segunda-feira, 26 de março de 2012

(crítica - disco) Gal Costa – Recanto (2011; Universal Music, Brasil)
























“Viver é um desastre que sucede a alguns.” Tomo o verso escrito por Caetano Veloso como um elogio ao amor fati, um canto de júbilo pela existência, pela singularidade da arte, pela vida em seu caráter multiforme. Ora, em que consiste o “desastre” se não na própria incongruência entre o caos e a forma, restando somente o ímpeto de conferir sentido a um turbilhão que nos é, antes de mais nada, indiferente? Neste caso, o desastre não possui o significado de “catástrofe”, mas de algo que irrompe inevitavelmente, de um acontecimento inexorável. Aqui, Recanto quer dizer "re-cantar", refazer, recompor...

O primeiro álbum que Caetano Veloso produziu para Gal Costa, Cantar (1974), com Perinho Albuquerque, se inscrevia no refluxo londrino, a partir do qual ele e Gilberto Gil reconfiguraram suas posições no cenário da música brasileira. Lá se pode escutar a mistura de estilos (bossa, rock, soul, fado…) que caracterizou o Tropicalismo, bem como os compositores afinados com o mesmo legado (Donato, Jobim, Péricles Cavalcanti, Carlos Lyra, Mautner). Porém, percebe-se uma diferença importante. Nos primeiros discos, Gal experimentava consideráveis variações de registro, ora investindo na economia singela de Domingo (com Caetano, 67), ora esbanjando vigor e uma certa ironia, como nos dois discos homônimos de 69 e Le Gal, de 70. A pluralidade de interesses cara ao Tropicalismo contaminou seu canto até explodir no verdadeiro acontecimento que foi Gal a Todo Vapor, disco e show.

Ocorre que em Índia e, adiante, Cantar, estas variações deram lugar a uma estabilidade estilística, que conjugava seu timbre melífluo com energia e força de expressão. Pode-se dizer que até início da década de 90, o canto de Gal Costa manteve-se nesse registro, sem prejuízo para bons álbuns como Gal Canta Caymmi (1976) e Água Viva (1978). Desenho essa genealogia de seu canto para sublinhar algo que parece ter passado desapercebido em relação a Recanto. Muitos foram seus produtores, de Manoel Barenbein a Arto Lindsay, de Mazolla a Morelembaum, de Perinho Albuquerque a Waly Salomão, entre outros. Mas o canto de Gal Costa, me parece, sempre foi e ainda é um assunto para uma única pessoa: Gal Costa. 

Desta lista de produtores, o mais ousado e criativo é, sem dúvida, Caetano Veloso, que até por conta do laço de amizade, conhece sua biografia, compreende seu pensamento musical, o estágio no qual se encontra sua voz e, sobretudo, aquilo que Gal Costa de fato quer cantar. Em entrevistas, ambos manifestaram receio em relação à proposta de Recanto, cuja sonoridade se encontraria em sintonia com duas importantes cenas contemporâneas: a produção eletrônica e o improviso instrumental. Pela primeira vez em muitos anos, um trabalho de Gal Costa retoma o espírito experimental comum aos discos dos 60 e 70. Mesmo em relação a seu último disco digno de nota, O Sorriso do Gato de Alice (1993), produzido por Arto Lindsay, Recanto sobressai, pois trata-se não só de uma investida em outras sonoridades, mas na própria concepção estética de intérprete.  

As programações eletrônicas enxutas, contribuição fundamental de Kassin, casam perfeitamente com seu timbre grave e metálico, qualidade perceptível nas duas mais belas faixas do disco, “Recanto Escuro” e “Tudo Dói”. Além da presença de instrumentistas do calibre de Donatinho (teclado), Alberto Continentino (contrabaixo), Pedro Sá (guitarra) e Luis Filipe de Lima (violão de 7 cordas), Recanto conta com duas bandas cariocas especializadas em improvisação: o Rabotnik, no blues anômalo “O Menino”, e o Dupplex de Bartolo e Léo Monteiro na melancolia visceral de “Madre Deus”. Há que se notar também a inserção bossanovista da sugestiva “Mansidão”, com Morelembaum e Daniel Jobim. Recanto se afirma na harmonização entre universos aparentemente  distantes, mas que são singularmente unificados pelo canto de Gal.

