Para manter a escrita, compareceu à apresentação do Tinariwen, grupo tuareg do Saara, dentro do festival Back2Black, na Estação Leopoldina, no último 26 de agosto, o paraquedismo vocacional que parece definir em muito o perfil da audiência de shows de artistas estrangeiros – relativa ou inteiramente – desconhecidos que aportam no Rio de Janeiro. A julgar pelo comportamento de parte expressiva do público que compareceu ao show que fez parte da agenda carioca do grupo liderado pelo enigmático Ibrahim Ag Alhabib, o que não era claro e ofensivo desprezo pelo que se passava sobre o palco (gritos de “Macy Gray! Macy Gray!” – artista a se apresentar na sequência – ouviam-se incomodamente), soava apenas como curiosa expectativa por um exotismo kitsch de terceira ao qual, nossos homens em Bamako, em nenhum momento, quiseram corresponder. Queríamos crer que São Paulo os recepcionaria diferentemente, até sabermos que o grosso do público presente a sua apresentação no Bourbon Street Music Club, meio que repetindo o Rio, estava mesmo lá pela atração que fecharia a noite: o soulman contemporâneo Aloe Blacc. Só ignoramos se as manifestações de impaciência e rancor foram no mesmo diapasão que as registradas entre o público carioca...
Porém, no Rio, os músicos nômades do Saara multifronteiriço, e por isto, sem nacionalidade formal definida (eles tanto podem ser originais do Mali, Níger, Argélia etc), comprovaram pairar acima de tudo isso. Bastou adentrarem o palco para provocarem um semi transe de por volta de uma hora, mestres que são na arte da Distância e do Alheio. Sorte dos que se deixaram hipnotizar. No seu palco, tudo compõe a cena visual-sonora do Sahel: a clássica indumentária de turbantes que praticamente só deixam os olhos à vista, danças hipnóticas, dedilhados que davam a partida em todas as músicas etc. Mas talvez apenas os iniciados no grupo tenham dado pela falta das backing vocals e seus trêmulos trinados.
Por que evocar tudo isso no início de um texto destinado a analisar criticamente Tassili, o último álbum do Tinariwen? Mais do que recriminar certos equívocos da recepção em geral ao tipo de música do grupo, entre nós, busca-se, aqui, compreender a surpresa que Tassili consegue provocar no seu público ouvinte, por mais atento e seleto que este possa – ou se julgue – ser.
Em Tassili, o flerte com a atualidade pop/rock é avalizado por algumas parcerias interessantes. (A veterana Orchestre Poly-Rythmo, de Benin, ano passado, talvez tenha lançado a tendência desse encontro geracional/intercontinental ao convidar Paul Thomson e Nick McCarthy, do Franz Ferdinand, para uma grata participação em “Lion is Burning”, última faixa do seu último disco de estúdio, Cotonou Club.) A primeira parceria, em Tassili, é em “Imidiwan Ma Tennam”, que abre o disco trazendo Neils Cline, guitarrista do Wilco. A terceira faixa, “Tenere Taqqim Tossam”, conta com o vocalista Tunde Adebimpe e o guitarrista Kyp Malone, do nova iorquino TV On the Radio. Sem pudor – e por que deveria tê-lo, se mencionaremos, agora, uma referência fundamental? – Adebimpe pastichiza o vocal de Damon Albarn (Blur, Gorillaz, The Good, the Bad and the Queen), não coincidentemente idealizador de Mali Music, projeto de 2002 em que se pôs ao lado de músicos provavelmente conterrâneos da maioria do line-up do Tinariwen. Demérito algum nisso, afinal, tal aproximação demonstra que Adebimpe é capaz de um registro que foge ao inusitado do timbre e das inflexões soul que caracterizam o vocal à frente da massa instrumental do TV On the Radio. Além de dar prova de versatilidade, também sugere que dispõe de uma discoteca digna de consulta. Na quarta faixa, “Ya Messinagh”, os convidados do Dirty Dozen Brass Band, de Nova Orleans, sopram na medida. Não é mesmo à toa que o Tinariwen venha sendo saudado por medalhões tais como Santana, Robert Plant, Bono e o próprio Damon Albarn. Em tempo: a delicadíssima “Walla Illa” não tocará na sua estação predileta. Azar o seu.
