparições sem grande êxito nas gravações do “Canto de Ogum” e outros pontos de umbanda por Mano Elói e Getúlio Marinho, “o Amor”; e na gravação de “Na Pavuna”, música de Almirante e Homero Dornelles (codinome Candóca da Annunciação) em 1930, primeiro registro fonográfico dos instrumentos de percussão do samba, como o surdo e o pandeiro, o ganzá e o tamborim. Mais tarde, a chamada Operação Fagner ocupa grande parte de seus planos. Em 1892, Fred Fagner chegava ao Rio de Janeiro após ter percorrido algumas cidades do Nordeste Brasileiro e se encantado com as águas do Mucuripe. Maravilhado com as belezas nacionais, decidiu aparafusar o Brasil na cachola e escolheu o Rio para fixar residência, trazendo na bagagem o Fonógrafo Elétrico do yankee Edílson Tomás, com toda a parafernália de cilindros, baterias e vidros para diafragma. Feitos de cera, os cilindros podiam ser raspados e polidos para novas gravações. Scott fez questão de baixar na Rua do Ouvidor e soprar no ouvido do então cientista e produtor fonográfico: a temperatura escaldante do Rio de Janeiro favorecia a penetração cósmica do som, aperfeiçoando o método de captura, garantindo o bom resultado para muitas das gravações realizadas na época e melhorando sua expectativa de emissão através das galáxias.
Na mesma época em que Segreto e o bicheiro Cunha Sales importavam a máquina de roubar vistas para o Brasil, multiplicavam-se as primeiras juke-boxes, os clientes podendo escolher a música mediante a aplicação de moedas. No mesmíssimo local, mais precisamente na Rua do Ouvidor, aportavam, de Nova Iorque, os fonógrafos de Edílson, exportados por Frederico Prescott, enquanto Thomaz Mitchell mandava trazer cilindros e grafofones de Columbia, todos arrematados por Fagner. Concomitante à Abolição da Escravatura, o novo invento permitia a coleta providencial, ainda que limitada, de lundus e batuques negro-brasileiros. As antenas ligadas do fundo cósmico, em pleno contato com os norte-americanos, detectaram a polêmica operação de captura.
A última notícia que se teve da aparição desse visitante de mau agouro se deu ainda nos anos 40, na Festa da Penha. Dizem que Scott fumava um robusto cigarro de liamba e rumava desengonçado ao lado do Tuna Mambembe de Raul Malagutti e do Grupo Fala Baixo, que trazia à frente o violão de Sinhô. Lá teria topado uma tal Clementina, portadora de uma voz cujo alcance, seus sofisticados aparelhos confirmavam, não havia registro em qualquer galáxia conhecida. Percebendo a presença do rato olhando como um demônio faminto por sobre o ombro da cantora, Donga se antecipou na frente do monstro e gritou: “Sai Ojô-Kokorô!” O forasteiro deu um salto pra trás, como Corisco em Deus e o Diabo, e se desmaterializou em frente à escadaria, causando, primeiro, espanto pelo inusitado espetáculo de seu desaparecimento, e, depois, um alívio certo em todos os presentes. E o samba continuou.
Me ocorreu que o diligente alienígena poderia ter voltado agora à velha Penha, seus aparelhos completamente desnorteados com a gira digital que se podia auscultar nas imediações da chamada Rua Aimoré, onde, aos sábados, terráqueos malemolentes espraiavam-se uns sobre os outros ao som de um beat acelerado que lhe lembrava muito as claves sedutoras do sertão negro. Aos invés de couro, ferro e madeira, relegados a funções estruturais, estes sons advinham de máquinas muito semelhantes àquelas que Scott carregou por séculos a serviço de um poder que, agora, lhe abandonara pelas galáxias da vida. E que, cansado de subserviência, enamorado do sambão e dos seres de pele escura que nortearam sua vida por tanto tempo, teria resolvido servir não mais ao poder, mas ao contrapoder. Em busca de redenção, culpado por sua atuação servil nos séculos anteriores, armou-se para encarar o despotismo local e libertar na marra um dos líderes desta nova e carismática seita, preso como bode expiatório e simbólico do novo e velho racismo que o acompanhou por toda a sua trajetória brasileira. Conferiu os bolsos, as armas carregadas e a munição de sobra, granadas, facas e facões, tensão a mil. Deu uns tecos na nota de dois e, em busca do EA perfeito, se dirigiu à delegacia como quem vai de encontro a um destino inexorável.
2020