segunda-feira, 21 de julho de 2025

HEINZ VON FOERSTER (1911–2002) O PAI DA SEGUNDA CIBERNÉTICA





Heinz von Foerster, figura carismática na comunidade internacional de cientistas identificados com o legado da cibernética, faleceu em 2 de outubro de 2002, em sua casa em Pescadero, Califórnia, cercado por seus entes queridos. Ele tinha 90 anos. Físico particularmente talentoso em formalismos matemáticos, era também um filósofo interessado em esclarecer a epistemologia que emergia do projeto cibernético.


Ascendência Europeia

Nascido em Viena em 1911, sua infância burguesa foi culturalmente rica: seus pais, e especialmente seus avós, recebiam constantemente uma multidão de artistas, pensadores, cientistas e figuras políticas nessa Viena culturalmente vibrante do início do século XX. Assim, no contexto de sua infância, havia essa agitação intelectual, artística e política que certamente contribuiu para aguçar sua extrema curiosidade intelectual, seu interesse constante pelas artes, particularmente pela dança e pela música, e sua extraordinária inteligência. Heinz gostava de dizer que foi essa atmosfera culturalmente diversa que lhe incutiu, desde muito cedo, o desejo de lidar simultaneamente com uma multiplicidade de perspectivas para formar uma visão da realidade. Aqui encontramos a âncora viva de sua rejeição a visões monodisciplinares — artefatos de instituições acadêmicas — e seu impulso para a fundação de uma perspectiva transdisciplinar.

Ainda jovem, o acaso o levou a assistir a uma palestra proferida na Universidade de Viena por um professor chamado Ferdinand Scheminzky. A palestra intitulava-se "É possível gerar vida artificialmente?". Descobriu-se que essa palestra fazia parte de uma série de encontros organizados por filósofos associados ao "Círculo de Viena". Isso o levou a conhecer o pensamento de Rudolf Carnap, Hans Hahn e Ludwig Wittgenstein ainda muito jovem. Esses encontros filosóficos seriam decisivos na formação de seu pensamento: certas observações de Rudolf Carnap — em particular suas reflexões incisivas sobre o significado do sinal "=" (simetria, reflexividade, transitividade) — levaram-no a ler o Tractacus Logico-Philosophicus de Wittgenstein. Ele recebeu sua formação disciplinar inicial em física (mestrado pelo Instituto de Tecnologia de Viena, seguido de doutorado em 1944 pela Universidade de Breslau). Absorvido principalmente por questões filosóficas, lógica e matemática, adquiriu, como físico, uma especialização em engenharia elétrica. Embora um de seus avôs fosse judeu, conseguiu trabalhar em Berlim durante a guerra, em laboratórios envolvidos no desenvolvimento da tecnologia de radar. Retornou a Viena no final da guerra. Durante esse período, também morou na Silésia, pois a empresa onde trabalhava havia sido transferida para lá.

Seu primeiro trabalho científico foi uma monografia sobre memória. Fascinado pela observação de que um sujeito humano tende a esquecer cada vez mais elementos à medida que recua no tempo na memória, buscou formalizar esse tipo de fenômeno com o objetivo de formular uma teoria da memória. Por fim, utilizou os conceitos da mecânica quântica para construir seu modelo. As condições de vida em Viena no Pós-Guerra eram difíceis — a cidade, devastada pelos bombardeios, ainda estava ocupada pelas forças aliadas — então ele decidiu emigrar com sua família para os Estados Unidos da América em 1949. Ele trouxe consigo algumas cópias de seu livro intitulado The Memory — a Quantum Mechanical Treatise (título em inglês de seu livro escrito em alemão), que ele pensou que poderia servir como um "cartão de visita".


