segunda-feira, 20 de abril de 2015

A Reforma do Funk: Putaria Contemporânea





















No que diz respeito aos movimentos musicais do século XXI e, em especial, dos anos 10 no qual vivemos, o funk brasileiro merece atenção especial. Não somente devido a sua capacidade ímpar de traduzir, refletir e modificar diversas características da contemporaneidade, mas também à enorme relevância artística que esse movimento apresenta para a música brasileira. Se a saturação das proposições estéticas consagradas na música pop é evidenciada enquanto as mesmas se distanciam de suas possibilidades de atualização, é na reinvenção dos modelos de criação e publicação do material produzido que o funk conseguiu retomar uma dimensão de aproximação criativa com os ouvintes.  No entanto, as abrangentes denominações “funk” ou “funk carioca” devem ser especificadas no que concerne aos seus componentes nominais ou cronológicos. Portanto, admitir-se-á uma configuração estética: o funk produzido incialmente no Rio de Janeiro (e posteriormente em São Paulo) a começar por 2008, mas que se concretizou enquanto tal entre os anos de 2010 e 2014.

Em sua maioria, o funk contemporâneo em questão está imerso ou se deriva da Putaria, corrente estética reformada e reinaugurada por Mr Catra no final dos anos 2000. Concentrando o potencial criativo de suas canções, que nada tem a ver com as noções de unidade ou particularidade, no que parecem ser pontos de convergência e recontextualização, a estética aqui exposta se apresenta interconectada e fluente, numa relação de continuidade direta no que concerne a cada música e sua relação com o todo do estilo. Não surpreende, portanto, que a dinâmica de publicação do material se dê por um intermédio polarizador: a página de lançamentos do Z3. Criado em 2008, o canal do Youtube e perfil do Facebook goza de grande prestígio entre os guias da cena atual, constantemente homenageado nas montagens e medleys periódicos criados por um ou mais Mcs e Djs. A página do Z3 age como um ponto virtual em comum da cena, uma plataforma através da qual a configuração se delimita. É, no entanto, a partir dessa delimitação que os textos gerados dentro da cena circulam, se ressignificam e criam novas abordagens e aspectos de um mesmo verso. 

É evidente que o funk Putaria já vinha se desenvolvendo desde o final dos anos 90 e início dos 2000, tendo como um de seus representantes o Bonde do Tigrão. Percebe-se, no entanto, que com o considerável declínio do Proibidão, não só a Putaria passou a representar a grande parte do contingente de material produzido no funk, quanto a musicalidade da própria se modificou em diversos aspectos. Tanto na incorporação da estética do Proibidão quanto na presença de Mcs provenientes do mesmo para dentro das redes de criação do novo movimento. A transição do funk Proibidão para a Putaria contemporânea consiste, portanto, numa metamorfose musical e poética de grande relevância para a música popular brasileira e, naturalmente, de grande importância para o desenvolvimento da Putaria cotemporânea. Dessa metamorfose criou-se, em particular, uma nova abordagem da relação entre os compositores e suas obras, e a relação que as obras guardam umas com as outras, entre suas singularidades e o todo do estilo, a configuração. É na música de Mr Catra mas que somente na nova geração funkeira – Mc Carol, Mc Magrinho, Mc Gw, Mcs Bw, Mc Nego do Borel - ganham sua forma mais particular e significativa no cenário atual sob a identidade musical dos lançamentos do Z3.



O Proibidão, como explicita o nome, tem como ponto de partida a antinomia Favela x Estado ou Funk x Cultura Oficial. Não surpreende, portanto, que caiba a ele as instâncias do trágico e do épico. O Mc, no Proibidão, é o porta-voz da ética do Comando e a ética da favela. Ele é um símbolo vivente, é o poder que nasce do não-poder e que convoca o público para a identidade na resistência. Nessa relação, portanto, a expressão do funk se cria exatamente enquanto embate de potências, dentro do âmbito concreto-histórico. O absolutamente diferente é o motor inicial, o ponto de partida para a exaltação bélica e ética do Poder Paralelo. A ética do Proibidão – amálgama do Comando e da Favela – é a ética do Poder. No entanto, é o sofrimento que precede e possibilita esse poder em primeiro lugar. As imagens proclamadas por Mc Smith em “Vida Bandida” exemplificam o simbolismo citado:

Nossa vida é bandida e o nosso jogo é bruto,
hoje somos festa, amanhã seremos luto.
Caveirão não me assusta, nós não foge do conflito,
nós também somos blindado’ no sangue de Jesus Cristo.”

