quarta-feira, 26 de outubro de 2022

A SEQUÊNCIA NATURAL DAS COISAS — Milton e o Cinema




“Só com

o som

que sai

da sua boca

ele toca

o oco

da vida

por dentro”

(Ricardo Aleixo, “Música mesmo”)



1. A mineiridade em movimento

O cinema, sua arte e suas mitologias, já rondavam a cultura brasileira pelo menos desde meados dos anos 40, refletindo-se na circulação de padrões estéticos que caracterizavam os gêneros cinematográficos, como também operando um disparador de tendências que circunscreviam desde as vestimentas até o comportamento, da economia psíquica dos personagens até a música orquestral. O cinema também foi fundamental para erigir a visão de uma latinidade prét-à-porter, refletida no turbante e nas roupas de “baiana” utilizadas por Carmen Miranda. Nos anos 60, quando inicia sua carreira como compositor, cantor e instrumentista, Milton Nascimento encontra um ambiente cultural atravessado direta ou indiretamente pela influência cinematográfica. A tentação em se atribuir características cinematográficas à sua música esbarra, portanto, em dificuldades metodológicas.


Por outro lado, pensar a relação entre Milton Nascimento, o Clube da Esquina — movimento musical e cultural do qual ele fez parte como epicentro criativo — e o cinema, permite refletir sobre a forma como eles criaram, através da música popular, uma imagem do tempo e uma imagem do movimento. A sonoridade do Clube da Esquina é complexa, polifônica, polirrítmica, popular e erudita, talhada a partir de múltiplas referências distribuídas de maneira variada no tempo e no espaço. Essa música mantém viva uma relação com o passado e com o presente; seu futurismo é algo cuja força é emanada da relação criativa entre passado e presente.


O cinema pode ser uma das razões pelas quais algumas característica harmônicas plenamente conectadas com o século XX são como que ativadas pelos discos de Milton e do Clube. Ivan Vilela atribui à disseminação mundial do cinema o caminho histórico que conduz as inovações harmônicas de Mussorgsky e Debussy, e, posteriormente, Stravinski e Ravel, ao grande público. A experiência harmônica desses autores teria influenciado diretamente a música brasileira, norte-americana e cubana. “Não existe na Europa ou em qualquer outro lugar do mundo música popular com a diversidade e teor que encontramos nesses três países”, afirma. Em parte, o cinema também foi responsável pela disseminação das Big Bands e, assim, teria dado continuidade à utilização dos instrumentos de sopro, preponderantes “do jazz ao danzón, do danzón ao choro”, prolongando-se até a gafieira carioca. Enriquecendo a lista de referências harmônicas, podemos elencar, ao lado de Mussorgsky, Debussy, Ravel, as big bands, a música de cinema, uma rápida passada pelo samba e pela bossa nova e as harmonias de Garoto e Laurindo de Almeida.


Por outro lado, há uma característica rítmica, timbrística e polifônica que se afirma por todos os discos do Clube, particularmente aqueles gravados entre 1969 e 1978. Observando a procedência, o substrato centro-africano que subjaz na base dos nagôs, etnia que predominou em Minas Gerais, Vilela observa que “suas religiões foram amalgamadas a elementos do catolicismo popular para assim preservarem sua essência. É essa a África que vem com Milton: a África dos congados e moçambiques, catopés e marujadas, caiapós, candombes e vilões.” Outro autor, Roniere Menezes, enriquece a lista: “em termos sonoros, as músicas do Clube da Esquina recebem influência da folia de reis, de hinos sacros, das festas da tradição popular, como o maracatu, a marujada e o congado, passa pela bossa nova, pelo samba-jazz; abre-se ao contato com o barroco, o clássico, o blues, o jazz, o soul, o rock and rol, o rock progressivo, o canto latino, entre outras ressonâncias.”