As Conferências Macy sobre Cibernética

Um exemplar de seu livro sobre memória chegou às mãos de Warren McCulloch, diretor do Departamento de Neuropsiquiatria da Universidade de Illinois em Chicago, e este último manifestou interesse em conhecê-lo. Embora Heinz von Foerster ainda não fosse fluente em inglês, os dois homens se entenderam rapidamente ao se depararem com equações diferenciais e outras formulações matemáticas! Esse contato inicial levou McCulloch, então presidente desta reunião, a convidar von Foerster para participar do sexto encontro científico financiado pela Fundação Josiah Macy Jr., organizado em Nova York sob o título: “Mecanismos Circulares Causais e de Feedback em Sistemas Biológicos e Sociais.”

A série de dez Conferências Macy (1946-1953) seria posteriormente reconhecida como o berço da cibernética. Foi Heinz von Foerster — nomeado, ao final desta sexta reunião, "secretário" responsável por preparar os anais e, por fim, garantir a publicação dos Anais — quem propôs o termo "cibernética" como título dessas reuniões. Heinz relata que Norbert Wiener, o criador desse termo e participante dessas reuniões (até a sétima, inclusive), ficou comovido e encantado com ele.

As Conferências Macy sobre Cibernética foram um ponto de encontro privilegiado, onde vários especialistas das ciências naturais (biofísica, matemática, lógica, neurofisiologia, engenharia elétrica) conviveram com alguns pesquisadores das ciências sociais, como os antropólogos Gregory Bateson e Margaret Mead. Este projeto interdisciplinar consiste em refletir sobre os padrões comuns que emergem da comparação entre mecanismos de feedback presentes em vários organismos biológicos, incluindo humanos, a fim de aproximá-los de mecanismos específicos de certos dispositivos técnicos, com base em uma teoria da informação emergente (Claude Shannon está presente) e nos novos recursos de uma ciência da computação emergente (John von Neumann é uma das personalidades presentes). Vários observadores consideram que essas conferências deram origem a algumas das ideias-chave que serão posteriormente discutidas nas áreas de ciência da computação e inteligência artificial (IA), estudo de redes neurais, teorias de sistemas e complexidade, e na ciência cognitiva.


O Laboratório de Computação Biológica (1958-1975)

Enquanto lecionava desde sua chegada aos Estados Unidos no Departamento de Engenharia Elétrica da Universidade de Illinois (Urbana), que dirigia, fundou o Laboratório de Computação Biológica (BCL) na mesma universidade em 1958. O foco científico do laboratório demonstrava um escopo interdisciplinar e internacional. Reunia pesquisadores de diversas áreas científicas (biofísica, biologia matemática, neurofisiologia da cognição, ciência da computação e tecnologia, ciência cognitiva e epistemologia). Beneficiando-se de importantes bolsas, notadamente do Escritório de Pesquisa Naval, parte do trabalho do laboratório levou a avanços na computação paralela. Uma das áreas envolveu a construção de um novo tipo de computador equipado com sensores fotoelétricos para reconhecimento de múltiplos objetos. Outras pesquisas se concentraram em hematologia médica; outras ainda, em demografia.

Heinz von Foerster era um pensador que gostava de provocar a reflexão com base em ideias poderosas de cunho paradoxal, ou às vezes aparentemente tautológico. Uma delas foi o famoso princípio da "ordem a partir do ruído", formulado já em 1960 e que foi adotado notavelmente por Henri Atlan em sua teoria da auto-organização. A tese consiste em argumentar que o ruído introduzido em sistemas auto-organizados gera, em última análise, menos entropia do que uma reorganização do sistema orientada para novos fins. O renascimento contemporâneo dessa ideia nas ciências cognitivas aparece na forma de "ressonâncias estocásticas" (Varela). Von Foerster foi um dos principais proponentes dos problemas da auto-organização, tema que explorou primeiro com Gordon Pask, seu companheiro de longa data, depois com Humberto Maturana (que conheceu em 1962) e, finalmente, com Francisco Varela (que conheceu durante um semi-sabático no laboratório de Maturana em Santiago, Chile, em 1973). Na França, Edgar Morin foi um dos primeiros pensadores a levar a sério as consequências epistemológicas dessas ideias de "ordem através do ruído" e auto-organização. Morin também convidou Heinz von Foerster para participar da conferência sobre a “Unidade do Homem: Invariantes Biológicos e Universais Culturais”, realizada na Abadia de Royaumont em setembro de 1972.

