quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Matana Roberts: Folk Music do Século 21




















A velocidade do raciocínio de Matana Roberts pode a princípio comprometer o sentido do que ela deseja exprimir. Por exemplo, na entrevista para a última edição da revista Wire (ed. 356, outubro de 2013), Matana expõe um dilema inaudito: se no passado a beleza pagã e profunda das sonoridades afro-americanas contrastava com o alijamento do povo negro do processo político, a América pós-Obama lhes obriga a confrontar outra situação. É preciso agora responder a outras necessidades, lidar com o legado dentro de uma perspectiva que vislumbre, ao mesmo tempo, a suspensão do estigma social e o gozo das virtudes de um futuro aberto. Não se trata de negar a história ou o sofrimento de seus antepassados, muito menos de fazer vista grossa para as desigualdades raciais que ainda vigoram nos Estados Unidos. A obra recente de Matana parece tatear respostas para perguntas extremamente problemáticas: é possível livrar-se do ressentimento e extrair positividade de uma experiência traumática? Como lidar com o legado cultural de modo a permitir um outro olhar em direção ao futuro? Não deixa de ter um significado incômodo o fato de que tanto as respostas, quanto as perguntas se tornem visíveis no âmbito da música, a linguagem da guerra, da festa e do dinheiro, particularmente na América negra. 

Matana alcançou considerável reconhecimento como saxofonista de jazz, operando basicamente entre sua cidade natal, Chicago, e a cidade onde mora atualmente, Nova Iorque. Tal reconhecimento se deu basicamente através de projetos e grupos tais como Sticks & Stones (ao lado de Chad Taylor), com seu próprio quarteto ou, ainda, através do álbum The Chicago Project, em parceria com Frank Rosaly, Jeff Parker, entre outros. Tocou também com Rob Mazurek, Roscoe Mitchell, Henry Grimes, Pauline Oliveros, além de ter participado da gravação de Yanqui U.X.O, do Godspeed You Black Emperor!, de colaborações com o Savath & Savalas de Guillhermo Scott Heren e com o TV On The Radio. Contudo, foi a partir de “Coin Coin”,quando trouxe à tona as questões expostas acima, que despontou como uma das vozes mais contundentes da cultura negra norte-americana produzida no século 21.

Projeto de residência artística situado primeiramente no Canadá, “Coin Coin” consiste em um panorama sonoro programado para doze capítulos votados à exploração de temas como memória, imaginação e ancestralidade. O primeiro capítulo, intitulado Coin Coin Chapter One: Gens de Coleurs Libres, foi lançado em 2011 e obteve destaque na imprensa especializada ao sintetizar a linguagem do jazz acústico, cantos, declamações, articulações imprevisíveis e até mesmo caóticas entre a memória, som, imagem e poesia. A intenção é ressignificar os traços dessa cultura em vistas de sua atualização e problematização, não como um balanço retrospectivo, mas como um dispositivo criativo endereçada ao futuro.



A ideia não parece estranha se levarmos em consideração o aspecto autobiográfico do projeto, “Coin Coin” é o apelido de Marie Therésè Metoyer, escrava liberta que no século XVIII fundou uma comunidade em Cane River, Louisiana, onde outros negros libertos tinham acesso a grandes oportunidades. Segundo Matana, seus pais foram criados nessa região e, através de contos e estórias, cultivavam a memória de Coin Coin. “Ela foi o primeiro arquétipo feminino forte, além de minha mãe e minha avó, e isso foi exposto sob a forma de narrativas (storytelling)”, declarou à Wire. A presença da memória de Coin Coin pode causar a impressão de que trata-se de uma viagem ao passado. Mas basta escutar faixas como “Kersalia”, para adiar essa impressão. A composição condensa de forma absolutamente particular, declamações, estilos jazzísticos de épocas diferentes (fire music e dixieland), de forma a suspender a sucessão temporal em favor de um tempo mítico, concentrado não sobre a cor da pele, mas sobre a gama de experiências.

