segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Scott Walker – Bish Bosch (2012; 4AD, Reino Unido)



























“If shit were music,
you’d be a brass band…”
[Scott Walker, “SDSS1416+13B (Zercon, A Flagpole Sitter)”]


I. “sonic fiction”

Dois aspectos se encontram intimamente ligados em Bish Bosch, novo trabalho de Scott Walker. Primeiramente, é o estatuto do corpo, problematizado através de uma relação determinada entre os sons e as palavras. Os sons dos corpos (peidos, suspiros, gemidos), mas também a conexão entre os diversos corpos, sejam históricos, biológicos ou culturais. Em segundo lugar, é a dimensão teatral da vida que nos permite traçar contornos e conexões atemporais com tudo o que lhe diz respeito, desprovida de distinções radicais entre a natureza e a cultura. O corpo e o teatro: se há hoje um autor capaz de produzir a convergência entre as múltiplas possibilidades evocadas por esta relação, este autor se chama Scott Walker e Bish Bosch é um espaço privilegiado para que elabore sua obra-prima.

Em uma entrevista recente, realizada em virtude do lançamento do disco, David Toop advertia o leitor para o conteúdo esfíngico da trama: “Bish Bosch is not easy to get into, but why should it be?” Para ele, a senha para a complexidade se dá a partir da contradição, característica que dificilmente se pode negar diante das faixas do disco: “…a lot of contradictions (…) there are no mysteries solved.” Ora, mirando atentamente para “O Jardim das Delícias Terrenas”, a obra mais conhecida do pintor holandês Hieronymus Bosch, pode-se tomar consciência do mistério a que se refere Toop. Tal concepção do mistério subjaz sua trama poética, em particular com relação aos procedimentos estéticos e ao tema das relações imprevisíveis entre os corpos, sejam territoriais (Dinamarca, Hawai, os Alpes), culturais (os gregos, Roma), míticos e humanos (Gorbachev, Átila, o Huno). Não dizendo respeito ao mito encoberto, nem ao assassino oculto, o primeiro mistério de Bish Bosch é o corpo em suas mais variadas relações— “o que pode um corpo…”, perguntava no século XVII outro holandês, Baruch de Espinosa. 

Por outro lado, guardadas as devidas proporções de tempo, intenção e consistência, Bish Bosch indica uma inclinação semelhante a que perfaz Tragedy (2011) de Julia Holter. A obra de Holter obtém uma estrutura própria em diálogo com a tragédia grega Hipólito, de Eurípedes, ao passo que Bish Bosch se constitui a partir de um efeito semelhante. Pode-se extrair deste parentesco a consolidação de uma certa inclinação contemporânea à busca de referências e matéria-prima fora do espectro da produção musical — tanto em relação aos procedimentos de produção, como no que diz respeito às perspectivas conceituais e filosóficas. Ou, em último caso, podemos falar de uma obra atenta ao teatro como metáfora da vida, um teatro que convoca o leitor a reconstituir, à sua maneira, as imagens cifradas pelo autor. Com a característica diferencial de partir não de uma obra somente, mas de uma miríade de referências que vão desde o pintor holandês que contribui para o título, passando por diversos períodos históricos, considerações e metáforas a respeito da história recente, da biologia molecular, das ciências médicas, da Bíblia…
















II. “…a lousy a life”

Assim que se inicia Bish Bosch, o tom de precaução que batiza a primeira faixa se agiganta. Os tambores retumbam violentamente, servindo de prenúncio às reviravoltas climáticas que se anunciam. À moda de um ditirambo dionisíaco, “See You Don't Bump His Head” se concentra sobre a imagem dissonante que se manifesta nos versos do coro:

“While plucking feathers
From a swan song…”

Alguém pode interpretá-los como uma consideração irônica do autor, com a intenção de anunciar que está mais vivo do que nunca. A imagem sugestiva, a própria consideração depositada sobre a imagem de um “canto do cisne depenado”, indica que podemos ir além. Na sequência, os primeiros versos de “Corps De Blah?”, indicam que trata-se não de um processo de reação ou redenção, mas de algo que se debate conflituosamente, algo que aponta para uma inclinação subterrânea, simultânea à morte e à fundação imaginária de mundos possíveis. Algo, enfim, que joga um lance de dados com o abismo e aponta para a instabilidade perigosa entre o estado de vigília e a inconsciência: 

“Hence went and cracked
An atom age old egg
Beneath my nose,
The sky-clads ash 
With jettisoning the roost.
I’m bumping into leghorns in the darkness.
Excuse me.
Dear god, excuse me…”

Um ovo quebra, dentes queimando, machados de lâmina dupla, genitália. Ao longo da audição, percebe-se que o autor convoca os sons, os músicos, as palavras e até mesmo o ouvinte-leitor para experimentar das agruras e delícias de suas alegorias, ainda que esse convite os conduza inevitavelmente a experiência-limite do fígado devorado incenssantemente pelo reino dos mitos e das coisas. Em contrapartida ao chamado geral, a consciência individual como que se esvai…

“A sphincters tooting our tune.
If only ‘I’ could pick you.
Wed slosh, wed slide, wed cling
round a kelloggs floor.
His severed, yellow-eyes 
Weeping DA-DA-DA, DA-DA-DA.
From the spit-roast smoke curling.
DA-DA-DA
DA-DA-DA.
‘RACK OFF!’”

Não são apenas os sons de peidos que eclodem, a castigar o gosto e o senso histórico do ouvinte (afinal, já não estamos no século XX…), mas acima de tudo a emersão do palavrório, das entrelinhas, torrentes de palavras e entrepalavras de sentido fluido e maleável, que promovem uma experiência poética radical. Contribuem para a empreitada, a canção de Purcell e Kurtag, Os Cantos de Ezra Pound, as imagens tenebrosas de Lautréamont e da terra devastada de Eliot, o heavy metal, o samba e uma utilização dos instrumentos que remete à experimentação ao mesmo tempo onírica e realista da musique concrète. Além de Walker himself, o bardo…
















III. “job done”

Bish Bosch começou a ser escrito em 2009, enquanto Walker compunha a trilha para o balé Duet for One Voice da companhia ROH2. “Bosch” se refere ao célebre pintor holandês; “bish” é corruptela de “bitch”; mas, no geral, “bish bosch” quer dizer “job done”, “trabalho finalizado”. Acrescente-se a esta informação, uma derivação mítica cunhada pelo próprio Walker: “I was thinking about making the title refer to a mythological, all-encompassing, giant woman artist.” Revestida pela força poética do mito, emerge a figura de uma “mulher artista gigante”, capaz de reaver a sensação de poder e redenção diante de um mundo que apodrece a olhos vistos. Preconizada de forma delirante pelo artista a partir de uma expressão cotidiana, a “mulher gigante” também se impõe como efígie de um mundo natimorto, que se movimenta à custa de sobressaltos, tragédias, genocídios — e “alguma literatura”… Como Bosch, mas também como Rembrandt, o corpo humano é elemento de tenebrosas operações que circunscrevem o corpo doente e moribundo da natureza, da ciência, da cultura e, é claro, da arte.

Produzido por Peter Walsh, Bish Bosch foi gravado por Ian Thomas (bateria), Hugh Burns e James Stevenson (guitarras), Alasdair Malloy (percussão) e John Giblin (baixo), além de contar com as participações de Guy Barker (trumpete) e BJ Cole (pedal steel). As orquestrações são de responsabilidade do diretor musical e tecladista Mark Warman. Instrumentistas comprometidos, primeiramente, em levar a cabo uma iniciativa de cunho sonoro: “os sons vestem as palavras” (“It's just dressing the lyrics”). Não estamos diante de arranjos que vestem canções, mas de uma pesquisa sonora em franco diálogo com as evocações da poesia delirante de Walker. Para fruir a riqueza de Bish Bosch, convém ao ouvinte entregar-se com atenção ao percurso, como quem se entrega a uma experiência entre a performance e a literatura. A cada instante uma modulação situada entre o caos e o silêncio, mas, na maioria das vezes, manifestando confluências inusitadas entre sons e palavras. 

Em “Corps de Blah”, por exemplo, as referências bíbilicas misturam-se a estranhas alusões às ciências médicas (“Eukaryotic gobbler of gavotte, knee to…”), considerações acerca de Tyrol, estado austríaco para onde foram muitos criminosos da segunda guerra (“vacant veins of Sterzing…”), uma série de referências a objetos, sensações, sinestesia radical. Para revestir os versos, Walker e sua banda recorrem a uma série de artifícios e texturas com variações imprevisíveis. Seu canto lacrimoso se inicia, solitário, anunciando um ovo que se rompe e revela o mal: “Dear god, excuse me.” Ruídos em baixo volume, estridentes, cordas e graves soturnos ambientam a lírica de uma terra devastada. De repente, a bateria marcial irrompe, combinada a algo parecido com uma cuíca grave e rouca, sons de animais, sopros que desenham melodias débeis. Silêncio. (Aliás, o silêncio em Bish Bosch nunca é simplesmente a ausência de som, se não que irrompe preenchido de sentido: fôlego, retomada, momento exitante…) Os sons incômodos dos peidos, combinados com percussão e apitos, servem para vestir os versos infames citados acima: “A sphincters tooting our tune…” Segue-se uma sequência de eventos sonoros que vão desde solos de viola, sons de chuva, drones, grooves, solos de xilofone, etc. 