Heinz von Foerster decidiu fechar o BCL em 1975. Não apenas por causa de sua aposentadoria, mas também porque observou que as condições de financiamento da pesquisa nos Estados Unidos haviam mudado significativamente. Esse período marcou o início de um declínio institucional por parte de grandes fundações, bem como de agências governamentais e militares, no campo da pesquisa básica abrangido pela BCL. Esse laboratório buscou caminhos de pesquisa e desenvolvimento em ciência da computação que não se alinhavam às tendências dominantes em Inteligência Artificial (IA), um setor que também era fortemente subsidiado por essas agências federais (considere o laboratório de Marvin Minsky no MIT). Isso ilustrou perfeitamente a bifurcação que havia começado bastante cedo entre os cibernéticos, entre a corrente da qual emergiram os desenvolvimentos deslumbrantes da IA (um setor que foi amplamente subsidiado, apesar do fato de esses pesquisadores, em última análise, não terem cumprido suas promessas ambiciosas de construir "inteligência artificial") e a corrente de pesquisadores mais sintonizados com o projeto inicial da cibernética — incluindo os da BCL — que rejeitavam as definições ingênuas de cognição e inteligência propostas pelas principais figuras da IA. Somente mais tarde, durante a década de 1980, as perspectivas conexionistas na ciência cognitiva (e um novo estilo de pensar sobre robótica, inspirado no espírito da BCL) convergiriam com os interesses dos herdeiros de ambas as comunidades de cientistas.


Cibernética de Segunda Ordem

As palestras e os escritos de von Foerster que provavelmente serão mais lembrados são de natureza epistemológica. É aí que reside a originalidade do projeto filosófico de Heinz von Foerster. Ele propõe uma nova leitura epistemológica do projeto cibernético. Enquanto até então os pesquisadores se contentavam com uma cibernética de sistemas observados (cibernética de primeira ordem), von Foerster os convida a praticar, em vez disso, uma cibernética de sistemas observacionais (cibernética de segunda ordem), ou seja, uma abordagem que não pode mais excluir a consideração plena do observador incluído no processo de observação. A primeira cibernética — ou mais precisamente, a "primeira leitura" do projeto cibernético, uma vez que as ideias-chave da "segunda cibernética" já estão parcialmente incluídas em certas discussões nas conferências Macy, para aqueles que sabem reconhecê-las — favorece noções como feedback, que apenas alimentam as teorias de controle agora aplicadas ao comportamento dos organismos vivos. Para von Foerster, essa ideia de feedback orientada para a teoria do controle não é nova; já era considerada em estudos de engenharia elétrica. O que é verdadeiramente novo e fascinante no projeto da cibernética é a consideração das consequências lógicas e epistemológicas dos comportamentos dessa categoria de sistemas, que podem agir sobre si mesmos. Esse tipo de funcionamento força o observador a formular paradoxos e a recorrer a conceitos autorreferenciais, o que implica um verdadeiro salto epistemológico em relação à lógica clássica. O ciberneticista de segunda ordem não pode simplesmente recorrer à teoria dos tipos lógicos de Russell para descrever os comportamentos paradoxais de sistemas autorreferenciais: "Eu pensava na teoria dos tipos como uma desculpa miserável para alguém que não quer assumir a responsabilidade de dizer 'eu estou dizendo isso', porque não se espera que se diga 'eu' com a teoria dos tipos." (...) "A cibernética, para mim, é o ponto em que se pode superar a teoria dos tipos de Russell, adotando uma abordagem adequada às noções de paradoxo, autorreferência, etc., algo que transfere toda a noção de ontologia — como as coisas são — para uma ontogênese — como as coisas se tornam." (Entrevista de 1995). A cibernética de segunda ordem consiste em levar a sério a dinâmica do funcionamento paradoxal, acrescentou.

