terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Sobre um disco de gafieira que faz 10 anos: Thiago França – Malagueta, Perus e Bacanaço (2013; YB Music/Goma Gringa, Brasil)



Sobre um disco que faz 10 anos:

Thiago França – Malagueta, Perus e Bacanaço (2013; YB Music/Goma Gringa, Brasil)

 

1.

O termo “gafieira” se consolida por volta dos anos 40, quando as big bands norte-americanas são disseminadas mundo afora, transformando inclusive a dança de salão carioca. As grandes orquestras brasileiras, como a Tabajara de Severino Araújo, incorporaram criativamente os ritmos e formas de tocar das big bands, com a contribuição preeminente do samba e do choro. Observa-se também a inclusão de gêneros estrangeiros como o jazz, a rumba, a salsa e demais inflexões latinas, ao passo que ritmos como o lundu e o maxixe adquirem feições renovadas. No final da década de 70, a “gafieira universal” da Banda Black Rio adiciona o funk à combinação de ritmos, abalando a crença na suposta restrição do termo gafieira à prática do samba. Esta concepção abre o leque de possibilidades à incorporação de outros gêneros e estilos de tocar, arranjar, dançar, que não aqueles que marcaram a gafieira em seus primórdios. Assim, o termo pôde enfim ser compreendido como um espaço de sínteses culturais com o intuito exclusivo de conduzir à dança e à festa.

 

2.

Os cinquenta anos do conto “Malagueta, Perus e Bacanaço”, assinado pelo escritor paulistano João Antônio, serve de fio condutor para que o saxofonista mineiro Thiago França retome a noção de gafieira por caminhos em nada óbvios. Seguindo em direção oposta à gafieira um tanto quanto padronizada de álbuns como Zeca Pagodinho (Acústico MTV Vol. 2 – Gafieira) e Nei Lopes (Samba a Rigor), França recorreu a uma forma particular de interpretar o carnaval de gêneros da gafieira, recriando-a sob outras configurações. Não se trata, porém, de uma “atualização”, como se o samba de gafieira, o choro e o bolero precisassem se reafirmar através da mescla com gêneros mais “contemporâneos” como o funk ou o rap. Mais do que o repertório, é a forma de arranjá-lo e tocá-lo — pesada, direta, econômica —, mas também a forma de gravá-lo, que distingue Malagueta… no panorama da música instrumental brasileira.

 

3.

Neste sentido, é preciso lembrar que durante a década de 80, os processos de gravação comprometeram a sonoridade dos instrumentos de orquestra, principalmente os sopros, e o mercado foi invadido por uma concepção empobrecida do termo fusion. Só em meados dos anos 90, quando a gravação digital permitiu aos músicos fugirem dos esquemas de produção das grandes gravadoras, houve um aumento da pesquisa por outras forma de se captar, gravar e mixar. Malagueta… testemunha a consolidação de uma outra consciência do problema do timbre e da execução em gêneros considerados “tradicionais”, a julgar pelo timbre forte e pelo punch com que cada instrumento soa.

 

4.

Talvez a referência mais próxima a Malagueta… seja Confusão Urbana, Suburbana e Rural, álbum gravado por Paulo Moura em 1976, no qual o saxofonista promove o encontro entre a gafieira primordial e a “gafieira universal”, investindo na ampliação do espectro de estilos. São marcantes a presença da música do norte do Brasil (o carimbó) e de experimentos como “Bicho Papão/Tema do Zeca da Cuíca”, parceria climática de Moura com Martinho da Vila. Mais próximo do “samba no prato” de Edison Machado do que da bossa nova ou do samba de morro, Moura conseguiu obter efeitos sonoros que contemplavam e renovavam simultaneamente o legado da “dança de salão”. Reduzindo drasticamente o número de músicos do ensemble, consegue obter dinâmicas mais precisas de arranjo, algo próximo ao que realiza Thiago França no presente trabalho.

 

5.

Na interpretação sonora do conto de João Antônio, França embala os três personagens com sua releitura particular da gafieira, incluindo não só o samba, o choro, o bolero, mas também o sambalanço, o funk e o rap. Cabe também — e esta é a diferença digna de nota — uma dinâmica de interpretação calcada mais na força dos temas que na prática do improviso. São os temas, com suas características efusivas, melancólicas, caricatas, burlescas, os responsáveis por descrever o ambiente social e psicológico que envolve os personagens. Como afirmou o próprio França em entrevista recente: “Eu gosto muito de ter um disco contando uma história, e não é um disco de saxofone. O disco nem tem improviso. O de ‘Malagueta, Perus e Bacanaço’ [a faixa] está dentro da composição, tem ideia de ser uma parte da composição, não tem aquela coisa de chorus, é só tema.”

 

6.

Para construir a narrativa musical do conto de João Antônio, França contou com a contribuição dos parceiros do conjunto Gafieira Nacional, que nos idos de 2011 se apresentava no bar Ó do Borogodó em São Paulo: Rodrigo Campos (voz, cavaquinho, violão e guitarra), Marcelo Cabral (baixo), Welington “Pimpa” Moreira (bateria e percussão), Amilcar Rodrigues (trompete e flughelhorn) e Didi Machado (trombone). O sexteto foi incrementado com a presença de Anderson Quevedo (sax barítono), Kiko Dinucci (voz, guitarra, violão e percussão) e Daniel Ganjaman (hammond, em duas faixas), além das participações especiais da cantora Juçara Marçal, do rapper Rodrigo Ogí e das “locuções” de Romulo Fróes e Maurício Pereira. Ao lado desse time, França conseguiu extrair não somente uma atualização autêntica do termo gafieira, como também um tipo de arranjo mais solto e permeável a pequenas experimentações, que apresentam uma outra possibilidade até mesmo para o próprio “samba de gafieira”.