Tomemos o epicentro do álbum, a faixa “SDSS14+13B (Zercon, A Flagpole Sitter)”. As justaposições indicam o cruzamento semiótico de muitas referências. Novamente o silêncio opera o elemento dramático. Zercon, “anão mouro”, guardião da bandeira na corte de Átila, o Huno, se apresenta: 

“This is my job,
I don’t come around and put out
your red light when you work…”

Referências à política do século XX (“Eunuch Ron” Reagan e “Gorbi”), a impérios antigos e ditaduras modernas (grego, romano, huno, galês, britânico e americano), e à depravação na corte de Átila, não escondem o centro gravitacional da faixa: trata-se de uma alusão a condição pós-moderna, tomada comumente como a perda generalizada de referência ou o enfraquecimento da tradição ocidental, mas que na verdade diz respeito a proliferação do conflito entre diversas perspectivas culturais. Em mais de vinte minutos de faixa, Walker conduz os sons em ligação contrastante com justaposições poéticas, nitidamente aparentadas com a logopéia de Ezra Pound. Batidas marciais fornecem o contorno sonoro à declamação dos números romanos, ao passo que a orquestra produz, segundo Walker, “ruídos e texturas, ou grandes pilares de sons, ao invés de arranjos”.

Outros destaques do disco remetem ao mesmo estatuto sonoro-dramático: as crepitações percussivas de “Pilgrim”, a impressionante dinâmica dramática de “Epizootics!”, a escola de samba em “Phrasing” (“pain is not alone”), o coro de facas e zumbidos em “Tar”… Se é bem verdade que trata-se aqui mais de uma “ficção sonora” do que um trabalho exclusivamente musical; se se pode afirmá-lo igualmente como uma peça que desafia a própria noção de “canção”, manifestando-se sob o formato de uma ópera ou de um “canto” musicado; e, por fim, se compreendermos que trata-se de um esforço completamente distinto dos trabalhos anteriores de Walker; então pode-se atribuir a Bish Bosch o caráter simultâneo de um apanágio e de um rompante original, mesmo em relação à história de seu autor.

Ora, em que medida o trabalho se insere nesse contexto musical permeado por múltiplos interesses, no qual o teatro – a dimensão do jogo teatral — se torna referência para a criação musical? Poderíamos ir além, perguntando em que medida seu trabalho nos últimos 30 anos vem se tornando referência para procedimentos híbridos, sobretudo a partir de Climate of Hunter (1984), Tilt (1995) e The Drift (2006)? É certo que Walker sobreviveu a quase todos os artistas que influenciou, o que nos autorizaria a atribuir-lhe esta propensão à demiurgia. Mas convém manter a singularidade de Bish Bosch, mesmo em relação ao autor que a tornou possível. Em uma época em que a performance e as demais possibilidades de criação artística são justapostas, fustigando os gostos mais conservadores, Bish Bosch pode até soar excessivo, disforme, doidivanas para além do tolerável. Mas dificilmente se pode negar que manifesta de forma contundente algo raro neste mundo tomado por conflitos e degeneração, qual seja: a decantada e indomável necessidade de “ir-além”. 

Bernardo Oliveira

***

























Em 2000, quando do lançamento do seu filme Branca de Neve, fizeram uma breve entrevista com o cineasta português João César Monteiro. A questão central era a maneira como o público reagiria ao filme, que não fazia nenhuma concessão ao gosto médio e violava um princípio aparentemente fundamental do cinema (o filme é quase que apenas a exibição da tela preta, com voz e trilha sonora, isso por mais de hora e meia). Monteiro, sem hesitar, respondeu ao entrevistador "Eu quero que o público Português se foda!".

Essa atitude é oportuna para comentar Bish Bosch, o novo álbum de Scott Walker, pois acho que revela uma das coisas mais interessantes em um artista. Como fruidor de arte, busco encontrar artistas que pouco se importem para o que eu pense e façam lá o negócio deles; se vou me interessar pelo que fazem ou não são outros quinhentos. Acredito que o negócio começa a ficar rico quando o interesse da audiência não está projetado lá, no nascedouro da obra. O que modula o exercício artístico não é o desejo de dar afago no indiferenciado público, ou de uma suposta satisfação que o artista deva a seus clientes. Em alguma medida todo produtor de arte quer ser ouvido, lido, comentado - mas "Que o público se foda!" é o mantra de quem faz Grande Arte. Bish Bosch é isso, é Grande Arte. É um trabalho que, por um lado, é muito fértil, propiciador de interpretações: o álbum excita e estimula a produção discursiva, a gente quer falar a respeito do disco, quer comentar as faixas. E, por outro lado, é uma esfinge, enigmático e cruel, monstro devorador e gerador de perplexidade. Que diabo, penso, vou falar sobre esse disco? Como dar sentido a essa parafernália de coisas díspares, faixas cheias de tentáculos, doidera? E esse negócio de usar o som do pum nas faixas, de soltar pum na música?

Por essa via, algo como o que aparece no clip de "Epizootics!" atravessa o álbum inteiro. O que vemos no clip é uma perturbação celebrada por um artista que está à vontade com seu ofício e seus instrumentos e que calha de ser também um artista sem conforto. Um disco revivalista de Walker, soltando o vozeirão pra standards e com arranjos luxuosos de cordas provavelmente ia bombar. Mas ao invés disso temos esse objeto não-identificado. Há, em cada faixa, um teatro do absurdo em operação, e o palco no qual os dramas se realizam é o espaço da canção. A membrana sendo esticada aqui são os limites da canção, e tudo tem lugar na dramatização do canto que sempre foi peculiar à excelência de Walker. Para isso, vale tudo: instrumentos insólitos, viradas abruptas, metais em febre a la Scelsi, pum.

Na terra do ostranenie, Scott Walker é rei.

Antonio Marcos Pereira

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Tom Zé – Tropicália Lixo Lógico (2012; Passarinho, Brasil)


























Aumenta a disposição para a concordância.
Começa-se a pensar em camadas paralelas.
Certas abstrações ocorrem com naturalidade.
Max Bense, Inteligência Brasileira, 3


“pensar é pão”

De seu reaparecimento triunfal até Tropicália Lixo Lógico, a música de Tom Zé vem se constituindo a partir de teorias saborosamente anômalas a respeito da mulher (Estudando o Pagode, 2005), do “defeito de fabricação” da mentalidade terceiro-mundista (Com Defeito de Fabricação, 1998), do efeito liberador da Bossa Nova na cultura brasileira (Estudando a Bossa, 2008), além de um trabalho instrumental-onomatopaico sobre a “pós-canção”, batizado como Danç-Êh-Sá, 2006. (É bem verdade que, em relação a The Hips of Tradition, não se sabe bem ao certo se há um centro gravitacional, mas teimo em acreditar que trata-se de uma avaliação implacável dos fluxos e refluxos da Terceira Revolução Industrial, do ponto de vista de um brasileiro).    

Nesses discos, o artista estabeleceu relações francas, abertas e muitas vezes incômodas (no melhor dos sentidos) entre uma teorização sobre a formação de aspectos da cultura brasileira e um conjunto de canções que, ao contrário de explicar a tese, jogava ainda mais fogo na lenha da provocação. Acerca da abordagem original deste procedimento, ou mesmo de seu êxito propriamente artístico, é possível uma conclusão parcial: que não há na atualidade esforço similar, qual seja, o de articular ímpeto teórico, citações eruditas, relevância na poesia, na música e no pensamento através de canções estritamente acessíveis.

Tom Zé vem aproximando, justapondo, confundindo esferas separadas por conveniência política e cultural, sejam elas acadêmicas, estéticas, psicológicas, filosóficas, etc. Sendo assim, não é de se estranhar que o único artista brasileiro a introduzir elementos teóricos em sua dinâmica criativa desminta a “morte da canção” preconizada por Chico Buarque há cerca de seis anos. Principalmente porque seus exercícios teóricos não se constituem segundo a prerrogativa acadêmica, ciosa da consistência lógico-formal que fornece sentido à progressão das pesquisas, e , em última instância, afiança sua autonomia perante os órgãos institucionais — questão de poder, portanto.

Com Tom Zé, aprende-se de saída que a teoria não é privilégio da academia. Arrancando desabusadamente o exercício teórico da pesquisa universitária, Tom Zé fomentou sua convergência com a poesia e a música como forma de promover uma dupla emancipação: a canção deixa de ser prisioneira dos temas fáceis e recorrentes, ao passo que a teoria pode galgar outras perspectivas, sem necessariamente prestar contas aos afiançadores do saber. A canção é, neste sentido, a catalisadora desta inversão de valores. Com seus procedimentos anárquicos, Tom Zé nos mostra que se a canção de fato morreu, foi de tanto rir.

Poiésis, pois entre poesia e teoria, não existe aporia. 


“guaraná vai pisar no calo da coca-cola”

Um dos caminhos adotados para abordar Tropicália Lixo Lógico corresponde à separação da teoria e da produção estética. Seguindo este caminho, alguns julgaram tratar-se de uma defesa de tese sob a forma de canções. Ao passo que para José Miguel Wisnik, Tom Zé desenvolve uma “argumentação cancional” (em seu excelente artigo a respeito do disco). Não discordo propriamente destas intepretações, mas faço uma ressalva: antes de separar teoria e poesia, antes mesmo de separar a crítica da poesia, parece mais proveitoso traçar conexões entre duas dinâmicas complementares no trabalho de Tom Zé: uma lúdico-teórica e uma outra, crítico-poética.