Os cantos de trabalho, os chamados vissungos, constituem, assim, uma referência fundamental. Menezes escreve: “as temporalidades ligadas aos cantos de trabalho (…) relacionam-se intimamente ao cotidiano, a saberes e fazeres. A ideia do encontro, a convivência comunitária, a reunião de esforço corporal, necessidade vital e forma de superação de tensões conjugam-se entre ritmo, melodia e labor. (…) o ritmo marcante e repetitivo, que às vezes se torna mais brando, a mescla entre canto e gestualidade, a sutileza da condução harmônico-melódica variando entre intensidade e leveza, tensão e repouso são importantes elementos que a canção traz, complementando as imagens do trabalho presentes no campo literário.” A influência direta dos vissungos, sobretudo em um álbum como Milagre dos Peixes, indica que a relação entre passado, presente e futuro na música de Milton e do Clube, excede a temporalidade ocidental, assentada sobre concepções estanques do tempo. A música de Milton e do Clube situa-se no campo de uma relação dinâmica entre o tempo e o movimento.


Cinema, do grego Kinein, deslocar, mover, mexer: movimento. Idas e vindas, chegadas e partidas, o trânsito intenso e acelerado da vida e da cultura no século XX. A mitologia do trem, a força da “travessia”, o cais, o pé na estrada, o perambular nas ruas e bares, o devaneio como viagem, a viagem como movimento: cinema. A presença do movimento, de uma travessia infinita, portanto, é constante na obra de Milton e seus parceiros. Já em sua primeira gravação a se tornar sucesso, Milton cantava a “Travessia”: “Solto a voz na estrada, já não quero parar”. De cara, recusa o pertencimento tácito à uma posição idealizada, estancada no passado, e afirma a singularidade de um movimento que não cessará. Contudo, a canção não se contrapõe ao estado de coisas com a veemência das canções de protesto, se não que, altivamente, recusa um lugar e afirma um movimento de deslocamento. Essa recusa adquire intensidade conforme percebemos que é irradiada pelo único indivíduo negro do grupo ao qual denominamos Clube da Esquina. Esse movimento duplo de recusa e afirmação que, no entanto, está longe de ser ambíguo, circunscreve o caráter singular em meio ao trânsito da vida. Alguém vai embora, faz-se noite, porém, “já não temo mais a morte, tenho muito que sonhar.” E ele completa: “Minha casa, não é minha e nem meu esse lugar…” isto é, partir de Minas num trem de doido, pois, como na parceria com Ronaldo Bastos, “nada será como antes… amanhã!”


O pé na estrada mantém uma relação ambígua com o “ser mineiro”, com o que se convencionou chamar na historiografia de “Mineiridade”. Pois o que faz o Clube da Esquina se não pôr em movimento o mineirismo e a mineiridade? Desterritorializar o mito da “patriazinha” e toda a carga histórica que alimenta o estado de coisas que sustenta o memorialismo mineiro e suas características escravocratas? O signo de uma continuidade que se exprime através de gestos, sons e canções, expressa também a ambiguidade de uma mineiridade simultaneamente assumida e recusada. Esta posição se exprime no próprio movimento que a música sinaliza sem cessar. São encontros e despedidas, como no “Carro de boi”, de Maurício Tapajós e Cacaso, em que Milton canta “que vontade eu tenho de sair num carro de boi e ir por aí”. “Veveco, panelas e canelas”, de Milton e Brant: “Eu não tenho compromisso, eu sou biscateiro/ Que leva a vida como um rio desce para o mar”. 


O tempo na "mineiridade" se traduz no tempo das relações acomodadas a uma paisagem natural e espiritual estática. Não se trata somente de pôr em movimento todo o mito oligárquico, toda a estrutura escravocrata que subjaz o memorialismo mineiro sob a forma de uma consciência entranhada da distância, mas de anunciar que esse movimento recusa uma visão histórica desta mesma mineiridade. A Minas idealizada, cujo bordado revela o pano de fundo de uma história manchada pela escravidão, se locupleta de um presente que conserva latente as mesmas relações escravocratas. 