“Estou buscando destacar a experiência através do som de uma forma profundamente desafiadora para o ouvinte”, explica Matana, após lhe perguntar o que ela espera alcançar quando combina múltiplas referências para criar música. A respeito do caráter multifacetado de seu trabalho, pode-se afirmar que, não somente em relação ao projeto Coin Coin, mas de uma forma geral, Matana se utiliza de um amplo fundo extra-musical, recorrendo à fotografia, às narrativas audiovisuais e poéticas e, é claro, à música para elaborar algo como uma tapeçaria sonora. Isso se reflete claramente em seus álbuns, tanto os que se podem situar na seara do jazz tradicional, como nas possibilidades experimentadas nos dois primeiros volumes de Coin Coin.

No primeiro, Matana incorporou elementos dramáticos e evocativos, de forma a amarrar o conteúdo sonoro em uma narrativa descontínua. Ao passo que Coin Coin Chapter 2: Mississippi Moonchile soa mais como um trabalho coletivo, voltado para dinâmicas de banda, remetendo às orquestras, aos ensembles, às fanfarras que perfazem a história da música negra norte-americana. Pergunto se a autora percebe diferenças entre os dois primeiros capítulos, se de fato esta distinção foi intencional: “Cada capítulo deve ter seu próprio caráter individual, mas estão muito ligados pela criação. A propósito, este é apenas o segundo capítulo. Quero que cada capítulo tenha seu próprio sabor, mas eu ainda quero que a reunião de todos eles represente um todo de emoção e experiência humana.”



Embora seu trabalho tenha primeiramente se associado à cena do jazz tradicional, Matana considera a história da(s) cultura(s) negra(s) americana(s) como algo vivo e presente. A memória exerce um papel fundamental nesse contexto, mas ao invés de reafirmar o ressentimento, opera de forma criativa. Não há espaço para a nostalgia em Coin Coin. É perceptível uma tensão entre o passado e o presente, entre a memória e a experiência, mas sempre em vistas do futuro e da celebração do presente: “Algumas pessoas saem dos meus shows em Nova York porque não é ‘jazz’. Eu sou mais uma experimentalista que às vezes usa o jazz para comunicar meus sons, mas não é a única forma de arte americana com a qual eu flerto no meu trabalho. Estou lidando com a história da cultura afro americana, mas também estou lidando com a história da cultura americana como um todo. Eu amo a história americana — e isso inclui muitos elementos culturais que me interessam além da cor e do gênero. Para mim será sempre fascinante. Eu também sou fascinada pelas idéias das lembranças, e de como nós, como seres humanos, priorizamos as memórias, armazenamos idéias que vêm de algum lugar, que nos pede para lembrarmos algumas características que poderiam ser esquecidas. Fico intrigada com o que as pessoas deixam para trás.”

Certa vez Matana declarou que Coin Coin “é uma composição de linguagem e som". Em outra entrevista, teceu algumas considerações a um conceito particular, "panoramic sound quilting". Ela explica: “Em suma, é uma linguagem que tenho desenvolvido desde 2005 — um sistema de linguagem de som chamado PSQ (Panoramic Sound Quilting), que usa a notação musical ocidental e trechos de idéias visuais, tudo reunido para representar um som ‘acolchoado’, coeso, que me intrigue e desafie como compositora e musicista, assim como ao ouvinte.” Parece evidente que o termo quilt ("colcha" ou "acolchoado" em inglês) diz respeito a uma dupla característica: na medida em que remete ao artesanato, alude à força do trabalho manual, mas também exprime o aspecto presente das experiências, sintetizando muitas expressões em uma forma musical coesa e poderosa.

















Uma das ferramentas mais intrigantes nesse som panorâmico que Matana desenvolve é a utilização da voz, seja para declamar trechos de escritos seus e de outros autores, seja para flertar com as frequências do saxofone. Seu canto também aparece com mais destaque no capítulo dois de Coin Coin, embora no primeiro sua aparição seja mais contundente. Pergunto se existe alguma razão específica para isso e ela responde com um misto de sinceridade e modéstia: “Eu não estou nem um pouco interessada em ser vista como uma vocalista. Eu realmente não sei cantar muito bem, e não trabalho o canto da mesma forma que o saxofone, mas Coin Coin para mim é um trabalho de folk music experimental do século 21. E cantar é uma parte importante das tradições da folk music. Eu até costumo fazer o público cantar com as bandas durante estas performances. Mas o Capítulo 2 pediu muito mais o uso da voz do que o Capítulo 1, por razões que eu realmente não posso explicar. Foi apenas a forma como a peça saiu de mim. Eu sempre vou pelo instinto primeiro, e muitas vezes a música me diz mais o que fazer do que eu digo.”