No balaio lúdico-teórico o tempo é espectral, imenso; autores, artistas e ideias soam ao mesmo tempo no grande palco do pensamento de todas as eras e continentes, tudo é jogo, como no teatro. Já do lado crítico-poético, é a malícia, a graça, a carpintaria do texto e da melodia, a funcionalidade da ideia que ditam as regras: “vontade de forma”, Apolo incorporado. No trabalho de Tom Zé, a teoria é confeccionada com desmesura, ao passo que as rigorosas construções formais reiteram a ciência implacável da canção popular. 

Ora, estamos diante de uma obra paradoxal, que nos conduz em direção a uma espécie de dobra: não seria o paradoxo, em detrimento da dialética, o ambiente próprio da chamada cultura brasileira? Em outras palavras, não seria justamente esta capacidade de apropriar-se de modo carnavalizante da cultura ocidental, diversificando as configurações culturais, o conteúdo inominável do “lixo lógico”? Do suposto conflito entre teoria e estética, nos resta salvaguardar o fato concreto de que em Tropicália Lixo Lógico a teoria já foi ruminada, e a canção popular, sublimada.

Como se dá essa reviravolta? Primeiramente, Tom Zé afirma que entramos na era da Segunda Revolução Industrial quando “um gatilho disparador (…) provoca em Caetano e Gil o vazamento do lixo lógico do hipotálamo para o córtex.” Para além da confluência de muitas perspectivas (culturais, fisiológicas, sociais), a Tropicália foi uma explosão criativa e de consciência, em relação a qual pudemos liberar, manipular o "lixo lógico", isto é, a cultura ocidental, "aristotélica", refundada sobre o solo trágico do colonialismo.

Mais abaixo, no texto do encarte, outra possibilidade interpretativa: sobre a placa mental “virgem e faminta” da primeira infância, marcada no córtex cerebral, o lixo lógico eclode, quando a cultura ocidental dá de encontro com as potencialidades e vicissitudes da “creche tropical”. E ainda há uma terceira hipótese, segundo a qual os brasileiros foram formados pela junção do “saber de Aristóteles com a cultura do mouro”. Aqui a imprecisão conceitual é criativa e criadora, assim como o paradoxo é manipulado enquanto valor, retrabalhado a partir da confluência com o “lixo-lógico”. O paradoxo em Tom Zé não se deflagra em oposição frontal aos ditames da instância avaliadora da lógica europeia, mas como uma reapropriação antropofágica do termo técnico, através do grande sismógrafo da cultura brasileira, a canção. 


“catci garra gafum”

Tropicália Lixo Lógico traz um conjunto de faixas em nada convencionais, mas que exalam o travo amistoso da canção popular brasileira, voltada em sua maioria para a festa, o bar e a zona. A forma aparente corresponde à dinâmica estrofe-refrão, mas as articulações poéticas, antes de contrastar, reforçam o amplo espectro de sons que caracteriza a roupagem instrumental e os arranjos — elaborados por Tom Zé, Daniel Maia e Felipe Alves, respectivamente guitarrista e baixista da banda.

O corpo de canções indica a malandragem e o engenho do poeta, artifícios que testemunham, para além do aspecto anárquico, a concepção rigorosa, precisa. Uma profusão de neologismos (“tropicalisura”, “analfatotes”, “Caegitano”), aliterações, transliterações, revolvem múltiplas referências à literatura e à música. Trechos de melodias e letras da canção tropicalista reescritos com ironia, ritmados pela prosódia com balanço de samba, frevo, rock e marcha. Recortando a última sílaba de alguns versos, Tom Zé começa o verso seguinte, ora fazendo humor (“com Juliana-vengando contra o vento”), ora aglutinando significados com alto teor sugestivo (“Universi-dadal-dadal…”, “da cun unha, unha, unha”). 

Vale enaltecer o canto e a interpretação do compositor por todo o disco. Sua voz consegue obter variações imprevisíveis, exibindo um tom mais declamatório e arriscando-se em melodias improváveis e jogos de interpretação. Como em “Amarração do Amor”, quando nos fala daquele ódio similar ao de “Odeio você”, canção de Caetano Veloso: o ódio do amante. A interpretação hilária de Tom Zé, ao forçar o sotaque para extrair o efeito cômico da frase “desse tamaninho”, adere perfeitamente ao conteúdo meio trágico, meio irônico, dos versos:

“A mãe-de-santo já me deu
Miniatura de você
Des’tamanhinh
É de palha costurada com agulha de crochê
Vou te derreter
Numa panela de dendê”

Tomemos a canção que, não à toa, dá nome ao disco. “Tropicália Lixo Lógico” se inicia com a sequência melódica com tinturas românticas de “Coração Materno”; os primeiros versos afirmam que o lobo (bobo?) não comeu ninguém. Alusão à bossa nova? Apesar da forte sugestão nessa direção, o verso diz respeito ao processo de colonização: a pureza de Chapeuzinho é invadida por Seu Lobo, que no entanto “não come ninguém”. Em ritmo de Jovem Guarda, tomamos conhecimento do processo constitutivo do lixo lógico: o “pacote de pensar” de seu Aristote (corruptela de Aristóteles), ao entrar em contato com “nossa moçárabe estrutura de pensar”, gera, por um processo psico-fisiológico, o subproduto do lixo lógico. Tom Zé concentra sua teoria diretamente sobre a canção-título, liberando espaço para uma sequência de canções que tangem o conceito indiretamente. Tal procedimento, ao contrário de enfraquecer, ampliou e enriqueceu o panorama da obra.

Arrisco-me em algumas interpretações, por exemplo, “Capitais e tais” sugere a pregnância da ponte cultural do nordeste para São Paulo; “O Motoboi e Maria Clara” expõe com singela ironia as agruras da vida paulistana; “Não tenha ódio do verão” é um libelo contra o decantado ódio que alguns brasileiros sentem pelo Brasil, realçando a positividade do lixo lógico em detrimento da cultura ocidental. “NYC Subway Poetry Department” representa simultaneamente a internacionalização de Tom Zé e da Tropicália, enquanto “Amarração do amor” busca dar conta do aspecto passional do lixo lógico. E tantas outras, tão cativantes quanto as anteriores: “Debaixo da Marquise do Banco Central”, “De-de-dei Xá-Xá-Xá” e a curiosa “Jucaju”, que aparentemente sugere à inserção de Juca Chaves no contexto da Tropicália, como eminência parda a respeito do qual poucos falam. Acrescente-se os versos comoventes de “A terra, meus filhos”, a cantilena “Navegador de Canções” e “Aviso aos Passageiros”, rock’n’roll crítico às palavras de ordem institucionais.

Sobre este conjunto de canções indiretamente ligadas ao tema, reside sua riqueza, o que há de mais forte em Tropicália Lixo Lógico. Se a ideia moderna da palavra “teoria” se consolidou como o recanto da objetividade, especialmente atrelada ao amanhã, (e por vezes ao “depois-de-amanhã”), a teoria lúdico-cancioneira de Tom Zé, por sua vez, estabelece que o “lixo lógico” só pode ser compreendido sob a forma de como é vivido, isto é: no bole-bole do movimento, no xique-xique do agora, no fricote do assovio, no refrão do cotidiano. Trabalho de invenção, como o próprio autor frisa, não se furta a atravessar fronteiras, fazendo contrabando com todos os lugares, com todas as eras, mas fornecendo suas conclusões sob o aqui e o agora da canção. Sendo assim, eis a maior virtude de Tropicália Lixo Lógico: afirmar de forma contundente e performática sua tese central, qual seja, a peculiar agilidade crítico-criativa proveniente do lixo lógico.

Bernardo Oliveira

Ps.: Em tempo: os “defeitos” que permeam todo o disco, justificados por Tom Zé como “invenção”, constituem intervenções do lixo lógico sobre a lógica linear e limitante da grande indústria fonográfica. 

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Chelpa Ferro – Chelpa Ferro 3 (2012; Mul.ti.plo, Brasil)























Conhecido pelas instalações e intervenções que desenvolve no território da sound art, o Chelpa Ferro chega ao terceiro disco invertendo uma das premissas centrais de seu trabalho. Até então os limites do som e dos materiais empregados foram tematizados através de instalações, performances e demais circuitos intersemióticos — como “Autobang” (2002), no qual o trio destruía "percussivamente" um Maverick 74', com o auxílio de Laufer, Dado Villa-Lobos, Domenico, Bacalhau e Leo Monteiro. Desta vez, estes mesmos circuitos fornecem subsídios para que o som ocupe um espaço central. Chelpa Ferro 3 privilegia a construção de um discurso elaborado a partir do aspecto sonoro das obras, valendo-se de sua interação com o improviso de instrumentistas afinados com a proposta do coletivo.