Segundo Maria Arminda do Nascimento Arruda, a mineiridade nasce de um “ritmo particular da região lastreado em relações sociais imediatas.” A pequena comunidade que cresce alicerçada em um modo de produção adequado ao Século XVIII, tem de se readequar à nova realidade trazida pela dinâmica de ruralização, de tal maneira que a fazenda mineira se transforma “em microcosmo do universo material, social e cultural (…) o fulcro da história de Minas.” Arminda prossegue: “O ritmo do tempo, nessas condições, adquire outra intensidade, torna-se modorrento, quase parado. Nada de realmente novo parece acontecer, tudo reduz-se à longa duração do cotidiano, aprisionada e contido no predomínio das relações imediatas. (…) A autonomia relativa de Minas oitocentista expressa no universo da fazenda mista e de caráter auto-suficiente, abriu espaço às invenções da tradição, vivendo-as como se fossem eternas.” 


A tendência a se considerar a música de Milton e do Clube da Esquina, como expressão da mineiridade é como que inviabilizada justamente através do movimento, de imagens cinematográficas das idas e vindas, do tempo pensado e projetado não a partir da estagnação intemporal de um passado de glórias relativas, mas do trânsito múltiplo e contínuo que desestabiliza o culto do passado. A relação de Milton com o tempo da mineiridade pode ser vista como um certo controle do tempo musical, dos sentidos e das sensações que as canções e arranjos liberam, a partir daquilo que a música evoca enquanto paisagem a-histórica e atemporal.


Nesse ponto seria importante notar que a temporalidade que atravessa e constitui a mineiridade, difere da temporalidade entre as comunidades mineiras de origem nagô. Para que sobrevivessem, os nagôs se viram obrigados a forjar toda espécie de estratagema para driblar a cultura hegemônica, qual seja, o catolicismo, a ordem social escravocrata, mediada pela violência da chibata, o achatamento cultural. Na temporalidade da cosmovisão africana, Ronilda Iyakemi Ribeiro nos mostra que as sociedades tradicionais se orientam não em vistas de um futuro infinito e desconhecido, mas, como a música do Clube, toma a direção a um passado de características singulares. Ribeiro observa que a temporalidade iorubana é, em primeiro lugar, não-linear. O ciclo da vida não transcorre num continuum linear constituído por domínios estanques como passado, presente, futuro: “a vida é uma corrente eterna que flui através dos homens em gerações sucessivas. O ciclo da vida é circular.” Uma segunda característica, além da não-linearidade, é a circularidade, o tempo cíclico que desmobiliza as cisões mais rigorosas entre vida e morte, tempo e espaço, causalidade e experiência, identidade e coletividade. Uma terceira característica nasce das duas primeiras: “a esteira do tempo move-se para trás mais do que para a frente. As pessoas atentam mais para o transcorrido do que para o que poderá ocorrer.” E nota que dois vocábulos swahili são importantes demarcadores da temporalidade iorubana: Sasa e Zamani.


“Sasa é o período mais significativo para um indivíduo, o lapso de tempo em que as pessoas permanecem conscientes da própria existência, projetando a si mesmas no curto futuro e, principalmente, no longo passado.” Já “Zamani, por sua vez, não se restringe ao que chamamos "o passado". Inclui presente e futuro. Em ampla escala, sasa mergulha em zamani. Porém, antes de serem os eventos incorporados em zamani, precisam ocorrer em sasa. Uma vez ocorridos, movem-se para trás, de sasa para zamani. No pensamento tradicional africano não há um conceito de História movendo-se para a frente, em direção a um clímax futuro, bem como não há um movimento em direção ao fim do mundo.” Eduardo Oliveira, lendo Ribeiro, reforça: “O final do mundo para o africano é impensável porque é impensável o final do tempo.” Isso porque a temporalidade iorubana faz convergir o tempo cíclico da vida e tempo intemporal do universo — “tempo intemporal ou eternidade, a eternidade imutável”, que Gilberto Gil canta dizendo que “o eterno é” em “Nova Era”). Ribeiro completa: “vivemos normalmente com a consciência no tempo cíclico e intuímos a existência de um tempo eterno”.