Em termos temáticos, tal qual o último disco de Chico Buarque, o momento pessoal forneceu a matéria-prima a partir da qual Caetano elaborou as letras, misturando olhares e perspectivas: Caetano olhando para Gal em “O menino”, Gal respondendo a Caetano em “Recanto Escuro”, os dois se entreolham em “Mansidão” (que retoma a prática do canto como tema, tal qual em Cantar) e riem juntos no suingue sagaz de “Miami Maculelê” – cujo pulo do gato é o prato do samba de roda se fazendo de hi-hat do funk. 

Por fim, a visão segundo a qual Recanto é um disco “eletrônico” é evidentemente equívoca, mero subproduto do jornalismo e do marketing. Em Recanto, sobressai a forma do canto de Gal, criativamente adaptado a um cenário tomado por uma certa melancolia, pela batucada robótica e um conjunto de canções perceptivelmente esgarçadas pela intenção de dialogar com a aridez dos arranjos – às vezes nos lembramos de Third, do Portishead, outras da “cristaleira digital” de Björk...

Explorando nuances, alturas e possibilidades no registro mais grave, no sussurro, na exploração simbólica dos efeitos (como em "Autotune Autoerótico"), ou nas entonações minimalistas de “Neguinho” e da soturna “Sexo e Dinheiro”, Gal, mais uma vez, reinventou-se a si mesma. Sim, viver é um “desastre” que nos leva a experimentar encontros, máscaras e identidades. “Só deus sabe o duro que eu dei”, ela canta pelas palavras de Caetano. Ou seria Caetano poetizando, “palavreando” o canto expressivo e inigualável de Gal Costa? 

Bernardo Oliveira

sexta-feira, 23 de março de 2012

Minicrônicas Discográficas #15






















Negro Leo – The Newspeak (2012; s/g, Brasil)
Na primeira ocorrência no Matéria do nome de Leonardo Campelo, mais conhecido como Negro Leo, recorri a exemplos de performers espasmódicos, agitados: James Brown, Iggy Pop, Fela Kuti foram os nomes que me ocorreram, não propriamente pela música, mas, sobretudo, pelo grito estilizado e a performance enérgica. Isso foi no ano passado, mais precisamente no mês de outubro e Léo se apresentava ao lado do Chinese Cookie Poets. Recentemente tomei conhecimento do seu primeiro trabalho solo, um EP com seis músicas batizado como The Newspeak. A conjunção dos fatores me levou a crer que poderia se tratar de um disco de spoken word, aditivado com o mesmo vigor daquele outubro distante… Lêdo engano! Ao invés de suingue e energia, Negro Léo apostou num caminho menos óbvio. Suas referências não se constituem a partir do legado “funk brother soul”, nem do samba, mas da perspectiva de canções, cujo caráter mais evidente é a conjunção de sofisticação harmônica e letras simultanemente naïves e perturbadoras. A banda, formada por Pedro Dantas (baixo), Daniel Fernandes (bateria) e Vitor Barros (guitarra), lembrando o trio Lanny Gordin, Moacir Albuquerque e Tutti Moreno, entra na onda com instrumentações soltas, como se pode observar na beleza bruta de “A Moda e Novo Homem” e “Patrya”. Com seu canto meio bossanovista, meio irônico, ressalta o nonsense romântico na intimista “Autoestudo 2” (“Saímos ela, eu e Satanás / Pacifistas/ Para orgulho do Deus do Big Bang/Lindos, usamos mais drogas que soldados no front…”) e a conjunção aleatória da letra e da melodia de “Cry Us River” (“E curto a pedra lascada/Vou ficar por aqui e rezar por você/Porque não haverá salvação/Para as almas refugiadas em astronaves/nem presente algum no Olorum”). Solapando a base harmônica de suas canções e alvejando-a com acordes dissonantes, improvisos e escalas pouco ortodoxas, Leo evoca o jazz dos anos 50 (em “Jovem-Tirano-Príncipe-Besta” e “The Newspeak”), a espontaneidade da instrumentação tropicalista pós-70 e o blues truncado e expressivo de Captain Beefheart. Mas aponta, antes de mais nada, para a possibilidade promissora de firmar-se como um “cantautor” singular, na linhagem de Itamar Assumpção e Jards Macalé, descartando os ecletismos vazios de uma "emepebê” moribunda e engrossando os argumentos contrários a um suposto “fim da canção”. Em suma: não é música para boi dormir.