Por exemplo, na primeira faixa, “Mesa de samba” (2009), o som é gerado por um aparelho montado com máquina de costura, arame, molinete de pesca, mesa de madeira, caixa de bateria e dímer. Quando o circuito é acionado, agita o fio de arame de forma a percutir sobre a caixa, gerando um batuque aleatório, realçado pelo zumbido da máquina. Por cerca de doze minutos, as guitarras de Arto Lindsay e Pedro Sá redobram a irregularidade das configurações rítmicas, conduzindo a tensão do improviso através da utilização de microfonias, acordes soltos e ruídos.

As faixas seguintes seguem a mesma construção conceitual, explorando a interação entre o aspecto sonoro das instalações e o improviso dos músicos. Em “Microfônico” (2009), com a participação do violoncelista Jaques Morelembaum, a máquina é composta por motor, trilho, microfone, amplificadores e vasos; à medida que os microfones pairam sobre a boca dos vasos, captam as reverberações internas e geram microfonias. Percebe-se que a estratégia de improvisação do instrumentista responde às microfonias e reverberações provenientes da instalação, gerando justaposições harmônicas e frequências incomuns.

Percutindo trinta sacolas plásticas contra a parede, comandadas por motores, cabos e um circuito eletrônico apelidado como “cabeção”, “Jungle Jam” (2008) é dos momentos mais instigantes dos cinquenta e um minutos do trabalho. E isso graças não só à sonoridade gerada pelo engenho conceitual da máquina, mas ao diálogo entre Kassin e Berna Ceppas. Munido por seu contrabaixo, Kassin imprime uma dinâmica marcial sobre à percussão frenética das sacolas plásticas, ao passo que Ceppas recorre aos sintetizadores e à lap steel guitar para explorar as mudanças de clima no transcorrer do improviso. Em relação às cinco faixas do álbum, esta é a que equilibra de forma mais perceptível e eficiente o conteúdo sonoro da instalação e a intervenção do improviso.

Por seu turno, “On – Off Poltergeist” (2008), com a participação de Chico Neves, se inscreve de forma contundente no aparente revigoramento das experiências sonoras limítrofes que marcam a música hoje — por exemplo, através da reabilitação do interesse pela otoacústica, a espacialização do som e de nomes como Maryanne Amacher e Eliane Radigue. A instalação consiste em sete auto-falantes extraídos de sete aparelhos de televisão, separados e dispostos em cada um dos extremos de uma sala, com a intenção de desvincular som e imagem. Neves manipula um Simmons SDS-V, recortando padrões rítmicos a partir dos sons emitidos pelos aparelhos. A aparência espectral — ou fantasmagórica, como indica o título — não compromete a preponderância do ritmo sobre os outros elementos. Dupla tendência reafirmada na última faixa, “Acusma” (2008), que conta com o baterista Stephane San Juan interagindo com trinta vasos de cerâmica em treze formatos e tamanhos diferentes, cada um contendo um auto-falante que reproduzem o solfejo editado e processado de cinco cantores. Os cantores entoam números ao invés de notas, com a intenção de estimular no ouvinte uma sensação “acusmática” — termo explicado no encarte, que designa uma “alucinação auditiva pela qual se julga ouvir vozes humanas ou instrumentos musicais”.

Não parece despropositada, ou mesmo casual, a referência à fantasmagoria inerente ao trabalho do Chelpa Ferro. E isto na medida em que ela remete tanto à efetividade material quanto à presença espectral da obra. Basta observar que entre a experiência de se presenciar as instalações, com todo o aparato audiovisual e sinestésico, e de escutá-las como um instrumento entre outros, é possível detectar diferenças relevantes. Esta característica indica que a instabilidade nas peças elaboradas pelo Chelpa Ferro não é meramente estilística, mas constitutiva e essencialmente criativa. Atribuindo o mesmo nome das obras às sessões de improviso, o grupo converte todo o seu trabalho em jogo aberto, sujeito a mudança de regras e mutações imprevistas. Além de uma audição fascinante pela riqueza de procedimentos e ideias, Chelpa Ferro 3 abriga uma perspectiva entrópica segundo a qual tudo opera por deslocamento e descontrole. Constitui-se, assim, não no isolamento ou reaproveitamento de aspectos das instalações, mas na desintegração da própria obra, sua fragmentação necessária e regeneração particular. 

Bernardo Oliveira

domingo, 9 de setembro de 2012

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Black Pus – Pus Mortem (2012; s/g, EUA)


























Nas últimas linhas do pequeno texto que explica a avalanche sonora contida em Pus Mortem, o baterista americano Brian Chippendale adverte para a forma de se escutar o Black Pus: “I played this loud so you should too.” Sim, ouça alto e não espere entender tudo o que se passa, entregue-se à atmosfera apocalíptica, aceite o convite ao transe, mas também à dança — sim, à dança desenfreada, catarse dos movimentos e dos sentidos, o chacoalhar da roda. O texto ainda explica o significado de Black Pus (“estado afetivo de exagerado bem-estar ou euforia”), cita o infame Ren & Stimpy como referência e termina com uma piada: uma citação remete à nota, que por sua vez remete de volta ao texto: “This is the footnote”. O panorama não deixa dúvidas: nonsense, desorientação e euforia norteiam as ideias e a música do Black Pus.

Mas a matéria-prima do Black Pus não se esgota no conceito, muito pelo contrário. Chippendale dispõe de um enorme talento como baterista, apto não só a desenhar ritmos e viradas complexas, mas também explorar nuances de timbre e pequenos detalhes. Conjuga esse talento com um arsenal de apetrechos eletro-eletrônicos, desde microfones até peles de bateria trigadas com uma profusão de efeitos. Recobrindo a excelência da execução instrumental, uma resolução esteticamente situada na definição “no-fi”, difícil de acompanhar para os ouvidos mais sensíveis. Completando o esquema, Chippendale aciona sons pré-gravados com as baquetas, senta e levanta freneticamente da bateria e se veste com uma miscelânea multicolorida de penduricalhos, que configuram um dos atrativos de suas apresentações caóticas.

O ritmo marcado traz alguma referência mais consistente, enquanto, escondido sob a máscara, o microfone converte os gritos e solfejos do artista em um leque sonoro que varia do grito gutural à linhas de baixo. One-man band, Chippendale mantém alto o nível de articulação instrumental e conceitual, como percebe-se nas convenções e melodias entreouvidas em meio ao caos. O rumor grave e intenso que perpassa as oito composições não prejudica suas respectivas singularidades: o andamento dançante de “Play God”, por exemplo, ressalta o jogo rítmico das sílabas, enquanto o sampler deteriorado de uma gaita de fole azucrina o ambiente. Faixas como “Why Must It End?” e “Heebee Geebees” exibem melodias que rememoram à canção celta, ao passo que a frenética “Neuronic Knife” a voz intervém abruptamente sobre os ataques e viradas da bateria. “Supergenius” não surpreende somente pelo contraste, afinal trata-se de uma bela canção, mas porque aponta para outras direções compatíveis com a sonoridade extrema do Black Pus. O álbum se encerra com “Off With His Head” e “Meet Me In That Other Place”, duas composições que concentram o que o trabalho possui de mais autêntico: o programado e o espontâneo se chocam em conflito, mas também, paradoxalmente, são domesticados pela mão firme de Chippendale, o que confere unidade ao trabalho.

Tantos adjetivos tenebrosos podem afastar o ouvinte acostumado a frequências mais amistosas. Contudo, vale notar que não estamos diante de uma sonoridade essencialmente “barulhenta”, a exemplo do que se costuma chamar por noise. Pois arrisco-me a afirmar que trata-se em Pus Mortem de uma força quase contrária à irracionalidade do noise. E, por favor, não entendam aqui “irracionalidade” como incapacidade de engenho, mas como uma prática que investiga as fronteiras daquilo que possibilita o “engenho”, as condições de uma hermenêutica da própria matéria sonora. Esta é a profissão de fé do noise. Já o Black Pus produz basicamente o oposto deste vandalismo programado dos artistas ligados a este outro aspecto do som extremo. Sua questão, o seu “conceito”, diz respeito ao tal “estado afetivo de exagerado bem-estar ou euforia” que se define em seu próprio nome: o barulho, mas também o ritmo, a festa, a euforia… Ainda assim, após escutar o disco (disponível abaixo), o ouvinte provavelmente se perguntará: se isso não é o mais escancarado “barulho”, então o que há de ser então? Missão cumprida, Mr. Chippendale…

Bernardo Oliveira


sábado, 25 de agosto de 2012

JJ Doom: "Guv'nor"

Do álbum Key to the Kuffs (Lex Records, 2012)

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Escutar de novo, pela primeira vez



















(A propósito dos shows do trio paulistano Metá Metá no Oi Futuro Ipanema, dias 17 e 18 de agosto de 2012).