O memorialismo mineiro, chamado por Arruda como “mineirismo”, era portador de características temporais capazes de fundir, em um amálgama vivenciado, o passado e o presente, atualizados de modo a apaziguar e estabilizar as relações do presente em um futuro perpétuo. O mineirismo é produto de relações imediatas entre senhores e escravos, patrões e trabalhadores, mas a mineiridade, fruto da memorialística mineira, é essencialmente mitológica, pois reensaia continuamente a glória da fazenda setecentista. Pode-se desconfiar neste caso de alguma ressonância com a filosofia Banta ou Iorubana, com a ressalva de que o futuro expandido, seja aquele que afirma o mesmo, seja aquele que afirma o progresso, não é algo caro aos africanos, ao passo que a mineiridade tende a perpetuar o mito em direção a uma temporalidade estática, quase desprovida de qualquer expectativa de futuro. 


Em direção oposta a essas duas tendências, a música do Clube parece apontar para uma dupla temporalidade, vivida, intuída e tão criativa quanto praticada. De um lado, o futuro prático dos bantos e iorubanos — prático, pois amoldável às relações entre concepções muito diversas do passado e do presente — distanciando-se, assim, do futuro estático da mineiridade, a “aura da mineiridade” que Arruda atribui aos relatos dos memorialistas. De outro, um alargamento da expectativa histórica enquanto um dado natural, que torna infinito o espaço de experiência. Se tivermos um pouco de abertura para esta reflexão, perceberemos as tendências iorubanas na música de Milton: o tempo não-linear (“a vida é uma corrente que flui”), de forma que o ciclo da vida é, portanto, circular; a esteira do tempo move-se para trás, mas, ao contrário da nostalgia que caracteriza a Mineiridade, o passado é fonte de experiência, um acervo inesgotável que favorece novas ideias e combinações — segundo Ribeiro, “as pessoas atentam mais para o transcorrido do que para o que poderá ocorrer”. O Clube da Esquina se afasta de uma mineiridade escravocrata, oligárquica e assentada em valores que foram construídos a partir da opressão. Sua travessia corresponde a uma prova de fogo, pois é preciso acelerar esse movimento de liberação.


Contudo, há que se notar: o mito da Mineiridade deseja se tornar universal através da semelhança com a grandeza da metrópole e da Alta Cultura Ocidental. A comparação encetada pelo memorialismo mineiro entre a literatura mineira e a alta literatura europeia e russa, corresponde ao estratagema de perpetuar o mito através de um movimento que, antes de se tornar perpétuo, parte da comparação e da atualização. O que há de universalizante no Clube da Esquina decompõe e assimila de forma criativa a música do século XX, não somente a música europeia ou anglosaxã — os Beatles era grande referência para Milton, como também referências pertencentes a uma visão mais generosa do “universal”, como a música latino-americana de Violeta Parra e Mercedes Sosa, a música caribenha e a voz profunda de Clementina de Jesus. Como diz a canção de Beto Guedes e Ronaldo Bastos, “Quem sonhou/ só vale se já sonhou demais”. Exceder o mito, para além de sua mitologia e de sua universalidade, abstrair tanto a ponto de esgarçá-lo de maneira a fazer irromper outros mitos e outras relações com o mundo e com o cosmos.


