domingo, 24 de agosto de 2014

Sobre "Her", de Spike Jonze



















Em meados dos anos 90, quando intensifica-se a convergência entre equipamentos digitais e analógicos, cineastas como Spike Jonze e Michel Gondry obtiveram resultados visualmente expressivos, justificando para alguns o prenúncio de uma nova era do audiovisual. Se encararmos especificamente o trabalho de Jonze do ponto de vista da valorização do "truque" visual", este movimento indicou a retomada de uma dimensão artesanal da produção audiovisual, em parentesco com a "mágica" de Mélies e o virtuosismo de Jan Svankmajer, turbinada mais tarde pelo advento dos computadores super velozes.

Porém, cada lançamento tornava evidente o fato de que, face às tendências críticas manifestadas pelos filmes, faltava-lhes a densidade na abordagem de temas contemporâneos como a solidão e a incomunicabilidade. A maioria dos filmes falhavam no modo como os autores buscaram equilibrar a tendência à ironia ultrareferencial dos memes (Quero ser John Malkovich) e a criatividade delirante (e, por vezes, gratuita) à moda dos filmes de Jodorowski, como se pode observar em Adaptação.  

Perceptível nos videoclipes, essas características persistem em seus filmes. Em Her não parece ser diferente. É notável o modo como o autor conduz a interação do personagem "humano" com o "sistema operacional" (à esta altura, ambos cautelosamente entre aspas). A forma como ele representa a gradual construção de uma consciência artificial, que se constitui pelo acúmulo de informações e experiências. A abordagem arrojada dos regimes de consciência, indicando rimbaudianamente que "o eu é sempre um outro".

Porém, quando se trata de produzir uma meditação sobre o amor, a morte e a tecnologia, temas com os quais costuma trabalhar, Jonze investe em uma abordagem pueril da existência e das relações interpessoais. Sob seu ponto de vista, a humanidade se vê ameaçada por uma sombra constante, sucumbindo em virtude de uma comunicação frágil, débil, vulnerável. Segundo uma leitura possível do filme de Jonze, a sombra é produzida pela solidão, a potência da "incomunicabilidade" esmaga os urbanoides; a presença terrivelmente próxima do "outro" constrange a liberdade individual; a vacuidade afetiva dos bate-papos implica na companhia regular dos gadgets eletrônicos, seres frios e silenciosos.

Mais eis que surge o sistema operacional que conversa, que aprende, que troca e, assim, participa da cultura. Em uma palestra recente, o cosmólogo Luiz Alberto Oliveira afirma que um dos acontecimentos mais intrigantes e decisivos dos próximos séculos será o encontro entre o registro do humano ao qual estamos habituados e o homem biodigitalizado (ou algum dispositivo artificial dotado de inteligência, cada vez mais desenvolvidos e capacitados). Ao invés de explorar o potencial futuro desta interação, Jonze preferiu seguir o caminho do drama e da expiação dos humanos pelo excesso de conhecimento. Her é uma ode não ao futuro (im)possível, mas aos humanos deserdados por uma hiperinteligência que, no entanto, fora criada e desenvolvida por eles mesmos.  

Por esta perspectiva ambígua, o capital possibilitando e constrangendo o "truque", torna-se inevitável sublinhar a reificação da postura resignada do personagem principal, que por falta de uma experiência maior, mantém-se encastelado em sua vida de pequenas satisfações. A experiência maior, entretanto, vem a ser representada por um encontro amoroso. Mas não o amor que move os grandes feitos, o amor captado pelos rostos de Dreyer, pelas cores saturadas de "Elogio do Amor"  de Godard. Que amor é esse, se não o bom e velho "amor romântico"? A isonomia arrojada entre a consciência artificial e a consciência biopsicológica destoa do modo como a afetividade é reduzida a uma teleologia do amor familial, heterossexual, papai-e-mamãe.

No conflito entre o capital que constrói e o que destrói coisas belas, o humor de Jonze não deixa de fazer graça. Ao optar pela via da melancolia, desprezando o potencial histriônico do ridículo (como em Cronenberg, Carax e Korine), Her escorrega no moralismo bittersweet, ao invés de surfar sobre a complexa experiência contemporânea. Determina que existem culpados: é o mundo, a tecnologia e, em última instância, o próprio homem quem produz a sombra que o ameaça. Não deixa de ter alguma razão, mas como em toda discussão conjugal, "às vezes é melhor perder, do que ganhar, você vai ver…"


Bernardo Oliveira

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

reverência e transgressão

Chinese Cookie Poets























I
A reconfiguração geopolítica da música brasileira não ocorreria sem conflitos e ampla manifestação de preconceito, ausência de curiosidade e defesa injustificável de privilégios. 

De 30 anos pra cá, dois movimentos aparentemente contrários e complementares foram determinantes: de um lado, ampliação, ainda que conflituosa, da informação, da renda, dos direitos etc.. De outro, fragmentação econômica, cultural e social que reconfigura os termos através dos quais se afirmaram os grandes jet sets da cultura no país.

Inevitável os questionamentos acerca da qualidade deste porvir: será "positivo"? Estará à altura da gloriosa história de nossa música popular? O equívoco não reside no questionamento em si, mas nos critérios através dos quais estes questionamentos são encaminhados.



Crê-se na chamada "qualidade" musical como valor absoluto, e não como valor relativo. Crê-se na canção como a única expressão sonora possível no âmbito da música popular. Exclui-se a dimensão propriamente sonora da "música". Crê-se ainda na grande unidade nacional ("música brasileira"), que apesar de se referir diretamente ao país como um todo, toma como parâmetro os autores consagrados pela indústria, pela produção e pelo jornalismo culturais do sudeste.  

A única hierarquia possível é determinada pela invenção, e a invenção não é privilégio de um grupo social ou econômico.


Baby Hitler - Tivoli Park from Quintavant / QTV on Vimeo.

II
Interpretar é disputar. E essa disputa não cessa, não se conclui, não chega a um fim bem acabado e perene. João Gilberto, Radamés e Pixinguinha podem ser reavaliados e repensados à luz dos estudos do som (sound studies), da filosofia, da técnica e da tecnologia, etc, e não somente através do primado culturalista, de viés histórico. De um viés histórico sufocante, diga-se de passagem.

Quando esteve no Brasil, David Toop classificou João Gilberto como "noise music". Concorde-se ou não, trata-se de outra perspectiva de interpretação e avaliação. (v. aqui)



Por isso esse papo redutor e totalizante de MPB ou de "MPB em crise" não cola mais. E explica em parte a reação negativa à entrevista da cantora Mônica Salmaso. Ainda somos um "país sem memória"?  Talvez. Mas no âmbito do pensamento cultural, somos constrangidos pela memória.

Isto porque uma intuição mais ou menos geral se impõe a cada dia: a de que a profusão de artistas da era do disco e das gravações no Brasil (de 1914 até os dias de hoje) configuram um território de expressões sonoras e musicais extremamente complexo e irredutível a qualquer interpretação de cunho geral — a "MPB", o "regional"...



Que artistas como Catulo, Radamés, Mautner, Zé Menezes, Edison Machado, Pixinguinha, Pedro Santos, Vzyadoq Moe, Ratos de Porão, Akira S, Reginaldo Rossi, Mestre Vieira, Nelson Freire, e outros nem sempre situados no campo heróico da MPB, são parte desse imenso território que se desterritorializa e se atualiza a cada experiência individual e coletiva.

Um mar de diferenca e singularidade, constrangido por forças "nacionais", por forças geopolíticas, etno-linguísticas, pelas forças da "lógica" (Khan Khanne, a carta que Godard enviou a Cannes este ano, sugere as relações entre o poder despótico e a lógica…).


Letter in motion by Jean-Luc GODARD to Gilles JACOB and Thierry FREMAUX (Legenda pt-br) from Khan Khanne on Vimeo.

III
Já não falo do preconceito dos artistas, mas dos pensadores. A historiografia brasileira precisa se livrar da... história, ou de um certo tipo de história de influência franco-germânica que constrange qualquer possibilidade de se pensar a fragmentação, a (des)identidade, a multiplicidade. É a  opinião de classe, de uma classe universitária em mutação, que é sedimentada através do ensino e da pesquisa.

Quando se trata de pensar a música produzida em território nacional ainda estamos presos às categorizações gerais, de influência weberiana, que fornecem o modelo conceitual das análises musicais. Pois apesar de falarem português, esses artistas abordam assuntos, personagens e paisagens completamente distintos, em sotaques  diferentes.

"O que é não histórico se parece com uma atmosfera ambiente, onde só a vida pode engendrar-se, para desaparecer de novo com o aniquilamento dessa atmosfera..." (Nietzsche, Segunda Intempestiva).



Um célebre historiador-jornalista costuma lotar suas palestras sobre música popular e carnaval. Presenciei um desses encontros, no qual o autor afirmou, sob aplausos, que "o carnaval é rito de inversão" de papéis, valores, classes sociais. Ora, uma apreciação mais ou menos atenta revelará que há muito o carnaval perdeu sua força enquanto espaço de experiência da "inversão" (ou da transgressão). Uma interpretação corriqueira e defasada, mas que permanece válida aos olhos da maioria. 