Baby, baby, baby, não se assuste, a cidade é iluminada! Mas serena? Tranquila? Não, defintivamente. Como te (en)cantar, São Paulo? Como lançar o feitiço da canção por sobre seu asfalto, cantar o encantamento de seus desencantos, ligado no 220, na “padoca”, nos olhares discretos e garagens infinitas? As respostas possíveis foram dada pelos punks da periferia, pelos rappers, pelos versos tortos da lira — e mesmo teu samba é anômalo! Seu corpo inteiro é vasto e cresce multidirecionado, mas muitos reconhecem em ti uma “periferia”, desencavada do esquecimento estratégico para habitar para sempre nosso imaginário (blame on the boogie, Nelson Triunfo, Racionais…). Seus abismos sociais, interações tímidas e canções paradigmáticas, que entoam a cidade remota, a cidade dos que “moram longe” (longe de quem, de onde?), que padecem da falta de condução, “se eu perder esse trem que sai agora às 11h…” Como cantar esta cidade munido apenas por violão, saxofone e uma voz? Como fugir da maldição da MPB, do “sambinha” e da “mpbezinha”, munidos com as mesmas armas? “Das armas brancas, químicas quentes, música é a preferida…”

A armadura instrumental pode não deixar dúvidas, mas o que fazer diante do fato de que as dúvidas simplesmente desmoronam? Basta assimilarmos uma realidade improvável, segundo a qual teriam marcado encontro na mesma encruzilhada, sob a benção de todos os exus e orixás, o improviso jazzístico de Peter Brötzmann, o peso do Black Sabbath, os afro sambas de Vinícius e Baden Powell, os detritos sonoros do drone, os ruídos no wave, a pegada do punk e do metal, a música litúrgica da umbanda e do candomblé, as dissonâncias de Arrigo e Sonic Youth, a pujança do tambor de mina, da ciranda, da umbigada, o canto das três raças, o cinema falado, a escola de samba e a onipresença de Benedito João dos Santos Silva Beleléu, vulgo Nego Dito, cascavéu, ensinando a bater cabeça no sobressalto do afoxé, e a fazer riff de metal no galope acertado de um “batuque” de cordas e sopros. 

Kiko Dinucci converte seu instrumento em um híbrido de violão e guitarra, mas também assume as formas do atabaque e do agogô. Em “Vale do Jucá”, canção de Siba Veloso, adapta o instrumentos às técnicas do “piano preparado” de John Cage, interpondo um pedaço de plástico entre as cordas e o corpo do violão. Por vezes, emula uma banda inteira através da utilização de pedais de distorção, palhetadas abafadas, linhas de baixo repletas de intervalos menores, acordes dissonantes e dedilhados abertos, suingue e virtuosismo. Os sopros de Thiago França extrapolam o papel de “solistas” geralmente consagrado a este instrumento, e, tal como o violão, se afirmam a partir de uma série de possibilidades imprevistas: percutindo as chaves, criando desenhos rítmico-melódicos para servir como acompanhamentos e usando as ressonâncias da respiração para criar texturas sinistras. Com seu timbre versátil e interpretação precisa, Juçara Marçal é hoje a maior cantora brasileira surgida nos últimos 30 anos. Como nenhuma outra, conjuga força expressiva e espontânea, com versatilidade e, o que mais chama a atenção, dosagem precisa de emoção na emissão e nos floreios, o que a destaca de grande parte das cantoras da atualidade.

Ressalto as qualidades instrumentais do conjunto porque além da concepção, é a execução o grande barato de um concerto do Metá Metá. Faixa introdutória de Metal Metal, o próximo trabalho previsto para outubro, “Laroiêxu” abre-alas: o sax combina ruídos, ambiências e melodias soltas, o violão percussivo se transfigura em um terreiro de umbanda e Marçal solta a voz como quem lança impiedosamente o fio de uma espada sobre os sentidos da plateia. Introdução impactante, seguida pelas canções do primeiro álbum: “Vale do Jucá”, “Umbigada”, “Trovoa” (linda canção lírico-coloquial assinada por Maurício Pereira, com mais um espetáculo à parte protagonizado pela cantora), “Papel Sulfite”, “Samuel” e a evocativa “Vias de fato”. A sessão “Beleléu”, momento em que o trio se esmera em interpretações matadoras para algumas canções do bardo paulistano, traz duas pérolas de Pretobrás II — Maldito Vírgula, “Ir pra Berlim” e “Más línguas” — esta última, com seus versos infames, porém delicados, gerou gargalhadas: “até sessenta, cê tenta, depois dos setenta… sessenta!” “Tristeza não”, faixa que encerra Metal Metal, é uma composição inédita de Itamar com Alice Ruiz, a meio caminho de Black Sabbath e dos Stones de “Can’t You Hear me Knockin’”, um peso descomunal que justifica o título no mínimo curioso do próximo disco.

Composições de Dinucci com Douglas Germano (que lançou em 2010 o ótimo Orí), “Oranian” e “Obá Iná” reforçam uma concepção calcada no punch da execução e nas infusões sonoras inesperadas, executada por três instrumentistas que empunham seus instrumentos como um campo aberto de experiências. Operando por contraste com o discurso dominante da chamada MPB, a música do Metá Metá expõe o ouvinte a uma experiência situada entre a familiaridade e a desorientação — na qual se escuta tudo de novo, pela primeira vez... Recusa-se, ao contrário do que se espera hoje da sigla MPB, a emprestar tons pastéis e execução standard a elementos do rock e da música de todos os santos, extrapolando fronteiras pré-delimitadas pela dinâmica ideológica e mercantil. Não seria o esgarçamento de tendências comuns ao discurso mediano da MPB que confere ao grupo algo para além das siglas e gêneros? Em outras palavras, como cantar São Paulo no século XXI? A resposta não poderia ser mais explosiva e eficiente: conjurando-as com outras armas brancas, outras químicas quentes, curto-circuito.

Bernardo Oliveira

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Glenn Branca, badass…





















(sobre o show de Glenn Branca Ensemble no SESC Belenzinho, 25/07/2012)


A julgar pelo modo nada carinhoso com o qual o lendário Glenn Branca se dirige a seus músicos, tal como se comprovou durante a apresentação de ontem, seu concerto conta não com um ensemble, mas com algo próximo de uma "grande família (no pior sentido do termo). "Parente é serpente", diz o ditado. Suado, barba por fazer, metido num terno amarrotado, Branca entra no palco resmungando, entre partituras, garrafas d'água e refrigerantes. O semblante dos músicos não é dos melhores, mas aquilo que parecia concentração se transforma em constrangimento. Branca bate boca com um dos guitarristas, o clima fica tenso ("what do you think I'm talkin' about, my dick!", entredentes). Mexe nas partituras, os músicos se ajeitam e, quando menos se espera, silêncio. Silêncio, olhares atentos e mais silêncio… Então, uma maçaroca sonora toma conta do teatro do Sesc Belenzinho, fazendo com que  a plateia, que até então apenas assistia perplexa as movimentações no palco, seja tomada por um sentimento de apreensão. Os aplausos são relativamente tímidos, ainda contaminados pelos acontecimentos curiosos que marcaram o início da apresentação. Mas a sequência já revela a outra faceta do trato familiar: Branca ensaia com o baterista algo como uma brincadeira ("it's ok, it's ok…), o guitarrista, alvo dos esporros, ajeita o boné e esboça um sorriso. E então, se inicia a segunda peça da noite, "The Tone Row That Ruled The World" (do disco de 2010, The Ascension: The Sequel), que já obtém uma resposta efusiva da plateia. A partir daí, Branca se solta, bem como seus músicos e a plateia. "Lesson N. 03 (Tribute to Steve Reich)", do mesmo álbum, marca esse ponto de virada, com suas reviravoltas rítmicas e harmonias dissonantes. De costas para a plateia, Branca rege sua orquestra ora agarrado à banqueta de partituras, agitando-a de forma insensata, ora contorcendo as pernas e fazendo gestos histriônicos com as mãos. Parece uma mistura de Pierre Boulez com Elvis Presley. "Lost Chords" encerra o concerto e, em um dado momento, Branca vai para o canto do palco e libera os músicos para o improviso. Ele se joga contra a parede e fica lá, de costas, como que delirando com a zoeira produzida por sua "família". E então o concerto acaba. Mas assim que o teatro se esvazia, e restam apenas alguns fãs, ele reaparece, virulento, pedindo "sem fanatismo, por favor!" Neste momento, eu estava do seu lado, ri e perguntei se ele se importava de bater uma foto. Ele disse: "bate logo, ora!" Não bati, mas resolvi encarar a fera. Pensei, "mas esse é o Glenn Branca, o nó cego do No wave, a força cerebral do pós-minimalismo, a referência máxima quando se trata de abordar as influências de bandas como Sonic Youth e The Ex." Comprei um CD e pedi para que ele assinasse. Sorrindo, Branca me pergunta se eu tinha apreciado o show, no que respondi "CLARO, foi incrível!" De repente, aquele monstro tinha se tornado dócil e inseguro, seus gestos se acalmaram, ele baixa a cabeça e assina com a mão trêmula: "Para Bernar...". Subitamente sua mão pára no meio da escrita, ele volta seus olhos para mim com certa violência e solta mais uma ofensa adorável:  "você já pagou por isso!!!?" "Sure Mr. Branca, sure…"


Bernardo Oliveira

terça-feira, 10 de julho de 2012

Metá Metá: “Laroiê Exu”

do álbum que está para chegar, batizado provisoriamente como Metal Metal (via Fita Bruta)

terça-feira, 3 de julho de 2012

Manezinho Araújo, o rei da embolada

"Pra Onde Vai Valente?" Participação do Rei da Embolada Manezinho Araújo no Filme "Amor para três", de 1959, dirigido por Carlos Hugo Christensen.