O material promocional do lançamento de Tassili traz um depoimento de Albarn que diz não ser necessário dominar o tamashek, o idioma tuareg, para perceber a densidade do seu conteúdo sonoro. (Impossível não concordar. A saber: a maioria das letras versa sobre a resistência da cultura tuareg, e a desolação poética que o Saara inspira – há tradução para o inglês, no encarte do CD.) Mas também se diz, no release de Tassili, que o grupo volta a abraçar as raízes da sua cultura musical por se tratar de um trabalho predominantemente acústico, ao contrário dos álbuns anteriores, em que, supostamente, as guitarras e os arranjos mais para o rock assomam. Que se diga: não é isso. Por antítese, lembremos mais uma vez das parcerias, neste álbum, com artistas que compõem o que há de mais contemporâneo dentro da cena contemporânea (talvez mais no sentido estético que cronológico). No caso do “blues do deserto”, gênero assim batizado para definir a sonoridade do Tinariwen e congêneres, tais como Group Bombino, Group Doueh, Group Inerane etc, a tradição está sempre lá. Tal é a singularidade desta tradição musical de tão árida paisagem – com um padrão rítmico e uma estrutura marcada por pausas abruptas e a retomada da linha melódica, sempre na mesma toada –, que fica invalidado, por gasto, o argumento do regresso às origens. A guitarra é um instrumento fundante dessa cultura musical, não importando qual o rótulo que esta receba. Que ela seja produto da modernidade, não se questiona, por razões lógicas (o Tinariwen foi formado em 1979), mas o que é curioso é que ainda se fique insinuado, em comentários assim, mesmo que involuntariamente (e, claro, é este o caso), que ainda possa haver, por aí, uma essência musical impermeável à “má influência” deste artefato ocidental, cuja permissão – ou não – de uso, já foi tema de tanto debate rasante e inútil, nos 1960, em cenas como a da dita MPB, ou do folk norte-americano. Naturalmente, a opção pelos arranjos acústicos em Tassili explica a suavidade do momento atual do Tinariwen (seu líder trocou o violão pela guitarra no último quarto do show, no Rio), mas onde o folclore entra nisso é questão para se deixar mesmo aos raciocínios mais à mão. Portanto, quanto a essa questão de que, do ponto de vista formal, as raízes do Tinariwen estariam mais preservadas neste álbum, só podemos mesmo dizer, delas, que são tão fugidias ao nosso conhecimento quanto o itinerário dos seus supostos “guardiões” pelas infindáveis dunas do Sahel. O que, queremos crer, só confere mais interesse ao material que ouvimos.
Os vocais do grupo estão mais brandos e afinados que nunca em Tassili – a contenção de Alhabib ao microfone revela controle total sobre tudo o que paira ao seu redor. Os fraseados invariavelmente rotulados como “mântricos” pela crítica, o tempo peculiar da percussão enxuta, reduzida ao essencial, e a referida disposição em não corresponder ao anseio por exotismo por parte do mercado musical no qual cada vez mais o grupo vem ingressando, dentre outras particularidades, estão todos no álbum, a comprovar a fidelidade de sempre à sonoridade do Tinariwen. Um dado curioso: as sessões de gravação de Tassili foram realizadas numa região do Saara dentro da fronteiras da Argélia, e não no Mali, como se pretendia originalmente, por uma questão de segurança para com os músicos convidados.
Mas eis o que queríamos dizer desde a primeira linha do texto, e talvez não tenha ficado tão claro: baixem ou comprem Tassili. É mais que fundamental.
Lucio Branco