Por uma tendência canônica ao pensamento histórico e às categorias gerais, insistimos em um tipo de interpretação que embota as perspectivas de futuro. A tendência que Nietzsche chama de "história antiquária", através da qual o vivente adota uma postura de preservação e veneração diante do passado. A atmosfera muda sempre que mudamos nossas práticas e formas de vida, mas o pensamento, como se sabe, leva um tempo para digerir aquilo que a multidão inventa.



IV
A música brasileira tem sido feita  nos últimos 30 anos contra sua história oficial, que é uma história marcada pelo que Tom Zé chama "Complexo de harmonia". Pelo menos essa história identificada pela sigla MPB. Parece que os artistas estão mais preocupados hoje em substituir a linearidade progressiva do discurso harmônico ligado ao sistema tonal, por uma qualidade imersiva composta por matérias, intensidades e velocidades as mais variadas.

É digno de nota o fato de que a música mais interessante feita hoje no Brasil se faça não somente "contra" a harmonia, mas também num processo de esgarçamento e reconfiguração harmônica, seja atraves do ruído, dos sons eletrônicos, ou da decomposição por improviso ou formas alternativas de tocar os instrumentos ou conceber arranjos.



O dedilhado da guitarrada paraense, que mantém parentesco com a rumba congolesa e influencia o trabalho de Rodrigo Caçapa, do guitarrista Rafa Barreto, dos arranjos elaborados para o Encarnado de Juçara Marçal. As modulações da guitarrada pelo brega, mas também sua reinterpretacão eletrônica pelos "bregueiros" de Recife. A música eletrônica por todo o país, seja o funk carioca (RD da Nova Holanda) e paulista (MC Bin Laden), como o tecnobrega e as ramificações que ainda não chegaram aqui no "sul maravilha". O improviso livre, prática hoje disseminada, antes levada a cabo por poucos pioneiros como Antonio Panda Gianfratti. O panorama apresentado pela série de coletâneas Hy Brazil, dirigida pelo Chico Dub. A música multidirecional, multilinear de SP, a música dos artistas que tocam no Quintavant, que apesar de se apresentarem na Audio Rebel, em Botafogo, em são oriundos em sua maioria da zona norte do Rio. A música do Youtube, as bandas de rua, a música das ocupações, das feiras, das áreas rurais…



Comparem a operação que o Breno Ruiz faz sobre a "valsa jobiniana" e dos Caymmi — os filhos — e o que o Kiko Dinucci tem feito com os afrosambas e a música de Itamar Assumpção. Ou Siba com as formas musicas da Zona da Mata. A linha tênue entre a reverência e a transgressão.

De um ponto de vista das categorias gerais, reverência e transgressão são perceptíveis por toda a história da música no Brasil. Mas somente do ponto de vista das categorias gerais. Quando se aplica o microscópio sobre os exemplos, percebe-se que "reverência" e "transgressão" podem indicar inclusive nuances imprevisíveis, como transgressão reverente protagonizada pela Bossa Nova e pelo Tropicalismo, ou uma reverência transgressora, como se percebe em Paulinho da Viola e no samba do Cacique de Ramos.

(continua)

Bernardo Oliveira

quinta-feira, 26 de junho de 2014

O Legado do Futuro: Entrevista com Kelan Phil Cohran

















A vida de Kelan Philip Cohran faz parte daquele rol de biografias em que altos e baixos se alternam de forma intensa e inexplicável. O artista, que se apresenta no sábado e domingo no SESC Belenzinho (28 e 29 de junho), representa uma espécie de elo perdido entre as manifestações mais radicais do jazz dos anos 60 e a luta política pelos direitos civis dos negros norte-americanos.

Nascido há 87 anos em Oxford, no Mississippi, Coran acumulou as funções de trumpetista, harpista, compositor, arranjador, inventor, estudioso, e “revolucionário” convicto. Na década de 50, quando morava em Kansas City, emprestou seu trumpete ao hard bop de Jay McShann e Big Mama Thornton. Mais tarde, integrou a Sun Ra Arkestra, do final da década de 50 até meados da década de 60, sendo responsável por muitas das concepções que marcariam o trabalho do pianista e band leader.

Apesar de ter lançado apenas quatro discos com a Artistic Heritage Ensemble — On the Beach, Spanish Suite, Armageddon e The Malcolm X Memorial, todos nos anos 60 — a importância de seu trabalho é hoje reconhecida pelos músicos contemporâneos. A discografia escassa contrasta com suas proezas. Cohran não é só um dos pontas de lança do que viria a ser chamado free jazz (ou fire music), ao misturar as formas do jazz contemporâneo à soul music, aos ritmos africanos e caribenhos e à improvisação livre. Cohran também é astrônomo reconhecido, estudioso que persegue o ideal renascentista do "homem universal", sendo também curioso pela matemática, a biologia e a filosofia.

No outono de 1967, deu inícios aos trabalhos do Affro-Arts Theatre, palco de uma série de manifestações e iniciativas identificadas com a luta pelos direitos civis dos negros norte-americanos. Ao abrigar uma apresentação do ativista Stokely Carmichael (1941–1998) Cohran foi obrigado a fechar o local, por ordem do prefeito Richard J. Daley, que interditou suas apresentações em Chicago durante mais de vinte anos.

Fundador da Association for the Advancement of Creative Musicians (AACM), fundamental para o desenvolvimento da rica cena de jazz de Chicago, do qual fazem parte Roscoe Mitchell, Rob Mazurek e Matana Roberts, Cohran criou diversos instrumentos musicais, entre os quais o Frankiphone, ou “Harpa Espacial”. Além de ser o pai de oito dos nove membros do Hypnotic Brass Ensemble. Seu último disco, African Skies, foi gravado em 1993, por ocasião da morte de Sun Ra, mas foi lançado somente em 2010. A entrevista abaixo foi realizada entre 15 e 19 de junho de 2014, por email.(Bernardo Oliveira)

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O senhor esteve por trás dos movimentos avant-garde do jazz norte-americano dos anos 60 e 70. Ao mesmo tempo, sua música sempre teve um fundo político inegável, ao combater a desigualdade racial e social. Como o senhor avalia a relação entre música e política nos dias de hoje, especialmente na América de Obama?

Bem, eles estão apenas se utilizando de velhos ídolos do jazz. Defendem que eles tenham homenagens na Casa Branca. Mas o atual governo não é muito perspicaz no que diz respeito à música revolucionária. Eles não conhecem artistas revolucionários como eu, Oscar Brown Jr., Pharoah Sanders. Haviam muitos artistas revolucionários reconhecidos durante as décadas de sessenta e setenta que usaram sua música para falar em nome das necessidades do povo, o que a indústria do disco não permitia. Na verdade, houve um grande movimento para barrar essa música, cerceá-la. E eu sofri tudo isso porque fui desconhecido por quarenta e quatro anos, enquanto todos os outros artistas faziam seus shows pelos circuitos de jazz. Prefeito Daley [Richard J. Daley, prefeito de Chicago entre 1955 e 1976] interditou minha presença em Chicago por cerca de 22 anos [por abrigar uma apresentação do ativista negro Stokely Carmichael]. 

A música é a única voz que as massas escutam. Se você não expressa ideias revolucionárias em sua música, as pessoas não desenvolverão uma consciência revolucionária. E essa consciência é necessária porque viemos da escravidão. Fomos seqüestrados de nossas famílias, assassinados, estuprados, e ainda não nos recuperamos. Nós ainda sofreremos os danos da escravidão por muitas gerações. Ela está incutida em toda nossa vida cotidiana. Somos vítimas da escravidão. Ainda não vejo ninguém que esteja apto a superar isso.

"A música é a única voz que as massas escutam. Se você não expressa ideias revolucionárias em sua música, as pessoas não desenvolverão uma consciência revolucionária. E essa consciência é necessária porque viemos da escravidão."

Sun Ra Arkestra, década de 50.



























Fale-me um pouco sobre sua breve experiência com Sun Ra. Quais as características principais da troca musical que ocorreu entre o senhor, Sun Ra e o grupo?

Quando saí do exército, eu estudava musicologia desde 1953. Até 1955, entre idas e vindas, saía de St. Louis para visitar Chicago. Quando pude ficar por mais um tempo, voltei a estudar musicologia com seriedade. Estudei música irlandesa e escocesa, música grega, lituana. Entre 55 e 57, participei de algumas excursões pesquisando música popular, o que me deu uma visão da música praticada ao redor do mundo. Cunhei o termo “música africana”, porque antes chamavam-lhe “música tribal”, “música shona”, identificando-a com os diferentes grupos étnicos. Mas concebo a música africana como a raiz de toda a música. E foi com esse espírito que participei dos discos com Sun Ra.

