terça-feira, 10 de junho de 2014

Pensar na abundância. Ou “a poética da catástrofe é um pessimismo?”

Inserções em Circuitos Ideológicos: Projeto Coca-Cola, Cildo Meireles, 1970

Otimismo e pessimismo no Brasil contemporâneo compartilham premissas, seja uma percepção subjetiva que alça a si mesma à universalidade, uma projeção ilusória desta subjetividade sobre movimentos radicalmente heterogêneos, ou uma expectativa urgente de concretização. Por outro lado, otimismo e pessimismo operam uma forma de amarrar os fios desencapados que são nossas “faltas”, mazelas e fracassos. O pensamento brasileiro até então se orientou para conceber otimismo e pessimismo à contra luz de uma abundância importada que há muito já não esconde suas lacunas e imperfeições. Essas tendências pressupõem, de um lado, a manutenção do discurso identitário, capaz de regular essa monumentalidade chamada Brasil, fictícia, polissêmica; e, de outro, a tendência a colocar todos os problemas como uma questão de “política pública”, de solução final, de ruptura. Otimismo ou pessimismo, portanto, são afetos, tendências que, ao ditarem o tom do discurso, amarram os fiapos da realidade complexa em um todo coerente, fornecem ao seu portador um sentido em relação ao qual se pode produzir um diagnóstico geral contra “tudo o que está ai”.

“Nós precisamos criar um Brasil — e não ensiná-lo”, escreveu Décio Pignatari há quarenta anos. Antes de criar alguma coisa, otimismo e pessimismo operam inadvertidamente a manutenção daquilo que está em voga. Por este motivo, não se deve perder de vista o poder transfigurador, essencialmente criador, do delírio, o que torna a equação ainda mais complexa. A arte, a ciência e a filosofia deliram, assim como na religião, mas em sentidos diversos. Elas libertam do presente, libertam a criação da noção de produção e sublinham o fundamento da existência, o poder de criação, poder poiético. O delírio emancipa da ciranda de valores consolidados e permite entrever outras possibilidades.

Não há cultura a ser preservada, toda cultura é “complexo de cultura” (Nietzsche). Quais os sentidos em que se produzirá um pensamento rico de ideias e absolutamente delirante sobre o que acontece por essas bandas? Um encaminhamento para a questão das tensões da atualidade pode ser encontrado na pergunta: como evitar que o afeto pessimista ou otimista interdite interpretações potentes e efetivamente transformadoras?

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Pull (detalhe)Mary Mattingly, 2013
































Por outro lado, atentemos para uma característica da relação entre o tempo e o afeto. A medida da história e da experiência nos é fornecida pelos efeitos que ecoam do passado sobre nossos sentimentos, daquilo que é repassado de forma esquadrinhada e excessivamente refletida aos regimes de consciência, mas escoado através dos afetos de falta, melancolia e espera. Se há a possibilidade de se pensar, com Hume e Kant, o caráter transcendente da “natureza humana”, seu desdobrar é essencialmente metafísico pois considera o tempo polarizado, abstrato, do ser e do nada. Por outro lado, não consideram a “condição de possibilidade” do pensamento sobre o ser e o nada, que vem a ser as durações, tonalidades, e uma infinidade de frequências, “pluralidade de ritmos de duração” que rebatem na dinâmica transindividual da coletividade. No plano do ser e do tempo, o plano redobrado da interioridade, somente a melancolia (o medo, a seriedade!) e a esperança provocam o pensamento. O que pode o pensamento desvencilhado dos atributos melancólicos do ser e do tempo, e desdobrado pela noção de duração? A partir de uma leitura da distinção entre tempo e da duração no filósofo francês Henri Bergson, podemos criar uma simpatia renovada pela existência, mesmo diante das condições mais perigosas e nefastas.