A estabilidade com que se preserva o mito da “mineiridade” contrasta com o pensar e o fazer nagô, do qual Milton Nascimento é herdeiro e que se lhe oferece como ferramenta. Sua música não deixa de operar a tonalidade, mas é na modalidade ou na polimodalidade que seu canto pode ser receptáculo de elementos vibratórios que incorporam oscilações harmônicas e os melismas orientais, tão característicos de suas interpretações vocais. Sobre o pensar Nagô, Muniz Sodré afirma: 

   

“Numa dinâmica regida pelo axé, como é o caso da liturgia afro, a música é primordialmente vibratória, orientando-se pelas modalidades da execução rítmica, do canto e da dança, em que a percussão é fundamental. Na Europa, a música douta, regida pelo universo ascendente da escrita desde fins da Idade Média, orientou-se pela melodia e pela harmonia, deixando em plano secundário o timbre e o ritmo, que predominam no universo mítico da oralidade. Se o rito é a expressão corporal e afetiva do mito, o ritmo é um rito suscetível de realimentar a potência existencial do grupo. Corpo e tempo comparecem na apreensão rítmica em variadas modulações da existência.”


Podemos assumir a qualidade vibratória da música miltoniana, sem contudo, associá-la exclusivamente à percussividade. Timbre e ritmo comparecem com a mesma força que harmonia e melodia, de maneira a superar uma suposta dicotomia entre o primado harmônico-melódico e as formas oriundas do timbre, do ritmo, do improviso e das dinâmicas coletivas e corporais. Me pergunto se, justamente por essa relação não-hierárquica entre esses registros da composição musical, a música acaba adquirindo a qualidade sonora vibratória a que alude Sodré.




2. Os Deuses e os Mortos

A música de Milton é cinematográfica porque acrescenta à uma realidade que se pretende estática (a mineiridade) o elemento dinâmico-vibratório da temporalidade nagô, expressa musicalmente, culturalmente, corporeamente, gestualmente, etc. A tonalidade, a modalidade, a afinação, mas também algo que excede esses parâmetros. Nota-se também uma qualidade cósmica, ampla e esparsa, porém visível, que se opõe à universalidade mineira, na medida em que esta possui um parâmetro referente aos valores culturais da metrópole. A universalidade para Milton e o Clube da Esquina relaciona-se a possibilidade de expansão infinita, e portanto, política, pois antecipa, com o pé na estrada, a efemeridade da colonização e da escravidão. E por fim, sua música é um espaço de experiência mediada por uma temporalidade que percebe as relações entre passado, presente e futuro de forma contrária à filosofia subjacente à mineiridade, não como algo a ser preservado e perpetuado, mas como algo que, para o compositor negro, mantém uma relação ambígua, negativa e prática a um só tempo. O passado também é como um acervo infinito de materiais, referências, forças, e ideias que costumamos circunscrever com a categoria ocidental de “ancestralidade” — sim, o passado como se passa, não como o que se passou, o passado, portanto, vivo, maleável, moldável.


Milton Nascimento, como presença no cinema brasileiro, transmite um pouco da originalidade de sua presença musical. Sua participação como músico e como ator em Os Deuses e os Mortos, de Ruy Guerra é exemplar nesse sentido. Justaposição de alegorias, extremamente violento e em diálogo franco com o que viria a se caracterizar como Cinema Marginal, Os Deuses e os Mortos de Ruy Guerra transborda sangue, tripas, feridas, moribundos gemendo e mortos-vivos. Tudo concorre para indicar um contexto em que os indivíduos arrastam consigo um passado defunto. O fim do mundo se confunde com o fim de um mundo específico, a saber, o período do Cacau no Sul da Bahia. “A morte rói a mata". Os interesses estrangeiros sobrepujam a violência da realidade local e determinam uma segunda camada de extravios e desmandos, um novo ciclo de terror e morte. Othon Bastos como um corisco morto-vivo, como os mortos-vivos que habitam a casa do latifundiário Santana da Terra, um ano antes dos mortos-vivos que se recusam a abandonar o coreto em Incidente em Antares. Afinal, "o império é mais forte que o homem", o traço patriarcal atravessa os tempos. O som é um indício forte da decomposição de uma era, sobretudo se atentarmos para as vibrações sonoras de uma massa de insetos, enquadrando os mortos na parte final do filme. Tudo parece indicar a situação de uma realidade em franca decomposição, uma realidade atravessada por um passado que, moribundo, insiste em feder, em se decompor a olhos vistos.