Sun Ra estava lidando com o cosmos. Ele tentava ensinar às pessoas como envelhecer de forma criativa, para não se deixar levar por seus problemas. A maioria das pessoas são doutrinadas a tal ponto que não podem resolver seus problemas. Sun Ra resolveu todos os meus problemas. Aprendi com ele que tudo o que você deve fazer é trabalhar. Se você trabalha duro o suficiente, você alcançará seus objetivos. Foi essa a atitude que desenvolvi a partir do convívio com Sun Ra.

Por outro lado, a AACM [Advancement of Creative Musicians] contava com uma porção de músicos criativos, mas que tentavam imitar Sun Ra. Seus esforços não passavam de paródias do sistema de Sun Ra. Mas eu já estava ligado a folk music, e isso me estimulou a criar minha própria música, ao invés de copiá-lo. Criei meu próprio sistema modal, com base nas relações do som e da matemática com o cosmos.

Eu já conhecia as cores do arco-íris e os chakras, todos os sete dias da semana, os sete corpos primários nos céus. Tudo é baseado em sete. Essa ideia me deu uma base para o modo como trabalho, pois um monte de minhas canções estão em compasso de sete tempos, que considero mais agradável. 

O slogan do AACM era: Great Black Music: Ancient to the Future [“Grande Música Negra: Ancestrais para o futuro”]. Olhando hoje a cena jazz/improviso norte-americana, especialmente a cena de Chicago, o senhor percebe a influência dos paradigmas criados pela AACM nas manifestações musicais contemporâneas?

Não vejo muito da parte política sendo cultivada no futuro, mas acho que estão copiando a parte musical que apresentei em meus discos. Ouço agora muitos músicos tocando em sistema modal, o mesmo que diziam que não era a música em 1965. Mas quando abri o AACM, me apresentei com um programa inteiramente modal usando meu frankiephone, harpa e buscando fazer uma música consciente politicamente. Na cerimônia de abertura fiz uma canção sobre os motins pelos direitos civis, acho que alguma das peças do álbum sobre Malcolm X [The Malcolm X Memorial (A Tribute In Music), gravado em 1968]. Todas as minhas setecentas composições se referem à condição do nosso povo, hoje e no passado.  

A fundação da Artistic Heritage Ensemble não se restringiu ao diálogo com o jazz, superando as fronteiras entre gêneros e ritmos antes mesmo do “fusion” de Miles Davis. O senhor contou com membros da Motown, do Earth Wind & Fire, etc, e misturou ritmos africanos, batidas funk, naipes de metais. Qual era a intenção central do projeto? E como o senhor o vê hoje em dia?

Tive uma iluminação em 1961, a respeito de quem eu era, de quem eu sou, e a partir daí busquei meu destino. Tento viver isso da melhor maneira possível, o que me trouxe aqui, aos 87 anos. Todos se foram, então eu tenho que pensar que alguém me pegou pelas mãos e me trouxe até aqui. Eu vivo no presente. E espero que eu e minha geração possamos deixar um legado de esclarecimento para as gerações futuras. Porque o único verdadeiro problema para elas será a falta de conhecimento. Elas não saberão onde obter o conhecimento adequado para resolver seus problemas. Então, parte do meu legado é servir o conhecimento na mesa da música. Ele não estava lá antes. Nós o utilizamos para escrever canções sobre todas as coisas. Agora as pessoas escrevem músicas sobre seu descontentamento.

"... os escravos foram trazidos aqui para mudar o mundo, mesmo que nem eles, nem o mundo saibam. (...) viemos aqui, para dar ao mundo uma nova forma de viver."


Recentemente, o baterista do The Roots, Questlove, escreveu um polêmico artigo, afirmando que “Hip-hop has taken over black music.” Segundo ele não existem hoje artistas negros nas paradas americanas que não sejam ligados ao hip hop, e o gênero se torna hoje uma espécie de representante da música negra norte-americana. Como o senhor avalia essa situação?

Bem, como a maioria dos jovens, é apenas falta de clareza. Eles pensam que sabem mais, mas à medida que envelhecem, eles descobrem o quanto eles não sabem. Esse é o padrão dos jovens em todo o mundo. Mas, quando você se dedica diariamente, com toda energia que você tem, você vai estar sempre no lugar certo. Não importa onde, pois tudo que você tem que fazer para cumprir o seu destino é trabalhar duro.

O rap nunca vingou aqui em Chicago. Porém, mesmo tendo sido rejeitados pela audiência, o rádio apostou na comercialização dele como uma solução para seus negócios. A salvação do business de gravação de discos. E por isso eu digo que hoje, rap não é música, é poesia. E eles são apenas jovens que jogam fora o seu descontentamento em uma forma rítmica.

Há duas doutrinas que me impressionam um pouco. Um delas é a de Confúcio: “O sábio procura por música para fortalecer as fraquezas de sua alma. E o tolo a utiliza para sufocar seus medos.” Isso é uma das coisas que eu ensino às pessoas. Outra é o Cohung de Ne Ping, que viveu em 325 DC, e ele disse: “Não é difícil desfrutar a plenitude da vida, a dificuldade está em descobrir o processo divino. Não é difícil descobrir o processo divino, a dificuldade reside em sua realização. Não é difícil de realizar o processo divino, a dificuldade reside em persistir até o fim.” Acho que estão em perfeita harmonia com a minha vida, então eu as adotei como um código.

A última coisa sobre a cultura: qualquer definição de cultura ajudaria a iluminar as pessoas, pois eles não entendem sua função. E assim, eles abusam da cultura, e, assim, de si mesmos. 

Sua trajetória demonstra que o senhor buscou uma formação humanista, ligada a certa uma percepção do Renascimento. O senhor se tornou um educador, um estudioso da história, das ciências, da matemática, das artes em geral. O ideal humanista se perdeu em um mundo super-especializado e cientificizado?

Eu não acho que os homens que estão no poder saibam sequer o que é humanismo. Acredito que são pagãos, que ganharam seus cargos usando pólvora, não o conhecimento. É por isso que eu procuro criar e ensinar alternativas para as formas de vida que estão ai. E a minha crença é a de que os escravos foram trazidos aqui para mudar o mundo. Mesmo que nem eles, nem o mundo saibam. Mas é por isso que viemos aqui, para dar ao mundo uma nova forma de viver.

Como educador, como o senhor avalia as relações entre educação e espiritualidade num mundo onde boa parte das guerras são religiosas?

Bem, o problema é que eles estão matando uns aos outros devido a uma disputa para decidir quem é Deus. E as religiões não foram capazes de oferecer uma maneira de sair desta confusão. Não temos espiritualidade. Como músico, é preciso estimular as pessoas através de seu espírito, de modo que, se o músico não tem nenhum espírito, nada vai mudar. Mas nós e os atletas somos os únicos que expressam a nossa espiritualidade ao máximo, porque nós temos o poder de esclarecer o nosso público.

O senhor foi responsável pela criação de instrumentos, como o Frankiphone (kalimba eletrificada), Violin Uke, entre outros. Fale-me um pouco sobre a criacão de instrumentos. Continua exercendo essa prática?

Sim, eu gostaria de ter tempo para construir uma frankiephone melhor, mas estou tão ocupado... Gostaria de criar alguns instrumentos melhores. Ofereceram-me todo o tipo de dinheiro para fabricá-los, mas eu nunca fiz. Quando fui à China, me ofereceram uma chance. Os chineses ficaram impressionados quando toquei o Frankiephone. Toquei em Pequim na escola tradicional de música e em Shiyan. E os mestres das várias providências me deram instrumentos de presente, como um gesto de reconhecimento. Tenho um monte de instrumentos que dei a meus filhos como herança.

"... rap não é música, é poesia. E a poesia não é tão completa como a música. A música é a poesia divina."

Hypnotic Brass Ensemble























Oito de seus filhos formaram o Hypnotic Brass Ensemble, com o qual o senhor gravou um álbum. Um grupo que dá prazer de assistir ao vivo, graças a energia e à espontaneidade no palco. Como educador, como o senhor vê o horizonte futuro dos novos artistas ligados ao legado do jazz norte-americano?

Em primeiro lugar, eles precisam mudar o nome, porque foi inspirado pelo bairro de prostituição de Nova Orleans. E os escritores e jornalistas que passavam por lá em busca de prostituição, notaram a música e, é claro, a forma peculiar de tocar piano. Voltavam para suas casas e escreviam sobre esta música, identificando-a como a música das “casas de jazz”. Era assim que eles chamavam as casas de prostituição. Então, o nome tem uma conotação negativa que o acompanha até os dias de hoje. Não somos “músicos de jazz”. Sou um músico sério, não toco para ganhar dinheiro ou algo que o valha. Eu toco porque minha música é a expressão da vontade de meus ancestrais.

Por outro lado, essa fixação com o rap me parece fora de contexto. Porque rap não é música, é poesia. E a poesia não é tão completa como a música. A música é a poesia divina. Os antigos griots usavam a poesia e a música, e eles tiveram que aprender essas dinâmicas, o que levava cerca de quarenta anos até eles se tornarem qualificados para isso. O velho sistema se foi, de modo que estamos levando adiante o velho sistema a partir de novos termos. 

terça-feira, 10 de junho de 2014

Pensar na abundância. Ou “a poética da catástrofe é um pessimismo?”