Fica evidente, portanto, que o ponto central do Proibidão enquanto fenômeno cultural consiste na reivindicação de subjetividade por parte da favela frente à reificação marginalizante do Estado e da cultura oficial. Em Vermelhão Faixa de Gaza, de Mc Orelha, os versos “Não somos fora da lei, porque a lei quem faz é nóis/ Nóis é o certo pelo certo” explicitam mais uma vez que a autonomia ética e moral do eu lírico parte da negação de uma condição imposta a priori. Diferentemente da trova criminal do cangaceiro Volta Seca, por exemplo, o funk de Mc Orelha ou Mc Frank glorifica sua ética baseada na instauração de novos valores morais que se opõem pragmaticamente aos valores que os aprisionam na pobreza e na marginalidade. Portanto, ainda que ambos se reconheçam como opositores de uma moral vigente, ou seja, como foras da lei, no Proibidão existe a perspectiva de emancipação da marginalidade através da instauração de novos poderes bélicos e institucionais. É, também, indissociável da característica ética, guerreira e institucional do Proibidão as sonoridades secas e concretas do estilo em geral: a predominância da voz como principal meio de expressão, suas entonações exclamatórias e as batidas cruas (normalmente derivações simplificadas dos experimentos de Grandmaster Raphael, Dj Luciano, entre outros) repletas de samples de armas e outros que contemplem os temas abordados – um exemplo significativo é a narração tirada do Jornal Nacional utilizada em Retorno dos Cria de Vigário Geral, de Mc G3, referente à invasão em questão

Em 2010, no entanto, com a intensificação do projeto estadual do Rio de Janeiro conhecido como UPPs, um acontecimento marcou a transformação da conduta principal do funk. A prisão ilegal dos Mcs Frank, Ticão, Smith e Max foi um episódio chave no processo de ocupação cultural das áreas dominadas pelo Poder Paralelo. Ainda que os mcs tenham recebido seus alvarás um pouco mais de uma semana após a prisão, o processo de desconstrução do funk proibido que já se fazia presente desde 1999 com a “CPI do funk”, fez-se ainda mais evidente. Ainda que não inteiramente, as áreas de fronteira entre a favela e o asfalto foram apropriadas pela força do Estado, destruindo pilares da constituição do Proibidão, e parte considerável da produção funkeira migrou as suas inquietudes e potências para outras instâncias de expressão e realização.

É nesse momento que, como desejo explicitar, as figuras de Mr Catra e a nova geração funkeira se tornam centrais. Tanto na invenção de uma nova expressividade que o estilo assume quanto na instauração de uma vanguarda musical propriamente dita, a Putaria carioca retrata a digitalização e a possível descontextualização física do funk. Na decadência do Proibidão, marcada pelas prisões ilegais citadas, sob a influência das alternativas pontuais aos seus moldes clássicos e a dinâmica efêmera e associativa da linguagem digital, Mr Catra instaura uma estética singular e dá o sinal de partida para uma nova era da Putaria e do funk. Sua enorme influência é irrevogável e explicitada na nova geração funkeira. Não somente o criador da mais disseminada batida da Putaria moderna, o beatbox que, hoje, é a característica principal do estilo, Catra também instituiu uma nova estética de maneira determinante, tanto musical quanto poeticamente.



Desde 2008, quando foi lançada a música Vai Começar a Putaria, é possível perceber as mudanças de diretriz que o movimento vem apresentando. Se o Proibidão era marcado por uma linguagem simbólica, construções frasais imperativas e exclamatórias e batidas secas e diretas, a Putaria de Mr Catra inaugura outras bases, poéticas e musicais. Os samples e loops se tornam mais complexos e coloridos e a abordagem poética se desvencilha das referências narrativas e éticas do Proibidão. Sobre o funcionamento da temática sexual do funk e seus desdobramentos, afirma o musicólogo Carlos Palombini:

”A sexualidade mirabolante do funk carioca é uma fantasia, tão mais efetiva quanto mais distante da realidade, quanto mais derivativo e musical o sentido que lhe seja atribuído. Os expletivos e gemidos da Putaria são decompostos, recompostos e repetidos na exploração dos recursos do instrumentário eletrônico, isto é, no exercício daquela engenhosidade na distribuição dos restos da qual depende o sucesso do baile e o estatuto de músico do artista.”  