 

7.

Quatro são os temas instrumentais que dialogam com o passado e o futuro do “samba de gafieira” e demais ritmos de festa. O sambalanço sincopado “Malagueta, Perus e Bacanaço” abre o disco, ressaltando esse gênero que se desenvolve nos anos 60 com fortes influências da gafieira. O cavaquinho serpenteando o ritmo, a seção de metais anunciando maliciosamente o tema, a percussão impassível, introduzem o ouvinte no clima de malandragem. “São Paulo de Noite” é daqueles sambas com forte sotaque paulistano, lembrando as melodias em tom menor de Paulo Vanzolini, mas também aquele tipo de samba oratório de Baden e Vinícius. “Tema do Carne Frita”, homenagem ao artista do pano verde, segue em compasso semelhante: samba sincopado que, ao invés de soar com o peso da orquestra, aposta na sutileza do tema e do ritmo. O pastiche romântico “Bolero de Marly” introduz a prostituta Marly, namorada de Bacanaço, seu cafetão. A repetição da entrada em virtude de um erro de execução, situa o ouvinte no contexto esfumaçado dos prostíbulos e seus músicos da noite. Os ruídos que introduzem a ellingtoniana faixa de encerramento, “De Volta à Lapa”, foram produzidos pelas chaves do saxofone de França. O músico enuncia o tema melancólico, entrecortado pela intervenção dos metais, enquanto Maurício Pereira recita um trecho do conto no qual Malagueta, Perus e Bacanaço se despedem do leitor pedindo um café fiado no bar.

 

8.

Dentre as canções, destaco o sambalanço “Na Multidão (Kiko Dinucci e Romulo Fróes), cantada por Juçara Marçal. Da introdução com os metais dissonantes, à levada de violão indefectível de Kiko Dinucci até o interlúdio (“lá vai mais um pro caixão, sem cortejo e sem perdão”), violão e o saxofone estruturam o ritmo. Outro exemplo nesse sentido, é o “Caso do Bacalau”, escrita e cantada por Dinucci e pelo rapper Rodrigo Ogí, o violão dialogando com os rufares discretos da caixa de bateria, e o flow de Ogí costurando rimas sobre o sambalanço funkeado. Em “Vila Alpina”, belo samba composto e interpretado Rodrigo Campos, vale notar que Dinucci reforça o tamborim com uma sonoridade aguda produzida pela percussão de moedas. Uma das características mais interessantes da música produzida por essa turma de São Paulo é a prática de valorizar o ritmo, e elaborar os arranjos usando os instrumentos harmônicos e melódicos com funções rítmicas de primeira ordem. Quando esse procedimento encontra a canção, o resultado é quase sempre certeiro.

 

9.

Das três vinhetas que apresentam os personagens do conto, duas delas destoam do restante do disco. “Nostalgia (Perus)” se inicia com um fraseado de saxofone que lembra “Lonely Woman” de Ornette Coleman. O tema é sombrio, embora Dinucci, logo nos primeiros segundos, nos situe no território da memória: “é, o joguinho na Vila Alpina…” Já “Fome (Malagueta)”, cuja locução inicial é feita por Romulo Froés (“Fome, a vontade de comer o outro por dentro”), é daqueles free rocks esporrentos, guitarra distorcida aos berros, que introduz o gênio intempestivo de Malagueta. Já “Picardia (Bacanaço)” é um sambão de terreiro com ares de estádio lotado em tarde de domingo. Repleto de síncopes características deste estilo, a cuíca roncando alto, a faixa tem o intuito de apresentar o temperamento festeiro de Bacanaço.

 

10.

Em Malagueta, Perus e Bacanaço, os temas musicais são costurados de forma a narrar a história descrita no conto, na qual três personagens perambulam pela noite em busca de jogo, bebida e mulher. Vale problematizar essa ideia, pois me parece impossível depreender dos temas e arranjos que trata-se da leitura sonora de um conto, isto sendo possível mediante a apresentação da ligação do autor com a estória. Nesse sentido, a própria capa, repleta de informações, é responsável por inserir o ouvinte no ambiente da marginália paulistana dos anos 50. França, porém, não se restringiu aos ritmos daquele tempo, mas apostou em uma interpretação livre, traduzindo sua leitura pessoal através de sonoridades contemporâneas. Estamos, portanto, situados em um contexto narrativo, no qual passado, presente e futuro da cidade (e também da música) se encontram embaralhados.

 

11.

O termo Gafieira é, de certa forma, sucedâneo de contradições e polêmicas que marcaram os termos Pagode e Funk. Como estes, não se resume a uma definição unívoca e identitária, mas articula instâncias aparentemente separadas: uma síntese musical (na qual o “samba de gafieira” é apenas uma das possibilidades); uma dança (na realidade, uma pluralidade de danças, do “coladinho” ao “cruzado” ao “passinho”); e um encontro de músicos e dançarinos com intenções festivas. Malagueta, Perus e Bacanaço é um disco que remete ao passado da gafieira sem recair em nostalgia, a música, mais uma vez, operando este meio de transporte capaz de nos conduzir para uma viagem atemporal. Ao lado de um grupo seleto de grandes músicos, Thiago França transporta a vivacidade da gafieira carioca para o ambiente desvairado da pauliceia dos cinquenta, mas também àquilo que dela ainda sobrevive na urgência da vida contemporânea.


Bernardo Oliveira (em algum momento de 2013)

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