Matana se apresenta no próximo sábado, 28/09 no Centro Cultural São Paulo e domingo, 29/09 na Audio Rebel, Rio de Janeiro. Matana coleciona fotos e objetos dos séculos 18 e 19, e os utiliza para se inspirar e construir seu trabalho. O título do concerto que apresentará no Brasil é Ephemera, uma combinação de imagens antigas, sons processados ​​e sons executados ao vivo, em que a artista testa as ideias que possivelmente serão reaproveitadas com seus grupos maiores. Por fim, manda um recado para os brasileiros, um recado aparentemente standard, mas que, vindo de quem vem, soa como uma consideração sobre a história do negro na América: “Estou realmente ansiosa para voltar ao Brasil. (...) É o único país que visito onde sou muitas vezes confundida com uma brasileira!”

Bernardo Oliveira



quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Chinese Cookie Poets/Nicolau Lafetá – Danza Cava (2013; Mansarda Records, Brasil)

























Em Lacuna (2012), primeiro longa metragem do diretor carioca André Lavaquial, há o registro de alguns diálogos entre os membros do grupo carioca Chinese Cookie Poets. Trata-se aparentemente de um momento em que o trio se esforça para encontrar estratégias de composição e arranjo — a bem da verdade, isto eu pude presumir, pois eles conversavam utilizando uma linguagem hermética o suficiente para que algumas frases se fizessem absolutamente incompreensíveis. É possível distinguir cada palavra dessas estranhas conversas, mas o sentido de cada uma delas parece interditado. 

Sobre o que falavam? Provavelmente sobre notas, acordes, timbres, dinâmicas. Será que estão em busca de uma correspondência secreta, forçando a palavra a exprimir-se tanto no plano da comunicação verbal, como na expressão sonora? Restou, enfim, a certeza de que, para além da vocação para o improviso e das habilidades evidentes de cada um dos instrumentistas, o método e os procedimentos de composição e arranjo, constituem o centro nervoso da música do Chinese Cookie Poets. 

Em seus trabalhos anteriores, destacava-se a combinação prodigiosa de improviso livre com a gana tribal e dissonante da no-wave — tendo o DNA de Arto Lindsay como referência —, além de ecos evidentes da combinação de jazz, rock e funk destilado por Miles Davis em On The Corner e em outros discos da fase setenta. Porém, a cada novo trabalho esses elementos são recombinados sob a influência de procedimentos específicos, comportando inclusive contribuições de tendências abstratas, como o noise e o minimalismo. Uma mescla de improvisação livre e temas compostos filtrados por severas edições digitais, no primeiro EP, 2010; Dragonfly Catchers and Yellow Dog, em 2011, registro de uma apresentação na Audio Rebel; Worm Love, de 2012, combinação de improvisação livre e edição criativa a posteriori, resultando nas dinâmicas nervosas de “En La Mano del Payaso” e da suíte “Three Worms”; e no último single, Viva La Raza, composição rigorosa, com baixos teores de improvisação. Em se tratando de Chinese Cookie Poets, sempre há que se perguntar pelo que virá em termos estéticos, técnicos e até mesmo visuais — a julgar pelo clipe prodigioso de “En La Mano del Payaso”.

Gravado em 2011, Danza Cava registra uma sessão com o trumpetista brasiliense Nicolau Lafetá, radicado em Amsterdã. Sob a influência do sopro lírico e preciso de Bill Dixon, Lafetá trouxe um outro temperamento para a sonoridade do Chinese. Abrindo mão de habituais tendências próximas à estridência do punk e da radicalidade do free jazz, o quarteto investiu dessa vez em estruturas concentradas nos baixos volumes, o que favoreceu a composição de ambientes permeados por pausas e silêncios. Como se observa logo nos primeiros minutos, com “Ojos de ceniza”: viradas discretas da bateria pontuam os acordes soltos do baixo e da guitarra, pavimentando o caminho para a melodia melancólica desenvolvida por Lafetá. O diálogo da bateria com o timbre rouco do trumpete abre “Lapetus l’uccello”, até que a linha de baixo se impõe como o guia do andamento. Em crescendo, o quarteto desemboca nos segundos finais em uma investida agressiva em síncopes características do p-funk.

