Algo incentivou Darren Cunningham, produtor londrino, magricelo e sisudo, a autobatizar-se como “actress”, “atriz” em inglês. Me escapa o que justificaria uma escolha tão discrepante com a realidade! Mas sua arte não engana, e sobrevém a evidente disposição de encarnar e desestabilizar certas máscaras e papéis. “Encarnar” no sentido de dar à luz, concretizar, mas também na acepção crítica, muito comum ao português carioca, que traduz encarnar como “zombar”, gozar com a cara do outro… No caso, com a cara da “música eletrônica” e suas prerrogativas máximas: os ritmos, a pista, a ambientação, a alegria, o êxtase, as brumas… Reiterando o título horripilante, R.I.P. traz uma experiência extremamente oposta a qualquer artifício que vise promover o gozo coletivo. Trata-se de um álbum inconveniente, que porta a marca d’água da idiossincrasia, mas também da exuberância. Como é possível?
Cunningham não é exatamente um nome novo na seara da música eletrônica. Esteve lado a lado com Kode 9 em 2004, quando ambos já produziam na seara daquilo que viria a se chamar dubstep. Ocorre que o produtor se tornou um dos proprietários do selo independente Werk Discs, responsável por lançamentos do calibre de Zomby, Lukid e Radioclit, estacionando seu trabalho por quatro anos. Retornou em 2008, e lançou dois álbuns intrigantes: Hazyville e Splazsh (2010), confundindo o universo eletrônico mundial. Tive a oportunidade de constatar essa personalidade controversa, ao vê-lo fechar desastrosamente uma noite que contava com Ikonika e MJ Cole. Depois dos sets relativamente convencionais desses artistas, Cunningham entrou em cena misturando o miami-soul oitentista de “Truz’n’Vogues” com as faixas anômalas de Splazsh, produzindo um efeito kamikaze sobre a pista: esvaziando-a…
Percebe-se em R.I.P. que perduram as premissas e estratégias que forneceram as bases para o que de mais interessante há em Splaszh: a abordagem estrutural do techno, do glitch e da ambient depositada sobre experimentos fragmentários, “incompletos”. São como prelúdios para uma música “séria” e adequada a seu tempo, mas que nunca se concretizam, porque se esvaem na perspectiva delirante do artista. Há momentos em que essa premissa se impõe, como no jogo de ruídos e melodias das belíssimas “Jardin” e “Holy Water”; há momentos em que o techno é comentado criticamente de longe, sob a forma invertebrada de “Shadow From Tartarus” e “Marble Plexus”; e há também os experimentos indecifráveis, que se explicam pela própria beleza, como nas modulações esquisitas de “Serpent” e no baixo repetitivo de “Caves Of Paradise”. Que haja uma relação de absoluta incongruência entre essas faixas, que esse "bolo doido" resulte em uma "obra", parece fruto dos artifícios dessa “atriz” capaz de trazer à tona um sentido muito próprio do termo “música eletrônica”.
Os títulos das faixas sugerem a incursão em algum universo mítico-literário, tal como a que caracteriza o belo álbum de Julia Holter, Tragedy, baseado na tragédia "Hipólito", de Eurípedes — como pode sugerir a “aparição” do anjo Uriel em “Uriel’s Black Harp”, citado em escritos bíblicos apócrifos e em obras de Shakespeare e John Milton. Mas, obviamente, o “ator” é puro disfarce, listando uma série de referências que prescindem de um sentido articulado: “jardim”, “serpente”, “árvore do conhecimento”, “cavernas do paraíso”, “descanse em paz”, “o graffiti do senhor”, etc. Esses títulos apenas aludem a um universo bíblico, sem tocá-lo efetivamente. Mais um passo em falso.
Sim, Actress é sisudo, mas é também um gozador, que zomba das convenções, muitas vezes adotando-as, esfacelando-as e recompondo-as como um candente deus ex-machina. Ele é, se me permitem, o verdadeiro “joker”, que veio para confundir, não para explicar. O célebre amigo inconsequente e genial que todos tivemos um dia, incapaz de depositar sua argúcia e criatividade sobre uma sequência de eventos mais ou menos interconectados, mesmo que isso por vezes se traduza em uma personalidade forte. Poucos trabalhos na seara eletrônica encarnam esse papel de forma tão vigorosa como o que desenvolve Cunningham sob o pseudônimo Actress, e R.I.P., longe de figurar como a suma de seu trabalho, fornece um relatório acurado sobre suas atuais obsessões.
Bernardo Oliveira