Inserções em Circuitos Ideológicos: Projeto Coca-Cola, Cildo Meireles, 1970

Otimismo e pessimismo no Brasil contemporâneo compartilham premissas, seja uma percepção subjetiva que alça a si mesma à universalidade, uma projeção ilusória desta subjetividade sobre movimentos radicalmente heterogêneos, ou uma expectativa urgente de concretização. Por outro lado, otimismo e pessimismo operam uma forma de amarrar os fios desencapados que são nossas “faltas”, mazelas e fracassos. O pensamento brasileiro até então se orientou para conceber otimismo e pessimismo à contra luz de uma abundância importada que há muito já não esconde suas lacunas e imperfeições. Essas tendências pressupõem, de um lado, a manutenção do discurso identitário, capaz de regular essa monumentalidade chamada Brasil, fictícia, polissêmica; e, de outro, a tendência a colocar todos os problemas como uma questão de “política pública”, de solução final, de ruptura. Otimismo ou pessimismo, portanto, são afetos, tendências que, ao ditarem o tom do discurso, amarram os fiapos da realidade complexa em um todo coerente, fornecem ao seu portador um sentido em relação ao qual se pode produzir um diagnóstico geral contra “tudo o que está ai”.

“Nós precisamos criar um Brasil — e não ensiná-lo”, escreveu Décio Pignatari há quarenta anos. Antes de criar alguma coisa, otimismo e pessimismo operam inadvertidamente a manutenção daquilo que está em voga. Por este motivo, não se deve perder de vista o poder transfigurador, essencialmente criador, do delírio, o que torna a equação ainda mais complexa. A arte, a ciência e a filosofia deliram, assim como na religião, mas em sentidos diversos. Elas libertam do presente, libertam a criação da noção de produção e sublinham o fundamento da existência, o poder de criação, poder poiético. O delírio emancipa da ciranda de valores consolidados e permite entrever outras possibilidades.

Não há cultura a ser preservada, toda cultura é “complexo de cultura” (Nietzsche). Quais os sentidos em que se produzirá um pensamento rico de ideias e absolutamente delirante sobre o que acontece por essas bandas? Um encaminhamento para a questão das tensões da atualidade pode ser encontrado na pergunta: como evitar que o afeto pessimista ou otimista interdite interpretações potentes e efetivamente transformadoras?

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Pull (detalhe)Mary Mattingly, 2013
































Por outro lado, atentemos para uma característica da relação entre o tempo e o afeto. A medida da história e da experiência nos é fornecida pelos efeitos que ecoam do passado sobre nossos sentimentos, daquilo que é repassado de forma esquadrinhada e excessivamente refletida aos regimes de consciência, mas escoado através dos afetos de falta, melancolia e espera. Se há a possibilidade de se pensar, com Hume e Kant, o caráter transcendente da “natureza humana”, seu desdobrar é essencialmente metafísico pois considera o tempo polarizado, abstrato, do ser e do nada. Por outro lado, não consideram a “condição de possibilidade” do pensamento sobre o ser e o nada, que vem a ser as durações, tonalidades, e uma infinidade de frequências, “pluralidade de ritmos de duração” que rebatem na dinâmica transindividual da coletividade. No plano do ser e do tempo, o plano redobrado da interioridade, somente a melancolia (o medo, a seriedade!) e a esperança provocam o pensamento. O que pode o pensamento desvencilhado dos atributos melancólicos do ser e do tempo, e desdobrado pela noção de duração? A partir de uma leitura da distinção entre tempo e da duração no filósofo francês Henri Bergson, podemos criar uma simpatia renovada pela existência, mesmo diante das condições mais perigosas e nefastas.

“A duração bergsoniana não faz desaparecer nada… (…) Pensar a passagem do tempo, simpatizar com essa passagem, é justamente livrar-se daquilo que é, daquilo que nos prende aos seres e aos nadas. Correlativamente, é a razão pela qual buscaríamos em vão, em Bergson, uma definição do passado como aquilo que não é mais, ou do futuro como aquilo que ainda não é, embora, às vezes, ele se expresse assim. Ser e nada não permitem pensar adequadamente o tempo. Todo o problema vem de que o pensamento se apegou aos seres — e não aos movimentos dos seres. Não é esse o caso dos melancólicos que permanecem apegados ao passado ou ao futuro?” (David Lapoujade, Potências do Tempo, p. 24)

É preciso, portanto, que o pensamento se apegue não mais aos seres, mas ao movimento dos seres. Aquilo que o francês Gilbert Simondon chamou de “modo de existência” das coisas não as fixa em uma escala absoluta do tempo. O seres, as coisas, são dinâmicas e geradas a todo instante; sua gênese não é análoga à gênese judaico-cristã, a gêneses das coisas uma-vez-por-todas. “O índio assassinado”, “o negro discriminado”, “o povo explorado”, “o país subjugado” e outras imagens-dispositivo caras à crítica e à política contemporâneas, exprimem um apego incontornável à fixação histórica dos seres e dos gêneros, sem que se possa determinar nem sequer do que estamos falando. Este índio, esse negro, quem são? Seus respectivos modos de existência exprimem uma pluralidade afetiva mais ampla do que os termos jogados pela academia, pela ciência, pelos governos. Não que não haja racismo, exploração, miséria e desespero, mas se de fato não bastam "reformas" para alterar esse estado, muito menos no que diz respeito ao poder abstrato da linguagem. Assim, até mesmo as "evidências" catastróficas trazidas pela consolidação do antropoceno são também uma interpretação, não um fato. 

Mais uma vez é o delírio subjetivo, que habita a pluralidade de complexo de cultura, o alimento que nos reconecta com uma duração tensionada pela multiplicidade. Mas a multiplicidade não quer “voz”, não quer ser evocada e vocalizada. A multiplicidade é a própria voz, a força ontogenética, o clangor total do mundo que soa dentro de cada um e de todos nós, mas que é subssumida pelo discurso abstrato, pela subjetividade que reclama universalidade.

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Verme, Nuno Ramos, 2010






















A descentralização da produção e dos centros de legitimação da informação, mesmo que pequena em relação ao poderio material e espiritual das instituições e da grande indústria, pode trazer aberturas imprevisíveis para a criação e a experimentação, seja na ordem das obras de arte, seja nas formas de vida. E mesmo a política de consolidação de uma renda mínima para a população, também pode afiançar a criação dessas aberturas, exprimindo-se em todas as esferas da vida. Esses dois elementos de ordem material reduzem o impacto da desigualdade, ampliando o espaço para a diferença, mas, em contrapartida, gerando conflitos de ordem social, política, ambiental e, por que não, estética.

E, no entanto, muitos de nossos artistas e intelectuais, sobretudo aqueles consolidados no mercado, nos editais, nas vitrines e universidades, continuam a produzir um discurso que oscila estranhamente entre o pessimismo distante e a conciliação arbitrária, respectivamente as formas mais comuns do pessimismo e do otimismo contemporâneos.

Em relação ao pessimismo distante, o pensamento se reveste por uma verniz de seriedade melancólica que legitima a reflexão e se apresenta de forma irresistível ao nosso espírito bacharelesco. Entre a dúvida cartesiana e o spleen, o tom de manifesto de nossos escritos, de vontade de totalização, de enunciação imperativa reveste a grande maioria do pensamento contemporâneo. Como se ainda tivessemos de prestar contas com os dilemas nacionalistas dos anos 30, como se estivessemos fincados não na atualização dos conflitos, mas na manutenção das perspectivas de classe. O “estamos fodidos” constitui apenas mais um reflexo desta tendência, e vem somar-se à “crise da cultura”, a “hora da despedida”, “o fim da cultura”, a radicalidade vazia da militância “nômade”, o mito do “mundo natural”, arcaico, subjacente à antropologia simétrica e sua “arca de noé”, e outros diagnósticos recentes: carregados de um afeto apocalíptico, combinam restrições morais (as muitas formas da culpa e da piedade) com o sentimento multifário do “paraíso perdido” — ou o sentimento residual de que “algo se quebrou” (Caetano via Frederico Coelho). É o nosso velho e atualíssimo sebastianismo de cada dia, à espera de uma solução ou amargando a descrença de que ela, de fato, venha. “Somos os culpados pela nossa derrocada”, mas uma derrocada sem data nem hora para acabar, pois fundamente enterrada em hábitos e perspectivas. Um “estado”, não um estágio (Bergson via Paulo Emílio). Mesmo a comprovada e gradual conscientização de que o modelo sócio-político no qual estamos inseridos esgota pouco a pouco o meio ambiente e a própria política, o caminho a ser tomado seria necessariamente o do niilismo amargo ou o denuncismo desesperado? Dilacerar-se? A arrogância do conhecimento nada pode ou pode pouco contra... a arrogância do conhecimento.