“A duração bergsoniana não faz desaparecer nada… (…) Pensar a passagem do tempo, simpatizar com essa passagem, é justamente livrar-se daquilo que é, daquilo que nos prende aos seres e aos nadas. Correlativamente, é a razão pela qual buscaríamos em vão, em Bergson, uma definição do passado como aquilo que não é mais, ou do futuro como aquilo que ainda não é, embora, às vezes, ele se expresse assim. Ser e nada não permitem pensar adequadamente o tempo. Todo o problema vem de que o pensamento se apegou aos seres — e não aos movimentos dos seres. Não é esse o caso dos melancólicos que permanecem apegados ao passado ou ao futuro?” (David Lapoujade, Potências do Tempo, p. 24)

É preciso, portanto, que o pensamento se apegue não mais aos seres, mas ao movimento dos seres. Aquilo que o francês Gilbert Simondon chamou de “modo de existência” das coisas não as fixa em uma escala absoluta do tempo. O seres, as coisas, são dinâmicas e geradas a todo instante; sua gênese não é análoga à gênese judaico-cristã, a gêneses das coisas uma-vez-por-todas. “O índio assassinado”, “o negro discriminado”, “o povo explorado”, “o país subjugado” e outras imagens-dispositivo caras à crítica e à política contemporâneas, exprimem um apego incontornável à fixação histórica dos seres e dos gêneros, sem que se possa determinar nem sequer do que estamos falando. Este índio, esse negro, quem são? Seus respectivos modos de existência exprimem uma pluralidade afetiva mais ampla do que os termos jogados pela academia, pela ciência, pelos governos. Não que não haja racismo, exploração, miséria e desespero, mas se de fato não bastam "reformas" para alterar esse estado, muito menos no que diz respeito ao poder abstrato da linguagem. Assim, até mesmo as "evidências" catastróficas trazidas pela consolidação do antropoceno são também uma interpretação, não um fato. 

Mais uma vez é o delírio subjetivo, que habita a pluralidade de complexo de cultura, o alimento que nos reconecta com uma duração tensionada pela multiplicidade. Mas a multiplicidade não quer “voz”, não quer ser evocada e vocalizada. A multiplicidade é a própria voz, a força ontogenética, o clangor total do mundo que soa dentro de cada um e de todos nós, mas que é subssumida pelo discurso abstrato, pela subjetividade que reclama universalidade.

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Verme, Nuno Ramos, 2010






















A descentralização da produção e dos centros de legitimação da informação, mesmo que pequena em relação ao poderio material e espiritual das instituições e da grande indústria, pode trazer aberturas imprevisíveis para a criação e a experimentação, seja na ordem das obras de arte, seja nas formas de vida. E mesmo a política de consolidação de uma renda mínima para a população, também pode afiançar a criação dessas aberturas, exprimindo-se em todas as esferas da vida. Esses dois elementos de ordem material reduzem o impacto da desigualdade, ampliando o espaço para a diferença, mas, em contrapartida, gerando conflitos de ordem social, política, ambiental e, por que não, estética.

E, no entanto, muitos de nossos artistas e intelectuais, sobretudo aqueles consolidados no mercado, nos editais, nas vitrines e universidades, continuam a produzir um discurso que oscila estranhamente entre o pessimismo distante e a conciliação arbitrária, respectivamente as formas mais comuns do pessimismo e do otimismo contemporâneos.

Em relação ao pessimismo distante, o pensamento se reveste por uma verniz de seriedade melancólica que legitima a reflexão e se apresenta de forma irresistível ao nosso espírito bacharelesco. Entre a dúvida cartesiana e o spleen, o tom de manifesto de nossos escritos, de vontade de totalização, de enunciação imperativa reveste a grande maioria do pensamento contemporâneo. Como se ainda tivessemos de prestar contas com os dilemas nacionalistas dos anos 30, como se estivessemos fincados não na atualização dos conflitos, mas na manutenção das perspectivas de classe. O “estamos fodidos” constitui apenas mais um reflexo desta tendência, e vem somar-se à “crise da cultura”, a “hora da despedida”, “o fim da cultura”, a radicalidade vazia da militância “nômade”, o mito do “mundo natural”, arcaico, subjacente à antropologia simétrica e sua “arca de noé”, e outros diagnósticos recentes: carregados de um afeto apocalíptico, combinam restrições morais (as muitas formas da culpa e da piedade) com o sentimento multifário do “paraíso perdido” — ou o sentimento residual de que “algo se quebrou” (Caetano via Frederico Coelho). É o nosso velho e atualíssimo sebastianismo de cada dia, à espera de uma solução ou amargando a descrença de que ela, de fato, venha. “Somos os culpados pela nossa derrocada”, mas uma derrocada sem data nem hora para acabar, pois fundamente enterrada em hábitos e perspectivas. Um “estado”, não um estágio (Bergson via Paulo Emílio). Mesmo a comprovada e gradual conscientização de que o modelo sócio-político no qual estamos inseridos esgota pouco a pouco o meio ambiente e a própria política, o caminho a ser tomado seria necessariamente o do niilismo amargo ou o denuncismo desesperado? Dilacerar-se? A arrogância do conhecimento nada pode ou pode pouco contra... a arrogância do conhecimento.