"Cuma é o nome dele?" (RCA Camden, 1974)

sexta-feira, 29 de junho de 2012

mixhaps, perhaps...























sequência mixada descontínua incompleta extraída do que de melhor rolou nesses últimos 3 (ou 4) meses... (vlw Zahle, pela força)




Eli Keszler: "Drums, Crotales, Installed Motors, Micro-Controller Metal Plates"
Dean Blunt and Inga Copeland: "Venice Dreamway"
Sun Araw, M. Geddes Gengras & The Congos: "Happy Song"
Curumin: "Treme Terra"
THEESatisfaction: "Deeper"
Maga Bo: "O Neguinho" (com Biguli)
Mark Ernestus apresenta Jeri-Jeri com Mbene Diatta Seck: "Xale"
Ben Vida: "Ssseeeeiiiiii"
Killer Mike: "Big Beast" (com Bun B, T.I., Trouble)
Björk: "Crystalline" (Current Value Remix)
DJ Rashad: "Feelin'"
Traxman: "I Need Some Money"
Death Grips: "Hustle Bones"
Frank Bretschneider: "Kippschwingungen part 8"
Actress: "Jardin"
Moritz von Oswald Trio: "Yangissa"
Animal Collective: "Honeycomb"
The Hundred In The Hands: "Keep It Low" (Patten Remix)
Cristian Vogel: "Lucky Connor"
Shackleton: "Seven Present Tenses"
Gaby Amarantos: "Mestiça" (com Dona Onete)
Keith Fullerton Whitman: "Occlusion"

segunda-feira, 18 de junho de 2012

(artigo) O mal-estar na Abundância
















Recentemente, em uma de suas colunas na Pitchfork, Mark Richardson comentava, usando como tema o Music from Saharan Cellphones Vol 1, o papel relativo de escassez e abundância em nossa maneira de fruir música hoje. Mesmo com o boicote de SOPA/ PIPA/ ACTA etc, é muito mais fácil ter acesso: é farta a oferta do próprio material musical, e é farta também a oferta de informação sobre música. Esse nosso site aqui é um dentre zilhões de exemplos: um coletivo de entusiastas se reúne para escrever sobre música e divulgar isso. 

Tenho quarenta anos, e consigo lembrar fácil de ter experimentado a escassez das duas coisas. Li na Bizz sobre o In the court of the Crimson King e se passaram anos até que eu conseguisse que alguém me gravasse uma fita – anos até que eu visse o disco. Vejam que não se tratava de algo particularmente obscuro – era King Crimson, um dinossauro progressivo e, ainda assim, nos anos 80, não estava aí nas quebradas não. Não faz muito tempo, era difícil ter acesso a todos os discos que se queria ouvir.

E pela mesmo via a coisa ocorria com a informação sobre música. Lembro de querer saber mais sobre La Monte Young – coisas simples, do tipo Quem é mesmo esse cara? O que esse cara tem a ver com o Sonic Youth? É boa a música dele? Melhor que a do Sonic Youth? Mas, claro, não encontrava nada – pois, por incrível que pareça para você que tem vinte anos hoje, já existiu um mundo sem internet. A fonte possível de alguma informação eram as revistas de música – coisas como a Bizz – e fanzines maluquete que a gente assinava, e recebia pelo correio. Eventualmente, um amigo mais endinheirado (eu tinha um amigo assim) comprava o New Musical Express, ou o Melody Maker, e isso era lido até gastar.  

Agora que tudo isso não é mais problema, pois contamos tanto com muita disponibilidade de música e de informação sobre música, é claro que os problemas aparecem em outro lugar. Um, fundamental pra mim, é a organização: é saber o que está aonde. Não me adianta ter um HD externo de 3T lotado de mp3 e não saber encontrar as coisas que quero ouvir. Preciso de organização. Por isso, passei os ultimos tres anos organizando cuidadosamente meu iPod. Capas, creditos corretos, playlists: um primor, quase 160G, muita música. O investimento de tempo foi grande, mas tem valor: eu uso muito esse aparelho, muito mesmo – é muito util pra mim. E, agora, tudo se foi, toda essa organização, todo esse investimento: tudo evaporou, pois o iPod morreu.

Meu mundo caiu. E, claro, sei que não é irremediável. Mas também não sei qual a lição que tinha de aprender com o incidente, embora ache que tinha de aprender alguma coisa.

Antonio Marcos Pereira

quinta-feira, 14 de junho de 2012

(crítica – disco) Beto Guedes – A Página do Relâmpago Elétrico (1977; EMI Odeon, Brasil)

























Assim como uma série de artista e compositores que confluíram dos festivais dos anos 60 para a diversidade dos 70, e que de alguma forma ficaram marcados pelo estigma da chamada “música regional”, o nome de Beto Guedes também acabou se restringindo a um contexto inconvenientemente particular. Porém, quem se arriscaria a negar que Lula Côrtes, Zé Ramalho, Alceu Valença, Guilherme Arantes, Flávio Venturini, Kleiton e Kledir, Sá e Guarabyra, entre outros, independente de suas respectivas contribuições estéticas, usufruem hoje de um acréscimo de universalidade, angariando interesse mundo afora justamente por expressarem sotaques próprios e intransferíveis? As reedições inglesas e americanas em vinil de artistas brasileiros desta época apenas atestam que toda a conversa estranha da “música regional” (ora, o sudeste é também uma “região”!) se constituía dentro de um maniqueísmo insustentável em tempos de comunicação acelerada, a saber: entre a classificação imposta pelas gravadoras e sua subsequente adesão por parte do chamado “grande público” — basicamente os consumidores de discos, fitas cassetes e shows. Rompido o estigma, chegou a hora de retomar a escuta desse conjunto de álbuns e artistas fundamentais, cujo brilho fora provisoriamente apagado pela segmentação estratégica da grande indústria.

Mineiro de Montes Claros, nascido há 61 anos, filho do seresteiro e compositor Godofredo Guedes (gravado pela cantora portuguesa Eugênia Melo e Castro), compositor, multiinstrumentista e cantor de timbre singular, Beto Guedes apareceu pela primeira vez no cenário nacional em 1969, ao lado de Fernando Brant, quando veio ao Rio participar do V Festival Internacional da Canção com a canção “Feira Moderna”. Considerado uma espécie de outsider, mesmo durante o período em que se juntou ao Clube da Esquina de Milton Nascimento, Lô Borges, Ronaldo Bastos e companhia (sobretudo no álbum homônimo e em Minas), Guedes foi encarregado de executar diversos instrumentos (violão, guitarra, viola, contrabaixo, bateria, percussão, bandolim), construindo uma reputação ambígua: ora atrelada à sua indubitável competência de instrumentista, ora pelos modos singulares (para não dizer excêntricos) com que entoava suas canções e tocava esses mesmos instrumentos.

Esse conjunto de talentos e características idiossincráticas se catalisaram em seu primeiro álbum de carreira, A Página do Relâmpago Elétrico, cuja canção-título, composta por Guedes e Ronaldo Bastos, fora inspirada no álbum de um colecionador de fotos da 2ª Guerra Mundial, que continha uma imagem do avião “Relâmpago Elétrico”. Nenhuma metáfora seria capaz de reunir tantos elementos pertinentes e interligados: o contraste entre a organicidade da página de um livro com o termo “elétrico”, a remissão à eletricidade, que no entanto advém de uma força da natureza, o relâmpago, e todo o aspecto psicodélico embutido nessa imagem. A instrumentação se destaca pelo entrelaçamento inteligente do bandolim e do violão com o efeito chorus, executados respectivamente por Guedes e Zé Eduardo. A marcação também se destaca, feita a partir de chocalho de sementes e guizos, assim como a letra deste compositor genial que é Ronaldo Bastos, coloquial e delirante como poucos nesta mesma época — num comparação direta nesta mesma seara do “delírio coloquial” dos 70, talvez somente Luiz Melodia e a dupla Mautner/Jacobina estejam à altura. 

A influência do rock progressivo é perceptível, não só pela presença no órgão de Flávio Venturini, que em 75 havia ingressado no grupo O Terço, mas também pela bateria inconfundível de Robertinho Silva, egresso da experiência com o Som Imaginário — que não só havia gravado seus três discos de carreira, mas acompanhado Milton Nascimento na versão ao vivo da obra-prima Milagre dos Peixes. Esta influência pode ser avaliada pelo leitor em faixas como a instrumental “Chapéu de Sol” (Beto Guedes e Flávio Venturini), na qual Guedes toca moog e flauta, e na pegada folk de “Salve Rainha” (Zé Eduardo/Tavinho Moura). Porém, como o Clube da Esquina não se restringia aos maneirismos do rock, abraçando toda espécie de manifestação musical, vale sublinhar a evidente influência deste ambiente sobre o disco, como, por exemplo, no forte sotaque andino de “Maria Solidária”, ou no choro “Belo Horizonte”, que conta com o clarinete luxuoso de Abel Ferreira. Outras presenças que marcam a sonoridade do álbum: Toninho Horta no contrabaixo e na guitarra, e Holy na percussão e na bateria.