A visão subjacente à alegoria em Os Deuses e os Mortos encontra-se plenamente afinada com uma espécie de segunda fase que ocorre por dentro do Cinema Novo, que tem a ver com duas características antagônicas: adoção de uma linguagem atenuante, prenunciando as necessidades comerciais da Embrafilme; e a tendência inversa a uma linguagem que busca corresponder à radicalidade de um presente açodado pela força bruta, pela Ditadura Militar e, particularmente, pelo decreto do AI-5, que extingue o estado de direito. Esgarçar o tecido do passado com a intenção de expor o fedor de uma República que se pretende moderna, mas que permanece escravocrata. Um ódio ao passado se coaduna com outras possibilidades críticas, inclusive aquelas que ressumbram nossos mais caros mitos de origem, seja o mito das três raças, seja o mito da cordialidade. Em Os Deuses e os Mortos o vilão é o passado, o vilão vem do passado, carcomido por uma moral violenta e vestido com os trapos de uma lei desalmada. 


Para este filme, Milton Nascimento compôs “Tema dos deuses”, cuja melodia evoca as visões de um tempo mítico, originário. Os letreiros de abertura são expostos sobre um líquido denso, um caldo grosso que borbulha, o pus, a gosma, a baba, chumbo quente denotando um ciclo de gênese e destruição. Corta para uma árvore carregada de silhuetas sombrias. Um homem branco grita, cercado por uma multidão em trapos que o observa passivamente. "Deu cupim na alma da caatinga". Lá pelas tantas, a personagem de Dina Sfat berra para o nada: "está tudo aqui dentro, tudo vivo!" A pantomima generalizada que vai aos pouco tomando conta da alma dos personagens se liga diretamente à ideia de desintegração dos corpos alegóricos.


A multidão em trapos, perambulando pela cidade parece aludir a um passado que reflui, indesejado, redistribuindo-se pelo cotidiano, manchando o presente de imagens recusadas. Os conflitos agrários, territoriais, econômico são reforçados por maquiagens exageradas e roupas estropiadas. Milton também faz um personagem, uma espécie de bandido que comenta a dívida externa brasileira, numa tentativa de, talvez, inseri-lo no imaginário do marginal herói, propagado na época por filmes como O Bandido da Luz Vermelha e obras como Seja marginal, seja herói de Hélio Oiticica. Othon Bastos com uma tala ensanguentada, escondendo a ferida purulenta que cobre metade de sua face, narra a história de uma mulher, Rosa (às vezes Maria), que, segundo o personagem: “o que sabia-se dela era o que se via, e o que se via, assustava.” Ao fundo, um macaquinho preso a uma corda se mostra progressivamente mais agitado.


A música do álbum Milagre dos Peixes (1973), disco que só sairá três anos depois do filme, trabalha no registro do idílio, instala uma atmosfera que remete ao tempo cíclico e intemporal, ao tempo infinito dos nagô, algo próximo, mas não redutível, ao Aión grego. A língua é a voz, a profusão de vocalises exprime uma língua imemorial. A questão: em Milagre dos Peixes, a característica de uma ampliação da maneira como se apresenta a canção, bem como a referência ao tempo intemporal e à uma sonoridade atravessada por vozes intensas. Aos poucos, sobretudo a partir de Milton (1975) e Geraes (1976), a própria música começa a sair do tempo cíclico iorubano/banto, para se fixar nas formas do tempo nostálgico de uma mineiridade perdida, como na “Fazenda” de Nelson Ângelo e a “sede de viver tudo…”. As formas temporais afrobrasileiras cedem, aos poucos, o espaço para o esgarçamento de tendências cristianizantes e todo seu legado de horror diante do passado e da morte. Não há nas letras os vocábulos da língua iorubana, mas a alternância de temas cristãos, expressões de dor e sofrimento relacionado ao trabalho (sobretudo em “Os Escravos de Jó” e “A chamada”), procedimentos imagéticos, paisagens sonoras e instrumentação inusitada, atingindo um alto grau de expressividade musical e sonora. Como afirma Ivan Vilela, o Milagre traz “o som das festas de rua, os congados e moçambiques mineiros. O pulso é mesmo o da África que não veio pela via do samba.”