A brevidade da vinheta “Il semi-affetto degli argonauti” tensiona a sequência, conduzindo o ouvinte para a faixa seguinte, “Tiao Yue”, talvez a mais complexa do álbum. Em uma dinâmica de "pergunta e resposta", as intervenções do baixo e da guitarra adquirem intensidade conforme uma certa dialética do improviso: de um lado, os músicos demonstram ter plena consciência de algum método prévio, mas, justamente por terem essa consciência, se permitem produzir pequenas mudanças, fraturas sonoras sobre a textura pré-combinada. “Chang’e III” retoma a pegada nervosa, apostando novamente na conversa entre trumpete e bateria: microfonia, ruídos percussivos do baixo e o trumpete “arranhado”, contribuem para formar um amálgama de timbres. “Passo torvo” encerra o disco de forma silenciosa, com os sons eletrônicos contribuindo para criar um clima de melancolia e desolação.



A capa, assinada pelo pianista e artista plástico Luís Augusto, exibe uma figura soterrada por uma cornucópia de rabiscos negros. “Excesso” talvez seja a qualidade mais evidente na pintura, mas convém observar mais atentamente. O rosto da figura parece propositadamente inexpressivo, como se pouco lhe importasse toda aquela atividade que se desenrola à sua volta. E, no entanto, ele se mantém sério, postura reta, indiferente. Somente a audição do disco pôde atestar se, na música do Chinese, as qualidades abstratas do silêncio poderiam substituir, ainda que provisoriamente, as evidências contundentes do excesso. Contrapondo-se à noção de ritmo e regularidade, a “dança oca” a que se refere o título, remete à geografia acidentada e detalhista das composições, contrária à vivacidade quase brutal dos trabalhos anteriores. Sim, o ambiente de Danza Cava é sombrio, por vezes melancólico. Com Lafetá, Felipe Zenícola no baixo, Renato Godoy na bateria e Marcos Campello nas guitarras, o Chinese mostrou que também é capaz de se expressar através de um alto nível de controle, e, ainda assim, com sua habitual espontaneidade.

Bernardo Oliveira

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Antimatéria, 08/09, domingo, SuperUber (Gamboa/RJ)




Antimatéria celebra o bom momento que vive a música carioca contemporânea. 

A partir das 18h do dia 08 de setembro, nove bandas/projetos ligados à nova música experimental carioca apresentarão pocket shows no SuperUber — Rua Silvino Montenegro, 78 – Gamboa/RJ. 

O evento é completamente gratuito, basta mandar o nome para a materia.blog@gmail.com ATÉ SEXTA 06/09, 18h.

A casa comporta 450 pessoas.

Nos intervalos, os discotecagem com DJ Nuno (40% Foda/Maneiríssimo) e Ruy Gardnier (Camarilha dos Quatro)

18:00-18:30 – -notyesus> (https://soundcloud.com/notyesus)
18:45-19:15 – DEDO (http://odedo.tumblr.com/)
19:30-20:00 – Bemônio (http://bemonio.bandcamp.com/)
20:15-20:45 – Negro Leo & Baby Hitler (http://negroleo.bandcamp.com/)
21:00-21:30 – Sobre a Máquina (http://sobreamaquina.bandcamp.com/)
22:45-23:15 – Ceticências (http://ceticencias.bandcamp.com/)
23:30-00:00 – Epicentro do Bloquinho (http://40porcentofodabarramaneirissimo.bandcamp.com/)

Instalação: Fernando Torres (Plano B)

DJs Nuno e Ruy Gardnier

Design: Chris Calvet
Realização: Matéria, Superuber, Audio Rebel
Apoio: Budweiser, Ketel One, Novas Frequências, Quintavant, Comuna, Plano B, Labareda Filmes, Sax Pax, Fita Bruta, Camarilha dos Quatro.

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Satanique Samba Trio – Bad Trip Simulator #3 (2013; s/g, Brasil)

























Concluindo a série Bad Trip Simulator, iniciada em 2010, o brasiliense Satanique Samba Trio demonstra que pretende resistir dentro de uma proposta estética que dificilmente se pode comparar a de qualquer outro grupo brasileiro. No terceiro volume da série Bad Trip Simulator, o Satanique persevera na combinação prodigiosa de música instrumental com forte influência da música nordestina (Hermeto falando alto!), com interferências alienígenas tais como ruídos, efeitos, ironia cruel, nonsense, palavrões, berros. A intenção é evidente e enunciada claramente por Munha, baixista e idealizador da zorra toda: trazer para o centro da música instrumental brasileira todos os elementos que foram expurgados de sua estrutura — sobretudo se tomarmos como referência a tendência yuppie que caracterizou parte da música produzida na década de 80. Deste modo, a iconoclastia é a senha para adentrar no estranho mundo do Satanique Samba Trio.