Nas palavras de André Béjin, o projeto epistemológico de von Foerster consiste em "definir as condições de possibilidade de uma teoria da descrição e de uma teoria da cognição e definir seus fundamentos". Ecoando a ambição de Maturana, o objetivo de von Foerster é "restabelecer a margem de autodeterminação de qualquer sistema cognitivo. Tal sistema não seria o que o ambiente faz dele, seria o que ele faz do que o ambiente faz dele". Uma das teses centrais de von Foerster é sustentar que objetos e eventos no ambiente não têm existência intrínseca: eles não existem independentemente do observador que os percebe e que cria representações deles. Este é, a fortiori, o caso dos próprios gestos do observador ligados ao processo de observação: "toda descrição é a descrição de um observador". Com este aforismo aparentemente tautológico, von Foerster oferece uma crítica radical à ideia de objetividade na ciência. Ele defende a reinserção sistemática do observador na observação. O observador está incluído na observação. Em virtude de sua ausência impossível do local e do processo de observação, o observador humano afeta as condições de observação tanto quanto deixa sua marca, por meio do uso da linguagem, na formulação de suas descrições. Von Foerster insiste que os cientistas levem em consideração operações ou descrições autorreferenciais. Ele indica que o uso de "conceitos de segunda ordem" (isto é, aqueles construídos com o prefixo "self", como auto-organização, autoprodução, autorreplicação, autorregulação) é essencial na produção de categorias científicas, particularmente se os cientistas buscam questionar os pressupostos subjacentes da ciência contemporânea, sistemas invisíveis de crenças frequentemente enredados na própria construção dos problemas que a ciência busca resolver. O surgimento dessa segunda cibernética (cibernética da cibernética) estará intimamente associado às diversas perspectivas construtivistas que emergiram na filosofia e nas ciências sociais e humanas. Em outras palavras, desde as décadas de 1960 e 1970, o núcleo ainda ativo de pesquisadores que se identificam com a herança cibernética tem testemunhado o surgimento de uma nova corrente de epistemologia construtivista, cujos três pioneiros foram Heinz von Foerster, Gordon Pask e Humberto Maturana. Esse trabalho é continuado hoje por Ernst von Glasersfeld, Ranulph Glanville, Klaus Krippendorff, Paul Pangaro e Stuart Umpleby.

***

Heinz von Foerster era um homem generoso e charmoso, cheio de humor, impassível, com um olhar aguçado, uma resposta inteligente e sempre pertinente, atento às perguntas que seus alunos e colegas lhe faziam. Frequentemente, respondia a uma pergunta com outra, o que imediatamente desencadeava um diálogo com seu interlocutor. Tive o privilégio de conhecê-lo pessoalmente em outubro de 1974, em uma conferência da Sociedade Americana de Cibernética, uma associação profissional que ele ajudou a fundar (notadamente para homenagear e dar continuidade ao trabalho de Warren McCulloch). Por pura sorte, encontrei-me sentado ao seu lado no banquete. Quando lhe disse que era aluno de Edgar Morin, seus olhos brilharam e ele se lembrou dos bons momentos que passara com Morin. Naquela noite, ele proferiu o "discurso presidencial" que havia intitulado "Cibernética da Cibernética". Ele também havia levado para o local da conferência alguns exemplares da coleção homônima, uma publicação artesanal que ele havia produzido com seus alunos como parte de um de seus cursos na Universidade de Illinois. Desde as primeiras palavras de sua palestra, ele imediatamente capturou a atenção da plateia, que acabara de saborear um farto jantar. Começou apresentando o que chamou de "teorema número um de Humberto Maturana": "Tudo o que é dito é dito por um observador"; acrescentou, com um toque de humor, "modestamente", disse, o que chamou de "corolário número um de Heinz von Foerster": "Tudo o que é dito é dito a um observador". O restante de sua palestra consistiu em mostrar que essas proposições aparentemente tautológicas continham algumas intuições epistemológicas dignas de serem levadas a sério. Sua plateia ficou cativada: ele conseguiu transmitir seu prazer em chegar ao fundo das coisas, mantendo sempre um sorriso que demonstrava estar em plena posse de suas faculdades.