Da conciliação arbitrária, a qual se pode atribuir alguns traços do que costumamos entender como “otimismo”, em parte responsável pela constituição de outras narrativas otimistas, como por exemplo “a geração pós-rancor”, a reificação do presente, subjacente, por exemplo, ao neopentecostalismo, encontra uma certa leitura do agenciamento em Deleuze, positivando os conflitos a qualquer custo — quando, me parece, Deleuze chama a atenção mais para a capacidade de resistência e criação, do que para a conciliação forçada. Estão identificados com estas prerrogativas o tropicalismo crítico (ou pós-tropicalismo), os bioativismos (não só o ativismo ambiental, mas as militâncias por outras formas de vida), as “dobras” da internet, os conflitos e novas individuações geradas pela distribuição de renda e de rede, de grana e de informação. Me encontro em uma posição mais próxima da conciliação arbitrária do que do pessimismo distante. Mas também de toda uma aparelhagem estatal que visa o bem-estar da maioria, condenável por sua comprovada ineficácia, mas que, parece, por aqui, ainda precisa se tornar consistente para ser adequadamente avaliada. Ao afirmar isso, pretendo demarcar uma diferenciação entre o otimismo que deposita esperanças no “vai dar certo”, num acabamento, na realização de uma “nova civilização”, um otimismo teleológico; e um outro otimismo relativo ao “vamos fazer a qualquer custo”, “vamos amar o estranho”, o estrangeiro, vamos cultivar o estrangeiro que há em nós. O primeiro otimismo se resume a uma crença, o segundo afirma, em uma perspectiva possível, a capacidade de ação, mudança e disposição para a mestiçagem radical.

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Navio negreiro. Foto Marc Ferrez.






















A foto acima permite traçar uma linha de interpretação que leva da miséria ao poder transfigurador da ação criadora: o samba, o funk, a comida, as palavras, a disposição à mestiçagem, a cultura. Por outro lado, não se sabe ainda o que os indivíduos podem a partir de uma situação material mais densa e estável. É possível, então, um pensamento sobre o Brasil que abra mão do pessimismo distante e da conciliação arbitrária em favor do imprevisível, do indeterminado, do imponderável? E o que seria esse “indeterminado”, esse alienígena?



Na música, por exemplo, o funk do MC Bin Laden e de MC Carol, o mapeamento que Chico Dub faz com os volumes de Hy Brazil, a reaparição de Krishnanda, os “antiregistros folclóricos” da caixa de CDs Música do Brasil (dirigida por Hermano), a música de Leiteres Leite, a torção dos cânones emepebísticos empreendida pelos paulistas (Metá Metá, Passo Torto, Juçara Marçal), a organização sócio-econômica do tecnobrega, as viradas de bateria eletrônica enlouquecidas do brega de Pernambuco, a “música de ruídos” de Cadu Tenório e Jhones Silva, que faz barulho na Baixada Fluminense…



Nas chamadas “artes plásticas”, destaco “O Globo da Morte de Tudo” ou “Fruto Estranho”, obras de Nuno Ramos que operam mais sobre a transfiguração da ruína do que sobre a sua problematização, obras capazes de colocar um ponto de interrogação ativo, para além da “dúvida” cartesiana, que obriga a optar por um método, e portanto, profundamente comprometida com uma forma de intelecção completamente inadequada para os dias de hoje. As peças de Ramos são capazes de abalar crenças e percepções, convidando o espectador à uma atitude interpretativa, e não para a melancolia sisuda. Para além do pessimismo, mas sem abrir mão da estranheza, do conflito, da agressão.

Fruto Estranho, Nuno Ramos, 2010
































Vejo uma margem de indeterminação no dispositivo-obra de arte, que ao invés de afirmar o “culto da personalidade”, desindividualiza e transindividualiza a obra. Não somente a noção de justaposição entre arte e vida, através de procedimentos que atocham trejeitos “artísticos” a situações cotidianas. Ou entre uma “estética da existência”, na qual a arte serviria de modelo para afirmar a existência. Mas a pregnância cultural e biopolítica de uma técnica nova, de um procedimento imprevisível, de um movimento surpreendente, rico de possibilidades interpretativas e de um deleite particular. A crítica assim não se exerce somente ao nível negativo da crítica política e econômica, da crítica analítica, da crítica hermenêutica ou cultural. Ela pode ser exercida sob a forma de um dispositivo artístico, cuja constituição pode até estar comprometida com a ciranda do curadores, das instituições e dos colecionadores milinonários. Mas seu poder, aquilo que ela pode, não se esgota nessa ciranda.



Não se trata de perguntar qual o dispositivo que possui mais poder de existir e resistir ao capital, como se pudessemos situar problema em uma escala absoluta. Dependendo de uma conjunção de fatores, os Black Blocks podem ser algo bem menos radical do que uma obra do Matthew Barney exposta em Inhotim. Quem pode medir o "impacto social", se a dimensão do "social" se tornou um tipo de grandeza abstrata que mais nivela os termos do problema do que os explica? Podemos encontrar a nós mesmos revestidos por uma consciência luminosa, clarividente, pela moral mais complexa, imbuídos pela força que nos dá a consciência dos limites. Mas seria a nossa capacidade mais fundamental a de detectar e anunciar o desastre? O desastre não seria inevitável? Nossa capacidade fundamental não seria a capacidade de transfigurar e remodelar a cultura? Ou nossas tendências mais radicais clamam por reformas? Se há caminho, este se constituirá a partir do delírio, da subjetividade, da leveza de uma posição singular, criativa e transindividual, de uma duração própria que pode se ramificar em outras atitudes e pensamentos. Não de uma ciência redentora, muito menos de uma ira santa apoiada na certeza das evidências. Ainda falamos de uma "gaia ciência".

Hoist (frame), Matthew Barney, 2006







































A despeito de seus suportes e formas de apresentação, o que diferencia, por exemplo, “Hoist” de Matthew Barney de “Fruto Estranho”, duas obras que problematizam o acontecimento, que conectam e redimensionam objetos cotidianos e heterogêneos, que produzem uma torção que implica na catástrofe? Me parece que é justamente o seguinte: enquanto Barney chora o fracasso do projeto moderno, do capitalismo e seus centauros, Ramos os enxerga sob um horizonte de possibilidade no qual a catástrofe, a tragédia, é matéria-prima para a superação e a afirmação da subjetividade. Como nos sambas de Nelson Cavaquinho, nos quais o autor descreve as maiores atrocidades, os gestos mais vexatórios, mas que são plasmados sobre uma bela forma, capaz de transfigurar a passionalidade em uma força imperativa, criadora. Nossa abundância é biopolítica, não se resume, portanto, às implicações do crescimento econômico, muito menos da "participação política", mas às formas de vida.    

Diante das obras inegociáveis de Nuno Ramos, a última coisa que eu penso é: “estamos fodidos”. E a primeira é “vamos nessa”, “vamoquevamo”, e outras expressões que nascem de um pessimismo sublimado, como uma gíria fresca, nova. São obras que versam sobre a abundância, não sobre a falta, problematizam o futuro como algo indeterminado, independente de otimismo ou pessimismo. Se será bom ou ruim, habitável ou respirável, pouco importa: há que ser novo, radicalmente novo. Não seria o grande desafio para o pensamento brasileiro das próximas décadas dar corpo a esse sentimento alienígena, não somente nas artes, mas também nas formas de vida, buscando problematizar constantemente a pergunta: como pensar o Brasil na abundância?

Bernardo Oliveira





terça-feira, 29 de abril de 2014

Malawi Mouse Boys – Dirt is Good (2014; IRL, Malawi/Reino Unido)

























Um álbum lançado este ano na República do Malauí é capaz de provocar elucubrações insuspeitas. Uma delas, por exemplo, sugere que basta ouvir as suas primeiras notas – e tendo em mente o seu título – para se lançar a um esforço de adivinhação de qual seria o destino do rock caso suas diretrizes iniciais fossem outras. Ou, indo mais direto ao ponto: se, em vez do rock’n’roll clássico formatado por Chuck Berry, o universo criativo de que tratamos fosse mais guiado pelo senso rítmico de Bo Diddley, artista cuja influência, apesar de imensa entre músicos, ainda não se traduz em suficiente reconhecimento crítico ou adesão de público. O elemento em questão é a sujeira, a mesma que nomeia o segundo álbum dos Malawi Mouse Boys. Neste, trata-se de apenas um dos seus ingredientes sonoros. Um outro é a presença simultânea da linha melódica em arranjos simples que contam com assovios e corais precisos que recortam as suas 15 faixas. Daí a menção a Bo Diddley, bússola de tantos artistas que, na tradição pop, deixaram-se nortear pelo apreço à estrutura melódica e, ao mesmo tempo, pela experimentação sônica: The, Kinks, The Sonics, The Jimi Hendrix Experience, The Velvet Underground, The Jesus & Mary Chain etc. (Aos não iniciados em Diddley, recomenda-se começar pela encardida “Mumblin’ Guitar”, de 1959.)