A começar pelo fato de que não são propriamente um trio, mas um quinteto. Formado por Munha no baixo, RC na viola caipira, Etos Jerônimo no clarinete, Jota Dale no cavaco, Lupa na bateria, André Togni na percussao, o Satanique lançou o EP Misantropicália em 2004, o álbum Sangrou em 2007, Bad Trip Simulator #2 em 2010 e Bad Trip Simulator #1 em 2012. A sequência desordenada não nos deixa mentir: após o Bad Trip Simulator #2 (2010) e o #1 (2012), só poderia aparecer o volume 3, a pseudo-conclusão da série de faixas que pretendem alçar o ouvinte a uma sensação de “onda errada”.

Ora, a “onda errada” nada mais é do que a junção, no mesmo contexto, dos temas e batuques do baião jazzístico com os elementos alienígenas que são introduzidos no corpus sagrado da “música instrumental”. Ocorre que, aparentemente, neste terceiro volume, o foco incide mais sobre os ritmos propriamente “brasileiros” do que nas fraturas que possibilitam a “onda errada”, isto é, os ruídos e intervenções irônicas. Eu disse “aparentemente”, pois a audição revela outras possibilidades de interpretação.

Talvez o maior mistério do Satanique seja o seguinte: trata-se de uma música aparentemente disciplinada, resultante de um disciplinado processo de composição, mas que exala festa, euforia e, eventualmente, o caos. Como? É evidente que Munha, enquanto compositor, investe no equilíbrio entre o aspecto harmônico e melódico, mas parece que essas duas instâncias são como que absorvidas pelo ritmo. E esta "percussividade" fundamental se reflete de forma evidente no caráter festeiro das onze faixas.

Por exemplo, em “Imoboi”, o boi é desempenhado pelo saxofone barítono de Zé Castello, numa sequência de notas graves; novamente uma melodia em loop descreve sua rota rítmica em conformidade com as dinâmicas da percussão, tornando percussiva sua própria a intervenção. Guitarra, pífanos, viola capipira sobrepondo-se nas modulações sucessivas, a todo momento uma ciranda de texturas e temas, mediadas pelo mesmo aspecto percussivo.



Na abertura, com a festiva “Pipocalipse”, modulações e convenções em modo frenético; efeitos sonoros súbitos, sopros pontuais, micro-interlúdios dentro das próprias composições: um grau de excitação que indica um diálogo essencial com o frevo de Recife. Já em “Badtriptronics #3”, a alternância de andamentos simultaneamente singela e cavernosa, no qual se pode escutar duas melodia em contraponto, reforçando o ritmo, timbres de guitarra, cavaquinho, percussões e demais efeitos sonoros.



A prioridade da composição sobre a instrumentação, ao transformar os instrumentos em agentes do ritmo, reforça o clima de festa. É o que se observa nas pausas nervosas e nas alternâncias de clima e modulações que atravessam as concepções de faixas como “Forró mata” e “Sodoma & Gonzaga”, mas também nas justaposições de frases melódicas em ostinato, como no caso de “Hematuria of the gods” (logo na abertura, com rabeca, guitarra, sopro, efeitos), ou nas pequenas células que se repetem em “Hellcife Blues”. Nota também para a estrutura progressiva de “Auto da Maldita”, cujo tema se repete em função de um clima de anunciação, até eclodir em uma conclusão súbita sob o efeito da guitarra distorcida.



Bad Trip Simulator #3 reproduz constantemente a figura da anomalia através de uma viagem por dentro do corpo moribundo que pretende expor e ressucitar. Se os investimentos anteriores depunham em favor de uma certa má vontade para com os rigorosos ditames rítmicos do baião, desta vez é se valendo das quebradas e engenhos típicos desta linguagem misteriosa que a iconoclastia do grupo se mantém intacta. E duradoura, espero.


Bernardo Oliveira