Serge Proulx — Université du Québec à Montréal


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ATLAN, H., Entre o Cristal e a Fumaça, Paris, Seuil, 1979.

BÉJIN, A., “Teoria da Cognição e Epistemologia da Observação: Apresentação”, em A Unidade do Homem, Paris, Seuil, 1974.

Centro Royaumont para uma Ciência do Homem, A Unidade do Homem, editado por E. MORIN e M. PIATTELLI-PALMARINI, Paris, Seuil, 1974.

DUPUY, J.-P., As Origens das Ciências Cognitivas, Paris, La Découverte, 1994.

HEIMS, S., J., The Cybernetics Group, Cambridge, MIT Press, 1991.

MATURANA, H., “Estratégias Cognitivas”, em A Unidade do Homem, op. cit., 1974.

MORIN, E., La Méthode, 1. La nature de la nature, Paris, Seuil, 1977.

VARELA, F., “Heinz von Foerster, o cientista, o homem”, Stanford Humanities Review, 4 (2), 1995.

VON FOERSTER, H. ed., Cybernetics of Cybernetics, coleção de textos, Urbana, Illinois, Biological Computer Laboratory, 1974.

VON FOERSTER, H., “Notas para uma epistemologia de objetos vivos”, em The Unity of Man, op. cit., 1974.

VON FOERSTER, H., “Cybernetics of Cybernetics” em K. KRIPPENDORF, ed., Communication and Control in Society, Nova York, Gordon & Breach Science Publications, 1979.

VON FOERSTER, H., Observing Systems (com uma introdução de F. Varela), Seaside, CA, Intersystems Publications, 1981.

VON FOERSTER, H., entrevista com J.-P. DUPUY, P. LIVET, P. LÉVY e I. STENGERS, Genealogias da Auto-Organização, Cahiers du CREA n.º 8, École Polytechnique, Paris, 1985.

VON FOERSTER, H., entrevista com S. FRANCHI, G. GÜZELDERE e E. MINCH, Stanford Humanities Review, 4 (2), 1995.

VON FOERSTER, H., "Ética e Cibernética de Segunda Ordem" em WATZLAWICK, P. e NARDONE, G., orgs., Estratégia para a Terapia Breve, Paris, Seuil, 2000.

VON FOERSTER, H., Compreendendo a Compreensão. Ensaios sobre Cibernética e Cognição, Nova York, Springer, 2003.

* Uma autobiografia detalhada de Heinz von Foerster será publicada em inglês em 2003. Esta é uma tradução do livro: Monica Broecker & Heinz von Foerster, Part of the World, Carl-Auer-Systeme Verlag, Heidelberg, 2002.

terça-feira, 8 de julho de 2025

“QUE CINEMA É ESSE?”: ATUALIZAÇÕES BRASILEIRAS

 









01.

A pergunta “que cinema é esse?” não pede respostas ou definições, mas novas perguntas em torno da própria essência do que significa fazer e assistir cinema – ainda que aqui eu deseje, antes de mais nada, indicar o quanto ganhamos ao desfazê-la e desmanchá-la em outras possibilidades cinematográficas. Não me alongarei nesse tema, mas penso que o cinema materializa a mecânica e a metafísica da percepção, da cognição e da imaginação perante uma espécie de duplo, nosso próprio aparelho perceptivo, cognitivo e imaginativo – e, portanto, não se endereça somente “aos olhos ou aos ouvidos de maneira regulável”, como afirma Bresson em seu Notas sobre o cinematógrafo, mas à zona ambígua e cinzenta da própria experiência, produtora de imagens e movimento. Seria possível conciliar, no âmago da matéria cinematográfica, percepção e imaginação oriundas de outras visões e culturas não europeias? Países e populações que possuem diferentes práticas e formulações em torno da produção de imagem e da própria noção de imagem? A resposta não seria apenas negativa, como também dispersa: a própria imagem do sonho e da realidade subjacente à produção do cinema brasileiro, por exemplo, da chamada Retomada e do cinema Maxakali do século XXI difere de forma radicalmente irreconciliável.