Realmente, essa é apenas uma das referências que Dirt is Good evoca. Há muito mais que pode vir daí.

Sou obrigado a admitir que a cultura musical do Malauí, localizado na África Oriental (Malauí significa “sol nascente” em cinyanja, idioma local do tronco linguístico banto), não é muito frequente nas minhas pesquisas. Do país, conhecia a coletânea Music Of Malawi – From Lake Malawi To The Zambezi, interessante amostragem do repertório tradicional nativo que, caso consultado, o etnocentrismo ocidental certamente definiria como “folclórico”. Mas nada mais natural que a minha ignorância: a África, por si só, transcende desde sempre as nossas limitações em saber sobre ela – e, por extensão, sobre nós mesmos, que dela viemos todos.



Os Malawi Mouse Boys são vendedores de beira de estrada da iguaria (assada no espeto) que trazem no nome. Nos intervalos do expediente, executam o seu tipo peculiar de gospel com instrumentos confeccionados artesanalmente e outros, improvisados – uma lata de refrigerante, por exemplo, pode ganhar uma inusitada função percussiva. Uma dessas sessões ao ar livre foi assistida pelo produtor inglês Ian Brennan, que logo decidiu gravá-los. Sob o critério da precariedade técnica e do decorrente senso de improviso que ela inspira, podemos traçar certo paralelo entre a banda e uma outra, um pouco mais conhecida: a congolesa Staff Benda Bilili. 

O estilo coral ao modo gospel dos Malawi Mouse Boys lembra a cultura musical jive da África do Sul. A relativa proximidade geográfica explicaria a afinidade? Talvez. Muito provavelmente o fator étnico não conte tanto se considerarmos que a religiosidade é o motor criativo dos músicos. Afinal, mais evangelizador que os títulos traduzidos de algumas das faixas de Dirt is Good, só mesmo o auge de uma pregação frenética: “Love Of Jesus”, To Be Saved”, “My Lord”, I Like That Jesus Loves” e “My Sins Are More”. Apesar das diferenças sonoras, a comparação do trabalho da banda com o das veteranas Lijadu Sisters, que retornam aos palcos este ano pelas mãos de Damon Albarn, do Blur, é inevitável. As irmãs gêmeas da Nigéria também usam a música como veículo para render louvor a Cristo, só que em composições de rítmica iorubá que não dispensam sintetizadores e agressivas guitarras ligadas em linha.



(Que se diga uma coisa: Dirt is Good é um álbum para ser ouvido sempre na íntegra. Sua coesão é nítida. Portanto, nesta resenha, preferi não tratar de cada faixa em particular.) 

Os Malawi Mouse Boys têm uma flagrante vocação pop que nem de longe flerta com a estética da world music (afinal, o que é este rótulo além da tentativa de pasteurizar toda música produzida na África desde os anos 1980, e cujo prazo de validade infelizmente ainda não expirou?). E essa vocação não abre mão do despojamento que é a condição do seu ambiente original. Muito pelo contrário: ao que tudo indica, a banda grava suas composições na própria comunidade (ou na fatal “aldeia”, como preferem os focloristas?). É preciso dizer que Ian Brenner tem seu mérito ao registrá-las tal como as ouviu pela primeira vez. Mas não se deixe enganar por aquilo que se poderia tomar por “primitivismo”. Artistas e comerciantes de estrada que são, os Malawi Mouse Boys parecem estar bem mais sintonizados com o largo espectro da indústria cultural do que se desconfia. Sua capacidade de diálogo é invulgar. Sem dúvida, é aí que reside a sua verve. E ela é descomunal.

Lucio Branco

quarta-feira, 26 de março de 2014

The Speakers – En El Maravilloso Mundo de Ingeson (1968; Kris, Colômbia)

























Na segunda metade da década de 60, a situação sociocultural da juventude colombiana não se diferenciava tanto da vivida pelos brasileiros e, em geral, da maioria dos jovens sul americanos. A Instabilidade política do país em junção com o conservadorismo das classes média e alta, não criaram um ambiente propício para que houvesse a dissseminação e o desenvolvimento do rock e da cultura pop na intensidade desejada pelos jovens de Bogotá e Medellín. Apesar disso, muitos esforços (artisticamente relevantes mas, na sua maioria, fracassados comercialmente) foram feitos para que florescessem, na Colômbia, expressões artística legítimas e inovadoras norteadas pelo contexto da psicodelia, dos happenings e da contracultura britânica e norte-americana.

Dentre os grupos que levaram mais adiante esse intuito, imbuídos de um espírito criativo sem precedentes no rock colombiano, o The Speakers (que depois de 67 se autodenominavam Los Speakers) foi o que chegou mais longe no quesito de inovação — a libertação das limitações impostas pelas condições que os cercavam. Em 1968 foi gravada e lançada a obra-prima da banda, o disco En El Maravilloso Mundo de Ingeson. O nome é uma bem humorada referência ao estúdio no qual a banda gravou o disco. O acordo era: os Speakers poderiam, durante as noites, usufruir da moderna equipagem e os diversos instrumentos disponíveis sem pagar nada, mas o nome do estabelecimento deveria aparecer no título do álbum.

Já na sua quarta formação, em 1968, os Speakers eram: Roberto Fiorilli, baterista de origem italiana que já vinha fazendo grandes contribuições para o cenário bogotano como membro fundador de grupos como Los Young Beats e The Time Machine; Rodrigo García, guitarrista espanhol e membro fundador do Speakers em 1964; Humberto Monroy, baixista colombiano que, ao lado de Rodrigo García, fundou a banda e, durante toda sua carreira, foi uma das maiores forças criativas do rock colombiano.

O trio, então, trabalhando durante as madrugadas no estúdio da Ingeson, começou em Junho uma viagem que duraria 4 meses. No caminho passaram pelas sonoridades andinas, a instrumentação barroca, guitarras estridentes que berravam delicadamente, ritmos de marchas militares, percussões variadas e todo o tipo de efeito sonoro que conseguiram utilizar para criar, através de elementos mundanos e distorções dos mesmos, uma atmosfera de alucinação. Ao final dessa jornada, os Speakers criaram uma espressão única, uma explosão de lirismo e subversão emanando das densas matas da Amazônia colombiana.

O disco começa com um despreocupado cantarolar que se transforma em um breve grito de desespero, sendo prontamente silenciado pelo som de um trem correndo. O contraste, nesse momento, é contundente quando essa pequena rede de acontecimentos é abruptamente interrompida pelo elegante rufar de trompas, cornetas e um cravo, dando início a “Por La Mañana’’, canção de Rodrigo García que adentra, sem receio algum, no pop barroco e abre o disco. Precedida pelo som de uma caixa registradora, a explosiva “Oda A La Gente Medíocre’’, de Roberto Fiorilli, dá continuidade ao álbum. A suavidade é deixada de lado num primeiro momento. O riff estridente da guitarra de García, o acompanhamento preciso do baixo de Monroy e a bateria algo jazzística e algo avant-garde do autor do tema, que serve como base ininterrupta para a primeira parte da música, dão a textura ideal para que as proposições imperativas proclamadas por Fiorilli ecoem na mente de quem as escuta. A essência da mensagem artística da banda é bem representada nos versos da ode – “Abre tu miente a tiempo/Corta con el pasado/Vete hacia el futuro/Emplea tu fantasía/Liberate en este dia...”. Chegando a um clímax instrumental, “Oda a La Gente Medíocre’’ se transforma em um confuso diálogo de duas guitarras que deslizam sob o ritmo de percussões latinas e tambores árabes aliados da marcação intensa de Humberto, ao baixo. 

As duas primeira faixas são os extremos da obra, do lirismo inocente e contemplativo de “Por La Mañana” à gritante eletricidade de “Oda A La Gente Medíocre” estão contidas as diretrizes sonoras que o resto do disco irá seguir. Pela sua beleza melódica, destacam-se também as baladas de García “No Como Antes” e “Nosotros, Nuestra Arcadia, Nuestra Hermanita Pequeña, Gracias Por Los Buenos Ratos”. A última merece atenção especial, pois se trata de um tema instrumental guiado pela flauta doce de Fernando Acuña (músico dos estúdios Ingeson) e a guitarra pós-a go-go de Rodrigo García, passando por mudanças rítmicas que englobam o pop e a valsa. Pela parte de Humberto Monroy, é excepcional “Si la Guerra es un Buen Negócio, Invierte a tus Hijos”, canção irônica que apresenta um arranjo de tuba com sonoridade de coreto e uma certa alegria que contrasta com a crítica ferrenha feita pelo coro, cantando àqueles que apoiam as guerras (do Vietnã, principalmente) e veem valor nas condecorações militares. É notável em “Um Sueño Mágico”, também de Monroy, a ambientação quase apocalíptica feita pela banda. O abuso da distorção na guitarra e a bateria frenética de Fiorilli, aliados do sino de igreja marcando as mudanças de acorde, conferem à música um peso excepcional para a época. A última composição é “Salmo Siglo XX, Era De La Destruccion”. A canção de Roberto Fiorilli é como uma metonímia, uma crítica ao sucesso do primeiro projeto atômico do governo de Carlos Lleras Restrepo, então presidente da Colômbia, mas que traduz a sua mensagem de pacifista e antibelicista para o mundo.