Outro destaque do disco é "Nascente", de Bastos e Murilo Antunes, uma canção gravada por muitos artistas, inclusive Milton Nascimento e Flávio Venturini, entre outros. Mas foi através da balada rock-folk “Lumiar”, dedicada a um célebre reduto bicho grilo localizado no interior do Rio de Janeiro, que o disco ganhou alguma projeção, vendendo o triplo do esperado pela gravadora. A guitarra aguda, a as viradas de bateria e pratos estridentes, o piano quase percussivo pontuando a melodia, fazem de “Lumiar” um clássico absoluto dos anos 70, que ainda fascina 35 anos depois. No entanto, a faixa foi injustamente inserida no grupo de canções que obtiveram o excesso do reconhecimento popular e, por conseguinte, uma antipatia semelhante a que sofre a música de Bob Marley e Raul Seixas. Um efeito tão natural quanto previsível, ainda mais se levarmos em conta a situação exposta no início do texto.

Mas que não se engane o leitor, pois Beto Guedes não é apenas um grande instrumentista, muito menos se resume a uma espécie de hitmaker, idolatrado por universitários e hippies de última hora. Estamos a falar, antes de mais nada, de um compositor de harmonias e melodias fortemente evocativas (em “Choveu”, com Ronaldo Bastos, e “Bandolim”), de um artista capaz de usar sua habilidade de arranjador para criar climas simultaneamente bucólicos e solenes, e, sobretudo, de um cantor excepcional. Seu canto anasalado, repleto de falsetes e imprecisões, e que rende comparações inevitáveis com Dylan e Neil Young, se destaca pelo timbre peculiar, de tal forma que podemos remeter a um verso que Bowie dedicou a Dylan: “a voice of sand and glue”.

A Página do Relâmpago Elétrico pode, no fim das contas, dar a impressão de ser um disco que atira para todos os lados, mas talvez seja este o seu maior trunfo. Parece que, ao fazê-lo, Beto Guedes desejou criar para além de uma obra musical, uma espécie de auto-retrato em andamento, como o comprova a combinação ideogrâmica de sua foto (ou de seu pai?) com o símbolo de uma semente, que se repetiria nos álbuns seguintes, Amor de Índio (1978) e Sol de Primavera (1979).  

Bernardo Oliveira


quinta-feira, 31 de maio de 2012

(crítica – disco) Actress – R.I.P. (2012; Honest Jon's, Reino Unido)



























Algo incentivou Darren Cunningham, produtor londrino, magricelo e sisudo, a autobatizar-se como “actress”, “atriz” em inglês. Me escapa o que justificaria uma escolha tão discrepante com a realidade! Mas sua arte não engana, e sobrevém a evidente disposição de encarnar e desestabilizar certas máscaras e papéis. “Encarnar” no sentido de dar à luz, concretizar, mas também na acepção crítica, muito comum ao português carioca, que traduz encarnar como “zombar”, gozar com a cara do outro… No caso, com a cara da “música eletrônica” e suas prerrogativas máximas: os ritmos, a pista, a ambientação, a alegria, o êxtase, as brumas… Reiterando o título horripilante, R.I.P. traz uma experiência extremamente oposta a qualquer artifício que vise promover o gozo coletivo. Trata-se de um álbum inconveniente, que porta a marca d’água da idiossincrasia, mas também da exuberância. Como é possível?

Cunningham não é exatamente um nome novo na seara da música eletrônica. Esteve lado a lado com Kode 9 em 2004, quando ambos já produziam na seara daquilo que viria a se chamar dubstep. Ocorre que o produtor se tornou um dos proprietários do selo independente Werk Discs, responsável por lançamentos do calibre de Zomby, Lukid e Radioclit, estacionando seu trabalho por quatro anos. Retornou em 2008, e lançou dois álbuns intrigantes: Hazyville e Splazsh (2010), confundindo o universo eletrônico mundial. Tive a oportunidade de constatar essa personalidade controversa, ao vê-lo fechar desastrosamente uma noite que contava com Ikonika e MJ Cole. Depois dos sets relativamente convencionais desses artistas, Cunningham entrou em cena misturando o miami-soul oitentista de “Truz’n’Vogues” com as faixas anômalas de Splazsh, produzindo um efeito kamikaze sobre a pista: esvaziando-a… 

Percebe-se em R.I.P. que perduram as premissas e estratégias que forneceram as bases para o que de mais interessante há em Splaszh: a abordagem estrutural do techno, do glitch e da ambient depositada sobre experimentos fragmentários, “incompletos”. São como prelúdios para uma música “séria” e adequada a seu tempo, mas que nunca se concretizam, porque se esvaem na perspectiva delirante do artista. Há momentos em que essa premissa se impõe, como no jogo de ruídos e melodias das belíssimas “Jardin” e “Holy Water”; há momentos em que o techno é comentado criticamente de longe, sob a forma invertebrada de “Shadow From Tartarus” e “Marble Plexus”; e há também os experimentos indecifráveis, que se explicam pela própria beleza, como nas modulações esquisitas de “Serpent” e no baixo repetitivo de “Caves Of Paradise”. Que haja uma relação de absoluta incongruência entre essas faixas, que esse "bolo doido" resulte em uma "obra", parece fruto dos artifícios dessa “atriz” capaz de trazer à tona um sentido muito próprio do termo “música eletrônica”.

Os títulos das faixas sugerem a incursão em algum universo mítico-literário, tal como a que caracteriza o belo álbum de Julia Holter, Tragedy, baseado na tragédia "Hipólito", de Eurípedes — como pode sugerir a “aparição” do anjo Uriel em “Uriel’s Black Harp”, citado em escritos bíblicos apócrifos e em obras de Shakespeare e John Milton. Mas, obviamente, o “ator” é puro disfarce, listando uma série de referências que prescindem de um sentido articulado: “jardim”, “serpente”, “árvore do conhecimento”, “cavernas do paraíso”, “descanse em paz”, “o graffiti do senhor”, etc. Esses títulos apenas aludem a um universo bíblico, sem tocá-lo efetivamente. Mais um passo em falso.

Sim, Actress é sisudo, mas é também um gozador, que zomba das convenções, muitas vezes adotando-as, esfacelando-as e recompondo-as como um candente deus ex-machina. Ele é, se me permitem, o verdadeiro “joker”, que veio para confundir, não para explicar. O célebre amigo inconsequente e genial que todos tivemos um dia, incapaz de depositar sua argúcia e criatividade sobre uma sequência de eventos mais ou menos interconectados, mesmo que isso por vezes se traduza em uma personalidade forte. Poucos trabalhos na seara eletrônica encarnam esse papel de forma tão vigorosa como o que desenvolve Cunningham sob o pseudônimo Actress, e R.I.P., longe de figurar como a suma de seu trabalho, fornece um relatório acurado sobre suas atuais obsessões.

Bernardo Oliveira

quarta-feira, 25 de abril de 2012

(crítica – disco) THEESatisfaction – Awe Naturale (2012; Sub Pop Records, EUA)

























Em uma época em que o hip hop parece ter se desdobrado não só na diversidade de manifestações do rap americano, como também na auspiciosa proliferação ao redor do mundo (sobretudo na África e na América Latina), é no mínimo curioso que este disco apareça justamente pelas vias acinzentadas da Sub Pop. Parceiras de Sa-Ra Creative Partners e do Shabazz Palaces (que contaram com os backing vocals das moças no incensado Black Up, também editado pela Sub Pop), Stasia Irons e Catherine Harris-White compartilham o gosto por uma certa inflexão da cultura negra norte-americana, expressa no visual andrógino, colorido e elegante, como se a dupla figurasse na capa de 3 Feet High and Rising. Mas nem tudo é cor e glamour em Awe Naturale, primeiro disco da dupla THEESatisfaction. 



Como 3 Feet… e The Low End Theory, Awe Naturale sobressai pela harmoniosa combinação de muitos elementos: melodias simples convivem com harmonias incomuns, tapeçaria de vozes se sobrepõe à sutileza das percussões, a doçura dos vocais contrastam com as referências bem dosadas à luxúria soul de Marvin Gaye e às experiências antiquárias de Madlib. Mas esse aparente imbroglio, por incrível que pareça, resulta em um trabalho coeso, através de composições que sintetizam a candura easy listening do cool jazz, a pegada firme do rap e o minimalismo caro ao espírito da época. Repetições, timbres suaves (porém estranhos), dissonâncias discretas, quase imperceptíveis: Awe Naturale reivindica dois espaços incomuns no hip hop, entre a melodia pop e um grau de abstração entre o rap e suas fronteiras.

Da vinheta festiva “Awe” até a “impostura” de “naturalE”, Awe Naturale se mantém dentro de um equilíbrio difícil de sustentar: é jazzy sem ser Berkley (como na incrível “Existinct”); é arriscado sem ser pretensioso (como em “Crash”); se utiliza dos sons com propriedade, mesmo quando parece que vai desandar – como na gratuidade de “Enchantruss”, ou na vibe disco de “QueenS”

Pergunta-se: na última década, à exceção de Madlib e Georgia Anne Muldrow, quais os artistas do gênero que retomaram, inesperada e criativamente, a infusão jazzy que caracterizou o rap inovador de Tribe Called Quest e do De La Soul? Não posso garantir que os trinta minutos de Awe Naturale constituam uma resposta, mas que ela tenha vindo de Seattle já é motivo suficiente para surpresa. Porém, antes de mais nada, Awe Naturale é uma audição prazerosa e altamente viciante, que enfileira pequenos clássicos (refinados, discretos), como “Sweat” (Theo Parrish?), “God”, “Bitch” (matador!), “Deeper” (me lembrou Janelle Monáe), “Juiced”, et cetera. 