02. 

O cinema, contudo, não reproduz um duplo formal a partir de um conjunto perceptivo-cognitivo-imaginativo que é preenchido de alguma maneira por materiais captados, mas inventa, como um acréscimo de realidade, formas singulares de manipulação do tempo e do espaço. E o faz através da composição de planos, cortes, sons e texturas. Procedimentos que geralmente resultam em um “uso criativo da realidade”, como afirma Maya Deren em seus escritos, mas que também implicam um uso técnico particular das máquinas de captar e cortar, que podem variar imensamente de caso a caso, segundo concepções particulares. Pensando assim, a ideia aparentemente absoluta de um Cinema com c maiúsculo desponta sempre sob a forma de uma gestão, sempre oscilando entre uma ética e uma política da imagem. Não que uma outra ética não seja acessível – há quem ame, que consegue amar, Ford e Sueli Maxakali, Mizoguchi e Ana Pi, como eu mesmo. Ao mesmo tempo, porém, para o bem e para o mal, as variações não hegemônicas causam nítido desconforto nos circuitos sedimentados, na crítica, cinefilia, meio acadêmico e festivais: excesso de condescendência ou incompreensão cercam o cinema realizado por indivíduos pertencentes aos povos originários ou por grupos ou indivíduos historicamente alijados do processo estético, econômico e político dos cinemas hegemônicos.


03.

Por outro lado, parece que estamos justamente situados num plano histórico em que a imagem robotizada do cinema comercial, da televisão e das plataformas readquire e amplia seus privilégios. No Brasil, a “retomada da retomada” situa novamente em nosso horizonte a lógica industrial do “cinema é pra quem pode”. Se entre 2003 e 2015 observávamos o movimento das placas tectônicas do privilégio de classe e de raça no cinema brasileiro, hoje o movimento é reduzido, seja por asfixia, seja por apropriação. A escassez de recursos e editais específicos para outros cinemas marca o período pós-golpe e avança sobre o período de reconstrução democrática, reconstituindo a força da presença de uma elite cinematográfica em detrimento das transformações que ocorreram no período do “cinema fome zero” (termo criado por Miguel Jost). O estreitamento da viabilidade acompanha de perto o oportunismo de classe e, de forma muitas vezes imperceptível, a redução da imaginação. Desde o golpe, alguns filmes sinalizam o sintoma de um retrocesso. A armadilha do “cinema negro” enquanto representação uniforme constitui apenas uma parte de um diagrama cuja perversidade se mede tanto pelo número de views, quanto pela manutenção dos protocolos comerciais e institucionais por “diversity”. Sinalizar “eu me importo” – chantagem emocional – como forma de contratação. A maioria dos curadores e financiadores, dos festivais e distribuidoras, já sacaram a tendência que pode favorecer os signos da agenda racial, sem, contudo, contrair grandes compromissos: a culpa branca premiada, a experimentação negra sufocada. Mantém-se o apelo à sensibilidade racial através de uma imaginação limitada pela estreiteza da forma. Estilo, isto é, técnica e imaginação, como dado necessariamente secundário. O que se conta em uma proliferação descontrolada do cinema da escassez imaginativa são as “nossas histórias”, a privatização da imaginação. Entendo os esforços políticos e econômicos protagonizados por players negras e negros em torno da conexão entre temas identitários e a profissionalização no cinema. Porém, se essas negociações implicarem a ausência de mudança estrutural e redução drástica da experimentação estética – portadora de outras possibilidades da imagem – temos aí um problema.


04.