Podemos até situar essa atitude na perspectiva de uma mineiridade crítica e de um marxismo menos afeito a primados ideológicos, subjacentes às construções alegóricas, e mais consciente de questões relacionadas a divisão de classes e exploração no mundo do trabalho — um dos  temas recorrentes nos vissungos. Carioca de nascimento, Milton se tornou mineiro em Três Pontas, terra onde se encontra o Quilombo Nossa Senhora do Rosário, terra de uma música e de uma religiosidade de matriz centro-africana, porém diversa daquela que vai se alastrar nos territórios ocupados pelas populações negras no Rio de Janeiro. A temporalidade da negritude mineira e sua relação com o cíclico e o intemporal se espelha na polifonia dos congos, maçambiques, candombes, vilões, marujadas e vissungos.


O congado acontece através de festividades que ocupam todo do ano, ainda que especialmente no mês de outubro, na festa de Nossa Senhora do Rosário, cujo ponto alto é a festa de coroação do Rei do Congo. O congado corresponde a uma mescla de cultos católicos e polifonia de origem centro-africana, num movimento se síntese não-conciliatória, uma síntese que surge do drible, da necessidade e da vontade. Representando a coroação do Rei do Congo — mitologia exaustivamente analisada por José Ramos Tinhorão —, a congada é geralmente composta por cortejo, cavalgadas, levantamento de mastros e pela música característica com suas marcações e sonoridades relativas aos ternos. Os instrumentos musicais mais comuns são a cuíca, a caixa, o pandeiro, o reco-reco,o cavaquinho, o tarol, o tamboril, a sanfona ou acordeom. A polifonia do congado pode ser entreouvida na maneira com que um disco como Milagre dos Peixes é arranjado, com o objetivo de manter uma espontaneidade improvisada, uma espécie de abertura para o acaso, dentro de uma lógica musical que comporta um manancial inesgotável de referências locais e globais. 


É nesse sentido que a música de Milton não parece se coadunar nem com o tempo da mineiridade e do memorialismo mineiro, tampouco com a visão histórica ocidental, de origem franco-germânica embutida em uma recepção burguesa do materialismo histórico, tal como se pode vislumbrar não apenas no aspecto crítico de Os Deuses e os Mortos, mas nas tendências críticas do próprio movimento cinema novo. Essas mesmas tendências, capaz de trazer o sentido de passado através de algo que se degenera e decompõe, podem ser vislumbradas em outro filme de Ruy Guerra, A Queda, onde Milton compõe “E daí?” em parceria com o diretor. Um prédio desaba, as crianças catam comida, animais são mortos de maneira completamente irracional em nome do grande capital. O presente é um canteiro de obras, ao passo que o passado é portador de algo que remonta ao fim do mundo. As referências sampleadas do primeiro filme de Guerra, Os Fuzis, ressaltam a qualidade de um tempo passado que extrapola o esgotamento de tudo o que é humano, desdobrando-se a partir do tempo cíclico e inesgotável dos iorubás. Isso porque há um choque entre o tempo de uma Mineiridade crítica e o tempo Nagô, o que geralmente produz imagens e, sobretudo, sons, contrastantes com os primados ocidentais rigorosamente cristianizados.


Finalizo lembrando uma entrevista para O Pasquim em 1971, quando perguntam a Milton: “O Luizinho Eça, uma vez, disse que você era genial até quando você errava musicalmente. Você estudou música? Qual é a sua formação musical?” Milton é lacônico e preciso em sua resposta: “Não, eu não estudei música não. O que o Luizinho Eça queria dizer quando disse isso é que eu não obedecia a sequência natural das coisas.”