É interessante perceber, no entanto, que apesar do desvencilhamento institucional da Putaria, não se desenvolve em Mr Catra, como exposto na observação de Palombini, uma desconstrução da dependência da música do fenômeno do baile. Por mais que a linguagem associativa e fantasiosa em suas Montagens de 2009 e 2010 já se mostre como uma instância essencial na metamorfose do funk atual, não existe uma descontextualização dos fragmentos linguísticos com relação ao baile funk. O distanciamento paulatino que se observa ao longo do desenvolvimento desse momento da Putaria se evidencia, em especial, na música de Mc Carol e nas diversas montagens, sucessagens, medleys da página do Z3.  Influenciada, conscientemente ou não, pelas contundentes proclamações de Mc Magalhães e suas quebras gramaticais e morfológicas e a transposição das estruturas do Proibidão para uma temática de Putaria da Chatuba de Mesquita, Mc Carol parece inaugurar a combinação de diversos aspectos fundamentais à Putaria contemporânea: a linguagem conjuratória de fragmentos eróticos, a agressividade cômica, os arranjos frenéticos de samples sobrepostos e ritmos inconstantes e a descontextualização da Putaria. Em Mc Carol não são apenas versos acerca da sexualidade que, através do seu esvaziamento semântico, se desmembram sob ritmos intensos e inconstantes. Suas confissões, crônicas, desabafos e delírios, sob a estrutura (ou anti estrutura) poética e musical do movimento em questão, criam aberturas e rupturas no próprio.



Que o funk já é a expressão musical mais significativa em termos de popularidade no sudeste do Brasil é incontestável. Nota-se, paralelamente, que ele também apresenta uma nova etapa na música popular brasileira, tanto nos quesitos de musicalidade propriamente dita quanto na apreensão das obras por parte do público. Ignorá-lo ou, talvez até mais equivocadamente, encará-lo sob o rótulo de “rap brasileiro” é, em 2015, uma perda. Sua dimensão e originalidade quebram as supostas barreiras do registro popular e dão a pensar a outrem. Entender o funk é criar e reinventar, dilacerar seus gritos e gemidos para recompô-los fecundamente, como o próprio nos ensina a fazer.

Projeto Funkadélico
O projeto Funkadélico, que surgiu no final de 2012, tem como objetivo principal apresentar as músicas que deram a base para que o desenvolvimento do funk em questão fosse explicitado. Mais precisamente, no final do primeiro volume, é com a sequência explosiva do Ao Vivo no Catarina, de Magrinho e Fhael, que o funk pós-Mc Catra começa a ser contemplado nos seus infinitos desdobramentos: a originalidade ímpar e exemplar de Mc Carol, a interpretação vocal clássica de Mc Magrinho, a influência do pagode atual através das improváveis e sutis melodias de Mc Gibi, a exploração técnica e profunda das formas fixas da “Putaria” contemporânea dos Mcs BW, o natural e incansável ecletismo de Mc GW, o humor desconcertante de Mc Nego do Borel, os múltiplas tonalidades e arranjos da época do volume IV nos Mcs Andinho do Rodo, Roba Cena e Tikão e os ecos e cadências minimalistas de Mc Galáxia no volume VI, entre outros. Sob a influência da página de lançamentos do Z3 do Youtube, o Funkadélico pretende expor um pouco do “zeitgeist” do funk atual e, consequentemente, da música brasileira em um de seus mais permeáveis e incisivos gêneros.

Gabriel Marques

3 comentários:

Unknown disse...

Muito bom mesmo!
Obrigado pelo artigo!
Sabe, pra mim é muito valioso ler isso, ver esse tratamento dado ao funk.
A música contemporânea brasileira é incrível mesmo.

febraosk8 disse...

Foi se o tempo de ter funk bom , mc marcinho , claudinho e buchecha época da furacao 2000 era muito bom hoje em dia esculacham com as mulheres e mesmo assim elas gostam e pau na xereca xereca no pau 😂😂😂😂

Canto disse...

É um texto complexo. Eu li muitos parágrafos vendo ironia, em outros o argumento é tão forte que parece mesmo apoiar. De fato, esse estilo de música tem uma razão de existir hoje, no futuro vão surgir muitos textos eloquentes, como esse, conseguindo relacionar esse movimento como um fator histórico cultural relevante. Contudo, eu preferiria ser contemporâneo de um movimento musical mais "bossa nova", onde os cantores sabem cantar as letras nos fazem pensar.