É comum que o uso constante do efeito fuzz nas guitarras levem muitos a classificá-la como “garage-psych”, ou algum outro termo que se use para caracterizar o som das bandas psicodélicas sul-americanas da época. No entanto, vale notar que uma análise mais profunda da sonoridade do disco pode levar a outras conclusões. O uso que García faz do recurso citado aponta para uma outra sonoridade. Se comparações podem esclarecer, as linhas de guitarra em “Ode A La Gente Medíocre”, “Hay Um Extraño Esperando En La Puerta” e o solo de “Nosotros, Nuestra Arcadia...” apresentam um contraste entre peso e leveza, estridência e precisão que, nos anos 70, seria desenvolvido com maior particularidade por Robert Fripp em suas parcerias com o compositor Brian Eno: “No Pussyfooting” e “Evening Star”.


Em En El Maravilloso Mundo de Ingeson, os Speakers transcendem a sua época, seu contexto e qualquer rotulação de gênero que possa ser conferida a eles. A obra final do grupo é um passo adiante na produção cultural da América do Sul e uma expressão artística atemporal. Após o lançamento do disco, no entanto, a banda se separou. Rodrigo García retornou à Espanha para se juntar ao Los Pekenikes enquanto Humberto Monroy e Roberto Fiorilli permaneceram em Bogotá para fundar o Siglo Cero, grupo instrumental que deu início a um cenário mais diversificado e sofisticado na música pop colombiana.

Gabriel Marques

quinta-feira, 20 de março de 2014

Juçara Marçal – Encarnado (2014; s/g, Brasil)

























1. Cantar é vibrar cordas vocais, escreveu Tom Zé em “Multiplicar-se única”, sublinhando a íntima conexão entre voz particular e canção comunitária, entre sopro e comunhão: “simples prazer de ressoar no ar o som da voz. Canta por nós cordas vocais sem cais, cordas ou nós.” Cantar, gesto impuro de talhada e precisa contenção, que não vem do coração, nem da pureza da natureza. A fumaça irrita a garganta, os copos tilintam no salão, desviando a atenção do cantor. Às vezes, a voz aparece e somos como que tomados por uma imprevista sensação de captura. O canto encarnado de Aracy de Almeida, Elizeth Cardoso, Elza Soares, Clementina de Jesus, Jovelina Pérola Negra e, mais recentemente, Juçara Marçal.

2. Encarnado não é um disco sobre a morte, nem sobre a morte que habita um fenômeno maior, que é a vida. Encarnada é a condição de tudo o que vive, suas qualidades instáveis, seus atropelos, variações e desgastes. O encarnado, sobretudo, resiste. Resiste com as marcas de navalha que sua própria mulher, por ciúmes, rabiscou em sua cara. Ressucita e retorna para “bater até cansar” nos covardes que o assassinaram. “Passa na carne a navalha, se banha de sangue” e roga aos deuses para atravessar momentos excruciantes de um aborto ritualizado. Encarnado, o primeiro disco solo de Juçara Marçal, é, portanto, um disco sobre o ato e o efeito de resistir.























3. Povoado por personagens reais e imaginários, Encarnado narra as desventuras de seres que resistem. Seres que se encontram isolados no mundo, atormentados por fantasmas e memórias de “três guerras no peito”, tomados pelo ódio e pelo medo, errando pelas ruas se perguntando “que vida é essa?” Seres “sem ombro amigo, com febre e confusos em um precipício.” Ou seres que conversam consigo mesmos, projetando-se anos depois, envelhecidos. Do outro lado, assistindo ao tenebroso espetáculo da existência, a Morte desabafa: “quero me aposentar pra ganhar tranquilidade, deixando a humanidade matando no meu lugar.”

4. E, no entanto, o disco abre com uma declaração não propriamente “otimista”, mas afirmativa: “Não diga que estamos morrendo. Hoje não.” O texto de Romulo Fróes para o release do disco tem a manifesta perspicácia de pinçar esta frase como o sintoma, o sentido, o norte de Encarnado. Apesar de todo o turbilhão de forças externas que o fazem perecer, o corpo pode mais do que resistir. Pode recursar-se a morrer, bradando: “hoje não!” Metáforas são possíveis na perspectiva de um corpo que resiste, mas não me ocorre nenhum meio mais poderoso de resistência do que através da capacidade de experimentação e invenção. Em arte, particularmente.



5. Tal como os projetos habituais de uma certa turma de São Paulo, Encarnado exprime o resultado de um apurado trabalho de (re)invenção sobre a matéria da canção e das manifestações multifárias da “música popular brasileira”. Responsáveis pelo que de mais interessante surgiu nesta seara nos últimos trinta e poucos anos — desde os primeiros álbuns de João Bosco e Djavan? — a turma vem infundindo outros materiais sobre a canção brasileira através de grupos como Metá Metá e Passo Torto e autores como Romulo Fróes e Rodrigo Campos, entre outros. Em termos de concepção temática e sonora, Encarnado talvez seja, em relação a este núcleo de artistas, o disco mais rico e, ao mesmo tempo, divergente do cancioneiro brasileiro recente.

6. O canto de Juçara Marçal reúne muitas informações com as quais podemos determinar uma espécie de procedência. A rigor, é possível vinculá-la ao rol das cantoras suaves, como Alaíde Costa com seu soprano versátil. Sua voz é tecnicamente admirável, mas o assunto aqui não se resume à técnica. Também não me refiro somente à ausência de floreios e clichês com os quais podemos identificar uma larga porcentagem das cantoras contemporâneas. Um dos trunfos desta que me parece ser a maior cantora surgida no Brasil desde Alcione, é a capacidade de adequar seu canto à composição com uma certa humildade, respeitando-a. Quando sua voz cruza o salão, porém, Juçara é capaz de revestir esta mesma canção por uma qualidade enérgica, exprimindo bom-humor sem afetações, ímpeto e tensão dramática. Deflagra-se, então, todo um cortejo de possibilidades, do sussurro rouco ao grito lancinante. Juçara faz parte daquele rol restrito de cantoras que, ao interpretar, compõem e recompõem a canção.























7. O repertório é quase que integralmente contemporâneo. Todos os compositores estão vivos e operantes, com exceção de Itamar Assumpção — cuja presença, no entanto, permanece forte entre nós. Mesmo o jovem veterano Tom Zé comparece com “Não Tenha Ódio no Verão”, canção proveniente de seu último álbum, Tropicália Lixo Lógico. Pela ordem de aparição, é possível elencar um manancial de compositores capazes de enterrar de vez a ladainha da “crise cultural” ou da “crise da canção brasileira”: Rodrigo Campos, Douglas Germano, Everaldo Ferreira da Silva, Romulo Fróes, Alice Coutinho, Gui Amabis, Régis Damasceno, Kiko Dinucci, Siba Veloso, Thiago França e a própria Juçara Marçal. Compositores diferentes entre si, mas que, através de um recorte preciso, reúnem-se ao redor do conceito do álbum.

8. A instrumentação é econômica, calcada no diálogo entre as guitarras de Kiko Dinucci e Rodrigo Campos, que fornecem a espinha dorsal da grande maioria dos arranjos. Thomas Rohrer na rabeca e Campos alternando-se no cavaquinho com e sem efeitos, completam o time, que também conta com Thiago França com seu saxofone percussivo em “Damião” e pocket piano em “E o Quico?”. Uma profusão de efeitos dramáticos e climáticos são obtidos a partir de guitarras e cavaquinhos que distribuem-se e justapõem-se em bordados sonoros compostos por acordes soltos, solos, arpeggios, ruídos, ostinatos — observem, por exemplo, a reviravolta rítmica de “Queimando a Língua” (aos dois minutos), a chegada do disco voador em “E o Quico?”, o cavaquinho agudo de Campos intervindo brutalmente sobre os versos dolorosos do refrão de “Ciranda do Aborto”, os efeitos que pontuam “Canção para Ninar Oxum”, etc.

9. Rodrigo Campos comparece com “Velho Amarelo”, o abre-alas, a canção que ostenta o “grito” primordial que permeará todo o disco: “Hoje não!” Já o grito de Douglas Germano e Everaldo Ferreira ensaia a ressurreição triunfante de Damião Ximenes Lopes, assassinado em 1999 por funcionários de um manicômio em Sobral, Ceará. Juçara sobe o tom, disponibilizando-se para surrar os que mataram Damião: “Dá neles Damião! E quando cansar me chama!” Seguem-se duas composições que subvertem o amor lírico com sagacidade. Em “Queimando a Língua”, Romulo Fróes e Alice Coutinho interpretam o transe amoroso através de versos oblíquos, enquanto “Pena Mais que Perfeita”, valsa de Amabis e Damasceno, versa sobre a pena que “na pele moura ferve numa contradança”. O amor incide de forma impiedosa sobre o corpo que resiste, queimando, fervendo.