As estratégias são cada vez mais evidentes e sinalizam a manutenção da plantation simbólica de que nos fala Juliano Gomes. A monocultura aponta para um conjunto de conciliações forçadas que cabem perfeitamente na lógica das plataformas. Como assinala o recente artigo de Will Tavlin sobre a ascensão da Netflix e seu cinema de plataforma: “ela não apenas sobrevive quando ninguém está assistindo: é justamente aí que ela prospera”. Então é possível repetir as mesmas histórias e os mesmos modos de contá-la ad infinitum. Algumas tendências evidentes: a expiação pública como autoetnografia voluntária ou involuntária; o registro e “resgate” da “cultura popular” como memória de classe; as boas intenções do inferno como o conjunto de esforços coletivos que confluem para consolidar o signo inequívoco de uma atitude atravessada pela correção moral e conformidade com agendas corporativas. Esses signos servirão de salvo conduto para transitar, com mãos grosseiras, por temas e personagens relacionados com as questões libertárias no Brasil. A captura, contudo, é mais do que um direito, mas uma profissão de fé: a elite expia em praça pública, logo a elite é purificada. O peso do passado é apaziguado pela confissão dos aprendizados. 


05. 

...cachê é poder. O contratado legitima o contratante. O contratante remunera o contratado. Pior do que ser explorado pelo capitalismo: justamente não sê-lo. Cinema como tronco e chicote: quem está lá? O senhor ou o escravo?


06.

A culpa branca encena o drama indígena, pacifica a raiva negra, mas o signo é o de uma expiação pública imediatamente reificada para fins de adoração e comercialização. Há uma ambiguidade insuportável na imagem da expiação e do aprendizado das elites que, involuntariamente, nos revela a confiança elevada em toda sua estreiteza. Em algum momento teremos que falar abertamente sobre o abismo estético e intelectual que separa as imagens das elites cinematográficas e as imagens dos novos cinemas. Não será uma conversa confortável. O cinema da Retomada e o da "retomada da retomada" não possui densidade, camadas, exterioridade. O cinema da elite carioca e paulistana é vazio porque, por mais que se esforcem, suas visões de mundo são inadvertidamente despovoadas – e por isso adequadas aos grandes meios de comunicação, às premiações, a Hollywood e todo o sistema do cinema hegemônico. O mesmo não se pode dizer das múltiplas expressões do cinema produzido pelos Xavantes, Kaiowás, Kuikuros, Maxakalis, do grande cinema de Recife e de Contagem, do cinema operário de Lincoln Péricles e Adirley Queirós, do cinema do Recôncavo de Glenda Nicácio e Ary Rosa, do cinema de gira de Yuri Costa, o cinema de Getúlio Ribeiro, Yasmin Thainá, Grace Passô, Higor Gomes, Amanda Devulsky, Natália Reis, Déo Cardoso, Vinícius Romero, dos cariocas da MBVideo, o cinema do Nordeste, do Norte e do Centro-Oeste, entre tantas outras possibilidades decorrentes de um período de maior distribuição de renda que propiciou a reinvenção do cinema brasileiro, que criou uma nova ecologia de imagens, outros modos de ver, planificar, montar, sonorizar. Estamos falando de uma pletora de novos cinemas que demonstram um olhar mais complexo e esteticamente aventureiro (cinema é aventura) do que o cinema da elite cultivada, viajada, endinheirada. Matutar essa contradição.


07.

O cinema de Sueli Maxakali, por exemplo, usa o plano estático com uma densidade especificamente atrelada à temporalidade Maxakali, justapondo registros do tempo e da imaginação, produzindo algo entre a dilatação e a concentração do tempo como meio para exprimir uma epifania sensorial. Já o cinema coletivo dos Guarani-Kaiowá opera a câmera subjetiva e a voz over de forma não a fazer uma explicar a outra, mas entranhá-las, implicá-las entre si de tal forma que, como em alguns poucos filmes de Apichatpong Weerasethakul (particularmente Cemitério do Esplendor, na cena em que os personagens passeiam por um palácio imaginário), o que não é visto participa ativamente do que é filmado e mostrado – convém mencionar o trabalho de André Brasil e Bernard Belisário acerca dos usos criativos do antecampo e do extracampo em alguns filmes dos “cinemas originários”. Entendo que os dois casos são marcados por uma lógica de apropriação reversa, que transfigura a gramática e a sintaxe cinematográfica ocidental e cria novas formas de ver e sentir: outra sensibilidade. A inconstância da alma selvagem também modula conforme os termos de uma alegre traição: vingança sob a forma de um sequestro provisório da técnica e da linguagem. 