Da conciliação arbitrária, a qual se pode atribuir alguns traços do que costumamos entender como “otimismo”, em parte responsável pela constituição de outras narrativas otimistas, como por exemplo “a geração pós-rancor”, a reificação do presente, subjacente, por exemplo, ao neopentecostalismo, encontra uma certa leitura do agenciamento em Deleuze, positivando os conflitos a qualquer custo — quando, me parece, Deleuze chama a atenção mais para a capacidade de resistência e criação, do que para a conciliação forçada. Estão identificados com estas prerrogativas o tropicalismo crítico (ou pós-tropicalismo), os bioativismos (não só o ativismo ambiental, mas as militâncias por outras formas de vida), as “dobras” da internet, os conflitos e novas individuações geradas pela distribuição de renda e de rede, de grana e de informação. Me encontro em uma posição mais próxima da conciliação arbitrária do que do pessimismo distante. Mas também de toda uma aparelhagem estatal que visa o bem-estar da maioria, condenável por sua comprovada ineficácia, mas que, parece, por aqui, ainda precisa se tornar consistente para ser adequadamente avaliada. Ao afirmar isso, pretendo demarcar uma diferenciação entre o otimismo que deposita esperanças no “vai dar certo”, num acabamento, na realização de uma “nova civilização”, um otimismo teleológico; e um outro otimismo relativo ao “vamos fazer a qualquer custo”, “vamos amar o estranho”, o estrangeiro, vamos cultivar o estrangeiro que há em nós. O primeiro otimismo se resume a uma crença, o segundo afirma, em uma perspectiva possível, a capacidade de ação, mudança e disposição para a mestiçagem radical.

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Navio negreiro. Foto Marc Ferrez.






















A foto acima permite traçar uma linha de interpretação que leva da miséria ao poder transfigurador da ação criadora: o samba, o funk, a comida, as palavras, a disposição à mestiçagem, a cultura. Por outro lado, não se sabe ainda o que os indivíduos podem a partir de uma situação material mais densa e estável. É possível, então, um pensamento sobre o Brasil que abra mão do pessimismo distante e da conciliação arbitrária em favor do imprevisível, do indeterminado, do imponderável? E o que seria esse “indeterminado”, esse alienígena?



Na música, por exemplo, o funk do MC Bin Laden e de MC Carol, o mapeamento que Chico Dub faz com os volumes de Hy Brazil, a reaparição de Krishnanda, os “antiregistros folclóricos” da caixa de CDs Música do Brasil (dirigida por Hermano), a música de Leiteres Leite, a torção dos cânones emepebísticos empreendida pelos paulistas (Metá Metá, Passo Torto, Juçara Marçal), a organização sócio-econômica do tecnobrega, as viradas de bateria eletrônica enlouquecidas do brega de Pernambuco, a “música de ruídos” de Cadu Tenório e Jhones Silva, que faz barulho na Baixada Fluminense…



Nas chamadas “artes plásticas”, destaco “O Globo da Morte de Tudo” ou “Fruto Estranho”, obras de Nuno Ramos que operam mais sobre a transfiguração da ruína do que sobre a sua problematização, obras capazes de colocar um ponto de interrogação ativo, para além da “dúvida” cartesiana, que obriga a optar por um método, e portanto, profundamente comprometida com uma forma de intelecção completamente inadequada para os dias de hoje. As peças de Ramos são capazes de abalar crenças e percepções, convidando o espectador à uma atitude interpretativa, e não para a melancolia sisuda. Para além do pessimismo, mas sem abrir mão da estranheza, do conflito, da agressão.