10. “Odoya”, composição de Juçara, serve como prece para uma travessia dolorosa. Me refiro à “Ciranda do Aborto”, que, novamente nas palavras de Romulo Fróes, destoa do amor romântico com o qual se identifica a poética amena da MPB. Este “bem querer” a que se refere a letra é um ser morto, “despedaçado” por um aborto ritualizado. Afora a roupagem sonora, composta por rabeca, guitarra e cavaquinhos distorcidos, em nada semelhante à roupagem condescendente da MPB contemporânea, observa-se a subversão de alguns dos clichês mais caros aos artistas que se abrigam sob esta sigla. A performance fenomenal de Juçara, a entrega evidente com que entoa cada um dos versos, faz sobressair a tensão entre o corpo retalhado e a presença de um aspecto sobrenatural. À maneira funérea de Nelson Cavaquinho em “Depois da Vida”, Dinucci encena a luta da mãe por conservar seu rebento neste mundo, carregando o ambiente com elementos trágicos — “Mas o chão te engoliu, toda lida findou, pra você descansar no meu braço.”



11. Os versos e melodias precisos de Germano reaparecem em “Canção para ninar Oxum”, levantando o astral para a sequência de canções cômicas. “E o Quico?”, de Itamar Assumpção, além da óbvia alusão involuntária ao guitarrista e compositor do disco, retrata uma conversa delirante sobre questões existenciais entre o próprio Itamar, uma assombração e seres extraterrestres. Depois, a recomendação impagável de Tom Zé, sugerindo ao ouvinte que não tenha ódio durante a referida estação, concluindo com versos de um patriotismo irônico: “isto arrebenta uma nação!” Por fim, a poesia de Siba Veloso, precisa, terrível e satírica a um só tempo, em “A Velha da Capa Preta”: “E a vida é como um cigarro que o tempo amassa e machuca, e a morte fuma a bituca e apaga a brasa no barro.”

12. Finalmente, a voz é o tema de “Presente de Casamento”: Juçara canta um tom acima para desenhar a melodia bluesy e a letra reminiscente, fruto da parceria entre Romulo Fróes e Thiago França. O disco se encerra com “João Carranca”, interpretação da canção registrada em 2007 por Kiko Dinucci e Bando Afromacarrônico. Acompanhada apenas pelo cavaquinho, Juçara narra a história de Guaracy, rainha da Boca do Lixo, que vê o tempo passar e envelhece. Quando seu jovem amado João se torna um rapaz desejado pelas moças, a mulher com ciúmes retalha o rosto do rapaz, transformando-o em João Carranca.



13. A voz que canta pretende resistir ao tempo e até mesmo ao espaço que possibilita sua propagação no ar. Mas também se dispõe a transformá-lo, como a navalha transforma João em João Carranca. A arte, a música em particular, resiste como as cicatrizes na face de João Carranca, como o ciclo de vida e morte que anda por toda a parte, como as múltiplas possibilidades da canção, depósito da economia afetiva da multidão. A voz é navalha no ar, no ânimo, no corpo, na carne, alvos constantes dos ataques impiedosos do acaso e das causas externas. Por esta razão, cantar é mais do que lembrar, mais do que viver. Cantar é também refazer, resistir. O canto “encarnado” de Juçara Marçal, resiste.

Bernardo Oliveira

segunda-feira, 17 de março de 2014

Untold – Black Light Spiral (2014; Hemlock Recordings, Reino Unido)

























Uma motocicleta (acidentada?) deitada ao chão, um pano de cetim amarelo jogado de forma displicente sobre um jardim de contornos superficiais, como os que vemos nos shopping centers e centros comerciais. Que me lembre, a última capa de disco capaz de vincular a forma e o assunto de modo eficaz como a de Black Light Spiral, foi a de Classical Curves (2012), estreia do inglês Jack Latham, mais conhecido como Jam City. Tanto a capa quanto o trabalho de Latham buscavam reproduzir uma desnorteamento programado diante da eminência de algo incompreensível que, por não sabermos do que se tratava, transmitia insegurança. A tensão se manifestava através de uma música bruta, repleta de intervenções aparentemente aleatórias (gritos, estrondos), fortemente sincopada e portadora de um brilho sinistro.

Por sua vez, a capa de Black Light Spiral, primeiro álbum de Jack Dunning, ou Untold, produtor de Hertfordshire, também expressa o conceito sonoro com eficácia. A foto reproduz o exato momento em que um singelo porquinho de porcelana é atingido por um tijolo na cabeça. Diferentemente da capa do Jam City, que retrata algo que já passou, a foto flagra justamente o momento em que o tijolo atinge sua orelha e se quebra, enquanto ele permanece tal e qual, estúpido e sorridente. Ora, esta capa se dirige à fugacidade envolvente do instante e do ambiente. Ainda que imersos em um contexto determinado, não somos aptos a perceber a quantidade de acontecimentos que atravessam nossa percepção. Ao congelar o instante, a capa de Black Light Spiral remete a esta sensação ambivalente de familiaridade e espanto, que de certa maneira caracteriza o disco. Teremos a oportunidade de confirmar essa hipótese diante da qualidade imersiva e da infinidade de detalhes de cada uma das faixas desse trabalho estranho e desafiador que é Black Light Spiral

O disco se inicia com ruídos variados distribuídos sobre uma marcação em volume baixo. A textura é interrompida pela eclosão de sirenes de todos os tipos: ambulâncias, alarmes, carros de polícia. Os ruídos não se resumem aos bleeps comuns nesta seara, mas possuem algo de ameaçador, carregados de um aspecto documental, como se fossem extraídos das ruas. O grave se torna proeminente enquanto o clima de desorientação toma conta do ambiente. Estamos situados no âmago do descontrole urbano inerente ao imaginário da eletrônica londrina. Porém, o que geralmente se apresenta como uma vinheta de introdução, em “5 Wheels” dura quase cinco minutos. Não se trata somente de uma indicação de contexto, tal como nas vinhetas desse tipo, mas a tentativa de envolver o ouvinte em uma atmosfera rarefeita e impessoal.

Além da qualidade imersiva, há em Black Light Spiral uma estratégia de produção das batidas que passa ao largo do paradigma percussivo grave/agudo, comum ao techno. Neste sentido, seu trabalho trava um diálogo interessante com o Ekoplekz de Nick Edwards, sobretudo pelo fato de que, em ambos os casos, o “kick drum” do techno não serve de fio condutor. O ritmo é produzido por amálgama de elementos diversos, inclusive elementos supostamente não-percussivos. Como, por exemplo, em “Drop it on the One”, em que o suingue deriva da repetição contínua e circular de samples de vozes, bumbos, rangidos e um som grave em glissando. Este efeito é produzido através da transliteração de elementos que não são usualmente utilizados nas batidas, à semelhança do trabalho com vozes no juke ou na poética falada de Anne-James Chaton. “Sing a Love Song” confirma esse procedimento ao elaborar o ritmo a partir de recortes de um sample de voz que entoa o verso “Sing a Love”. 


Em “Strange Dreams”, talvez a que mais se aproxime do que Dunning produziu anteriormente, percebe-se que o grave, depositado geralmente sobre a atuação do contrabaixo e dos bumbos, soa na estrutura rítmica através de timbres mais agudos, quase estridentes. Em “Hobthrush”, no lugar do bumbo e do baixo, um som saturado cria as marcações, enquanto a combinação de estalidos e baixas frequências determinam a ambiência de “Wet Wool” e “Ion”. Techno, dubstep, industrial, experimental, o rótulo parece não importar tanto quanto a capacidade de síntese. Cada faixa exprime algo como uma organização ambígua, caótica e, ao mesmo tempo, pensada, estudada. Em uma de suas primeiras entrevistas, Untold teria definido seu trabalho musical da seguinte maneira: “It’s design not art.” (apud FACT Magazine). Levemos essa declaração em consideração.


Desde 2008, Dunning vem lançando seus Eps e colaborações (alguns por seu próprio selo, o Hemlock), demonstrando estar atento para muitas vertentes da música eletrônica de pista. Sua produções são baseadas em batidas sincopadas e timbres marcadamente sintéticos, comparáveis aos sobressaltos de 2562 (como em “Sweat”); algumas delas, são mais afinadas com o universo específico da pista de dança (“Kingdom”), outras parecem querer abalar sua estrutura — como a série de Eps Gonna Work Out Fine e a parceria com o trio LV, “Beacon”. Porém, em Black Light Spiral, a impressão é a de um território completamente aberto, para além da síntese de experiências pregressas. Dunning investe em uma técnica de composição linear, análoga àquela empregada pelos que utilizam Ableton, calcada no jogo de sequenciamento, adição, subtração e justaposição. O resultado, porém, impressiona ao soar com a singularidade de um procedimento novo. Opressivo e rico em ideias, Black Light Spiral representa um ponto alto não só na carreira de Dunning, como também um dos lançamentos mais singulares da música eletrônica recente.

Bernardo Oliveira