08. 

Se existem ecos e ressonâncias de uma concepção específica do Modernismo que não cessa de se imiscuir no imaginário do tempo brasileiro, observa-se que, a despeito do massacre, o Brasil permanece atravessado pela presença daqueles cuja história a história não conta. A história geralmente é definida como um texto que implica a construção de um método de leitura e interpretação. Uma epistemologia da história revela questões candentes, questões embrazadas que, como na antropologia contemporânea, parecem acorrer a problemas filosóficos como identidade, alteridade e ontologia. Nesse contexto, geralmente se problematiza o método; mas o método nunca é neutro, porque sua maquinaria conceitual obedece a outras concepções que não remetem necessariamente a questões metodológicas: o que os filmes dos povos Maxakali e Guarani-Kaiowá nos mostram em toda sua complexidade são imagens variadas do tempo e imagens do movimento, imagens do massacre e da resistência de pontos de vistas singulares. Se a “transfiguração étnica” preconizada por Darcy Ribeiro prevê a possibilidade de uma história transformacional, mesmo que a contragosto do intérprete, e essa história é marcada por insubmissão e violência, não parece de todo inadequado observar essa outra vanguarda do olhar, essa visão sintética de um mundo que não se explica, pois nos diz respeito apenas enquanto se coloca o termo cinema. O cinema, novamente, opera como mediador: Darcy e os missionários eram mediadores, mas que, seja para integrá-los, seja para denunciar sua integração forçada, recorriam ao único ponto de vista que lhes era possível acessar: o do protagonismo histórico. Quando o cinema dos povos originários começa a ser produzido, vislumbramos a transfiguração de uma autoridade: a autoridade discursiva eurocêntrica.


09.

O Brasil respira camadas de contradição no que tange à forma de representação de seus conflitos de classe e a pluralidade de seus povos, talhados à base dos desmandos de uma elite antipática, contrastante com caldeamentos raciais e culturais seculares. O cinema é território privilegiado para acessarmos os vaivéns e continuidades dessas dinâmicas. A gradação intermediária entre o blockbuster e o filme caseiro foi apagada e esses dois modos de se fazer e pensar cinema não morrerão abraçados. Não há sequer um sistema trabalhista concebido e estruturado especificamente para estruturar e conferir dignidade à mão de obra da cultura no brasil, e isso impacta todos os demais estágios e desdobramentos dos processos culturais. As imagens do povo produzidas pela elite política, econômica e cinematográfica são premiadas, deificadas, celebradas pelo aparato cultural, midiático e acadêmico, ao passo que as imagens do povo produzidas a partir de si mesmo foram paulatinamente política e economicamente sufocadas, inviabilizadas, contratadas ou relegadas aos rincões do "experimental", do "acadêmico", de algo que pode ser tudo, menos propriamente "popular". Isso porque a elite olha para o povo de forma simplória e aqui se encontra a maior das perversidades: o povo e, particularmente, o mundo das redes sociais se reconhece mais no retrato de si mesmo produzido pela elite do que pela miríade de imagens às quais me referi acima. Lutar, portanto, por um cinema amazônico, à altura de sua diversidade autêntica, contra toda monocultura política, simbólica, estética...

10

Se o cinema contra-hegemônico saberá se desvencilhar das armadilhas que o cercam, é um assunto hoje que deve circunscrever nossas mais caras preocupações – e que de certa maneira Tiradentes carrega como marca inexpugnável de sua singularidade. Porém, há uma pergunta urgente: haverá meios materiais para a propagação da imaginação negra em "expansão infinita", ou, em um futuro muito próximo, seremos convertidos em meros peões, cartas marcadas no tabuleiro da geopolítica moral imposta pelas plataformas de streaming, players e financiadores?