Bernardo Oliveira

quinta-feira, 12 de abril de 2012

(crítica – disco) Sidi Touré – Koïma (2012; Thrill Jockey, EUA [Mali])

























No último dia 06, o Mali foi palco de um golpe militar, poucos dias antes do lançamento de Koïma. Consta que um motim no quartel central do país, depôs o presidente Amadou Toumani Touré, enquanto o movimento separatista tuaregue MNLA tomava parte de Gao com ajuda de islamistas radicais, reivindicando seu estado independente, chamado “Azawad”. Temo não possuir estofo suficiente para discorrer com precisão sobre o tema, de modo que, para evitar equívocos, cito o historiador Gregory Mann, especializado em história da África francófona.

“Seria difícil exagerar a bagunça que foi feita do Mali na última quinzena. Um golpe de surpresa, uma rebelião acelerada que dividiu o país em dois, e um embargo econômico perpetrado por vizinhos do país sem litoral, têm castigado o que teria sido, até recentemente, uma história de sucesso no Oeste Africano. Acrescente-se a isso uma crise alimentar iminente na região nordeste, e temos uma bela bagunça! Mas o mundo não pode voltar atrás: o Mali é muito importante para amortizar os 20 anos de democracia no país como uma experiência fracassada.”

Os tuaregues, os mesmos que foram massacrados por forças militares francesas em meados da década de 40, reivindicam seu estado independente, dividindo o país, multiplicando conflitos, fragmentando histórias… Características comuns a estados unificados à forceps pela violência colonialista e federalista. Talvez por isso, e não pelo golpe de estado, que o lançamento de Koïma adquire um significado especial. Sua música testemunha que há nesta “bagunça”, localizada em um pedaço de terra ficticiamente delimitado, uma cultura viva e intercambiante,apesar das intempéries históricas. Esta cultura se exprime de forma brilhante nas canções, arranjos e sonoridades de Koïma.

A beleza do trabalho se deve à contribuição direta da cultura songhäi e da habilidade específica de Touré de conduzir seu ensemble e as canções. Acompanhado por um quarteto formado por violão, calabash, soukou (o violino malinês) e uma cantora, Touré apresenta uma outra faceta de sua música. Koïma difere bastante da beleza intimista e espontânea de Sahel Folk, lançado ano passado, soando como um passeio pelas ruas de Gao, através do entrelaçamento de arabescos do soukou e do violão e da percussão extremamente bem marcada. Pode ser encarado também como um songbook, uma seleção de canções arranjadas com sobriedade, sem prejuízo para a beleza idiossincrática de cada composição. Destaco “Ni see ay ga done”, “Woy tiladio” (em 3/4) e “Chacun Sa Chance” e “Tondi Karaa” como as que melhor representam a contribuição de Touré à apresentação e desenvolvimento da tradição songhäi.


Sidi Touré - Ni See Ay Ga Done from Thrill Jockey Records on Vimeo.

Sidi Touré e sua música nada podem contra a “bagunça” em seu país, assim como Fela Kuti não pôde sustentar sua luta contra a ditadura nigeriana, nem Bob Marley converter sua música “revolucionária” (com aspas, por favor) em melhorias efetivas para os jamaicanos. Mas, ao mesmo tempo, somente através da arte e dos artistas, tomados como grandes tipos culturais, se pode consolidar exemplos de que a dinâmica da concórdia e da criação podem servir de exemplo para todo um povo.

Bernardo Oliveira

segunda-feira, 26 de março de 2012

(crítica - disco) Gal Costa – Recanto (2011; Universal Music, Brasil)
























“Viver é um desastre que sucede a alguns.” Tomo o verso escrito por Caetano Veloso como um elogio ao amor fati, um canto de júbilo pela existência, pela singularidade da arte, pela vida em seu caráter multiforme. Ora, em que consiste o “desastre” se não na própria incongruência entre o caos e a forma, restando somente o ímpeto de conferir sentido a um turbilhão que nos é, antes de mais nada, indiferente? Neste caso, o desastre não possui o significado de “catástrofe”, mas de algo que irrompe inevitavelmente, de um acontecimento inexorável. Aqui, Recanto quer dizer "re-cantar", refazer, recompor...

O primeiro álbum que Caetano Veloso produziu para Gal Costa, Cantar (1974), com Perinho Albuquerque, se inscrevia no refluxo londrino, a partir do qual ele e Gilberto Gil reconfiguraram suas posições no cenário da música brasileira. Lá se pode escutar a mistura de estilos (bossa, rock, soul, fado…) que caracterizou o Tropicalismo, bem como os compositores afinados com o mesmo legado (Donato, Jobim, Péricles Cavalcanti, Carlos Lyra, Mautner). Porém, percebe-se uma diferença importante. Nos primeiros discos, Gal experimentava consideráveis variações de registro, ora investindo na economia singela de Domingo (com Caetano, 67), ora esbanjando vigor e uma certa ironia, como nos dois discos homônimos de 69 e Le Gal, de 70. A pluralidade de interesses cara ao Tropicalismo contaminou seu canto até explodir no verdadeiro acontecimento que foi Gal a Todo Vapor, disco e show.

Ocorre que em Índia e, adiante, Cantar, estas variações deram lugar a uma estabilidade estilística, que conjugava seu timbre melífluo com energia e força de expressão. Pode-se dizer que até início da década de 90, o canto de Gal Costa manteve-se nesse registro, sem prejuízo para bons álbuns como Gal Canta Caymmi (1976) e Água Viva (1978). Desenho essa genealogia de seu canto para sublinhar algo que parece ter passado desapercebido em relação a Recanto. Muitos foram seus produtores, de Manoel Barenbein a Arto Lindsay, de Mazolla a Morelembaum, de Perinho Albuquerque a Waly Salomão, entre outros. Mas o canto de Gal Costa, me parece, sempre foi e ainda é um assunto para uma única pessoa: Gal Costa. 

Desta lista de produtores, o mais ousado e criativo é, sem dúvida, Caetano Veloso, que até por conta do laço de amizade, conhece sua biografia, compreende seu pensamento musical, o estágio no qual se encontra sua voz e, sobretudo, aquilo que Gal Costa de fato quer cantar. Em entrevistas, ambos manifestaram receio em relação à proposta de Recanto, cuja sonoridade se encontraria em sintonia com duas importantes cenas contemporâneas: a produção eletrônica e o improviso instrumental. Pela primeira vez em muitos anos, um trabalho de Gal Costa retoma o espírito experimental comum aos discos dos 60 e 70. Mesmo em relação a seu último disco digno de nota, O Sorriso do Gato de Alice (1993), produzido por Arto Lindsay, Recanto sobressai, pois trata-se não só de uma investida em outras sonoridades, mas na própria concepção estética de intérprete.  

As programações eletrônicas enxutas, contribuição fundamental de Kassin, casam perfeitamente com seu timbre grave e metálico, qualidade perceptível nas duas mais belas faixas do disco, “Recanto Escuro” e “Tudo Dói”. Além da presença de instrumentistas do calibre de Donatinho (teclado), Alberto Continentino (contrabaixo), Pedro Sá (guitarra) e Luis Filipe de Lima (violão de 7 cordas), Recanto conta com duas bandas cariocas especializadas em improvisação: o Rabotnik, no blues anômalo “O Menino”, e o Dupplex de Bartolo e Léo Monteiro na melancolia visceral de “Madre Deus”. Há que se notar também a inserção bossanovista da sugestiva “Mansidão”, com Morelembaum e Daniel Jobim. Recanto se afirma na harmonização entre universos aparentemente  distantes, mas que são singularmente unificados pelo canto de Gal.

Em termos temáticos, tal qual o último disco de Chico Buarque, o momento pessoal forneceu a matéria-prima a partir da qual Caetano elaborou as letras, misturando olhares e perspectivas: Caetano olhando para Gal em “O menino”, Gal respondendo a Caetano em “Recanto Escuro”, os dois se entreolham em “Mansidão” (que retoma a prática do canto como tema, tal qual em Cantar) e riem juntos no suingue sagaz de “Miami Maculelê” – cujo pulo do gato é o prato do samba de roda se fazendo de hi-hat do funk. 

Por fim, a visão segundo a qual Recanto é um disco “eletrônico” é evidentemente equívoca, mero subproduto do jornalismo e do marketing. Em Recanto, sobressai a forma do canto de Gal, criativamente adaptado a um cenário tomado por uma certa melancolia, pela batucada robótica e um conjunto de canções perceptivelmente esgarçadas pela intenção de dialogar com a aridez dos arranjos – às vezes nos lembramos de Third, do Portishead, outras da “cristaleira digital” de Björk...

Explorando nuances, alturas e possibilidades no registro mais grave, no sussurro, na exploração simbólica dos efeitos (como em "Autotune Autoerótico"), ou nas entonações minimalistas de “Neguinho” e da soturna “Sexo e Dinheiro”, Gal, mais uma vez, reinventou-se a si mesma. Sim, viver é um “desastre” que nos leva a experimentar encontros, máscaras e identidades. “Só deus sabe o duro que eu dei”, ela canta pelas palavras de Caetano. Ou seria Caetano poetizando, “palavreando” o canto expressivo e inigualável de Gal Costa? 

Bernardo Oliveira