Keiji Haino, Jim O'Rourke, Oren Ambarchi – いみくずし Imikuzushi (Black Truffle/Medama Records, Austrália [EUA/Japão])
O trio em questão chega a seu terceiro álbum, após duas incursões ao universo da “improvisação com acabamento sonoro”, Tima Formosa e In a Flash Everything Comes Together As One There is No Need For a Subject, respectivamente de 2010 e 2011. Nestes casos, ainda que conte com os habituais títulos enormes, as faixas se iniciam com volumes mais baixos e desembocam em longas sessões de depredação sonora. Mesmo nos momentos carregados pelo timbre feminino de Haino, o clima é de tensão durante todo o tempo, seja porque a barulheira está para começar, seja porque os trechos climáticos excedam a mera introdução e funcionem como uma espécie de prenúncio do caos. Dos três álbuns, ainda prefiro a variedade e a delicadeza de Tima Formosa, até porque, do ponto de vista formal, In a Flash… e Imikuzushi são bastante parecidos. Mas não há como negar o prazer de escutar o que três músicos do calibre de Haino, Ambarchi e O’Rourke ainda podem fazer com nossos ouvidos.


Bellows – Reelin' (2012; Entr'acte, Reino Unido [Itália])
Apesar da obra aqui em casa, pude escutar com muito prazer esta bela parceria entre os italianos Nicola Ratti e Giuseppe Ielasi. O duo Bellows opera com ênfase sobre o campo de interesses de Ratti, mas por redução de elementos e a partir de um trabalho admirável com volumes. Trata-se de um trabalho lento, silencioso, mas animado por uma série de detalhes. Não que Ielasi também não seja dado às abstrações quase visuais de Reelin’, mas em seus álbuns podemos adquirir um referencial mais consistente para entender as tramas particulares tecidas por uma combinação esdrúxula de field recordings, sintetizdores e instrumentos "mascarados" – isto é, que parecem, por exemplo, uma percussão, mas pode perfeitamente ser um som sintetizado. Disco repleto de minúcias, recomendado para quem gosta de ouvir música nos fones. 

Ouça "05".

Bernardo Oliveira


Moskra – Moskra EP  (2012; IDM Netlabel, EUA)
O autointitulado primeiro EP do artista Moskra traz doses maciças de peso e escuridão para a IDM Netlabel. Trata-se de um álbum bem mais soturno do que os demais artistas do catálogo da IDM, portanto, esteja preparado para o uso intenso de sub graves e batidas que privilegiam o kick com uma forte inspiração no 2step. Apesar do jeitão truculento e da cara de poucos amigos, trata-se de um disco cheio de ritmo e altamente dançante, que pode agradar aos fãs do selo Hyperdub e post-dubstep em geral.

Baixe o EP em formato MP3 ou FLAC, direto da página da IDM Netlabel.


Total Abuse – Prison Sweat  (2012 [2011]; Calico Grounds, EUA)
O Total Abuse é uma das bandas responsáveis por trazer de volta à tona a influência da velha escola do hardcore oitentista, acompanhado por uma muralha de feedback e intensas (e raras) performances ao vivo. Prison Sweat é o terceiro álbum da banda, alternando entre curtas faixas punks e faixas que beiram o experimentalismo sludge, bebendo da fonte do Black Flag da fase "My War", do scum punk proposto por GG Allin e do cenário noise estadunidense. Versão em formato cassette para o LP lançado originalmente em 2011 e atualmente fora de catálogo, foi relançado pelo selo Calico Grounds em formato cassette, limitado a 500 cópias. 





Dylan Ettinger - Lifetime of Romance (2012; Not Not Fun, EUA)
O novo disco de Dylan Ettinger, Lifetime of Romance, já se encontra disponível para compra no site do selo Not Not Fun (http://notnotfun.com/now.html). O artista já havia disponibilizado o single "Wintermute", faixa que flerta com o synth-pop e a minimal wave, influências adaptadas ao estilo próprio desenvolvido por Dylan ao longo de sua carreira. Compre o cd e, enquanto ele não chega, ouça "Wintermute" na página da FACT Magazine.




Thiago Miazzo