Fruto Estranho, Nuno Ramos, 2010
































Vejo uma margem de indeterminação no dispositivo-obra de arte, que ao invés de afirmar o “culto da personalidade”, desindividualiza e transindividualiza a obra. Não somente a noção de justaposição entre arte e vida, através de procedimentos que atocham trejeitos “artísticos” a situações cotidianas. Ou entre uma “estética da existência”, na qual a arte serviria de modelo para afirmar a existência. Mas a pregnância cultural e biopolítica de uma técnica nova, de um procedimento imprevisível, de um movimento surpreendente, rico de possibilidades interpretativas e de um deleite particular. A crítica assim não se exerce somente ao nível negativo da crítica política e econômica, da crítica analítica, da crítica hermenêutica ou cultural. Ela pode ser exercida sob a forma de um dispositivo artístico, cuja constituição pode até estar comprometida com a ciranda do curadores, das instituições e dos colecionadores milinonários. Mas seu poder, aquilo que ela pode, não se esgota nessa ciranda.



Não se trata de perguntar qual o dispositivo que possui mais poder de existir e resistir ao capital, como se pudessemos situar problema em uma escala absoluta. Dependendo de uma conjunção de fatores, os Black Blocks podem ser algo bem menos radical do que uma obra do Matthew Barney exposta em Inhotim. Quem pode medir o "impacto social", se a dimensão do "social" se tornou um tipo de grandeza abstrata que mais nivela os termos do problema do que os explica? Podemos encontrar a nós mesmos revestidos por uma consciência luminosa, clarividente, pela moral mais complexa, imbuídos pela força que nos dá a consciência dos limites. Mas seria a nossa capacidade mais fundamental a de detectar e anunciar o desastre? O desastre não seria inevitável? Nossa capacidade fundamental não seria a capacidade de transfigurar e remodelar a cultura? Ou nossas tendências mais radicais clamam por reformas? Se há caminho, este se constituirá a partir do delírio, da subjetividade, da leveza de uma posição singular, criativa e transindividual, de uma duração própria que pode se ramificar em outras atitudes e pensamentos. Não de uma ciência redentora, muito menos de uma ira santa apoiada na certeza das evidências. Ainda falamos de uma "gaia ciência".

Hoist (frame), Matthew Barney, 2006







































A despeito de seus suportes e formas de apresentação, o que diferencia, por exemplo, “Hoist” de Matthew Barney de “Fruto Estranho”, duas obras que problematizam o acontecimento, que conectam e redimensionam objetos cotidianos e heterogêneos, que produzem uma torção que implica na catástrofe? Me parece que é justamente o seguinte: enquanto Barney chora o fracasso do projeto moderno, do capitalismo e seus centauros, Ramos os enxerga sob um horizonte de possibilidade no qual a catástrofe, a tragédia, é matéria-prima para a superação e a afirmação da subjetividade. Como nos sambas de Nelson Cavaquinho, nos quais o autor descreve as maiores atrocidades, os gestos mais vexatórios, mas que são plasmados sobre uma bela forma, capaz de transfigurar a passionalidade em uma força imperativa, criadora. Nossa abundância é biopolítica, não se resume, portanto, às implicações do crescimento econômico, muito menos da "participação política", mas às formas de vida.    

Diante das obras inegociáveis de Nuno Ramos, a última coisa que eu penso é: “estamos fodidos”. E a primeira é “vamos nessa”, “vamoquevamo”, e outras expressões que nascem de um pessimismo sublimado, como uma gíria fresca, nova. São obras que versam sobre a abundância, não sobre a falta, problematizam o futuro como algo indeterminado, independente de otimismo ou pessimismo. Se será bom ou ruim, habitável ou respirável, pouco importa: há que ser novo, radicalmente novo. Não seria o grande desafio para o pensamento brasileiro das próximas décadas dar corpo a esse sentimento alienígena, não somente nas artes, mas também nas formas de vida, buscando problematizar constantemente a pergunta: como pensar o Brasil na abundância?

Bernardo Oliveira





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