quinta-feira, 20 de março de 2014

Juçara Marçal – Encarnado (2014; s/g, Brasil)

























1. Cantar é vibrar cordas vocais, escreveu Tom Zé em “Multiplicar-se única”, sublinhando a íntima conexão entre voz particular e canção comunitária, entre sopro e comunhão: “simples prazer de ressoar no ar o som da voz. Canta por nós cordas vocais sem cais, cordas ou nós.” Cantar, gesto impuro de talhada e precisa contenção, que não vem do coração, nem da pureza da natureza. A fumaça irrita a garganta, os copos tilintam no salão, desviando a atenção do cantor. Às vezes, a voz aparece e somos como que tomados por uma imprevista sensação de captura. O canto encarnado de Aracy de Almeida, Elizeth Cardoso, Elza Soares, Clementina de Jesus, Jovelina Pérola Negra e, mais recentemente, Juçara Marçal.

2. Encarnado não é um disco sobre a morte, nem sobre a morte que habita um fenômeno maior, que é a vida. Encarnada é a condição de tudo o que vive, suas qualidades instáveis, seus atropelos, variações e desgastes. O encarnado, sobretudo, resiste. Resiste com as marcas de navalha que sua própria mulher, por ciúmes, rabiscou em sua cara. Ressucita e retorna para “bater até cansar” nos covardes que o assassinaram. “Passa na carne a navalha, se banha de sangue” e roga aos deuses para atravessar momentos excruciantes de um aborto ritualizado. Encarnado, o primeiro disco solo de Juçara Marçal, é, portanto, um disco sobre o ato e o efeito de resistir.























3. Povoado por personagens reais e imaginários, Encarnado narra as desventuras de seres que resistem. Seres que se encontram isolados no mundo, atormentados por fantasmas e memórias de “três guerras no peito”, tomados pelo ódio e pelo medo, errando pelas ruas se perguntando “que vida é essa?” Seres “sem ombro amigo, com febre e confusos em um precipício.” Ou seres que conversam consigo mesmos, projetando-se anos depois, envelhecidos. Do outro lado, assistindo ao tenebroso espetáculo da existência, a Morte desabafa: “quero me aposentar pra ganhar tranquilidade, deixando a humanidade matando no meu lugar.”

4. E, no entanto, o disco abre com uma declaração não propriamente “otimista”, mas afirmativa: “Não diga que estamos morrendo. Hoje não.” O texto de Romulo Fróes para o release do disco tem a manifesta perspicácia de pinçar esta frase como o sintoma, o sentido, o norte de Encarnado. Apesar de todo o turbilhão de forças externas que o fazem perecer, o corpo pode mais do que resistir. Pode recursar-se a morrer, bradando: “hoje não!” Metáforas são possíveis na perspectiva de um corpo que resiste, mas não me ocorre nenhum meio mais poderoso de resistência do que através da capacidade de experimentação e invenção. Em arte, particularmente.



5. Tal como os projetos habituais de uma certa turma de São Paulo, Encarnado exprime o resultado de um apurado trabalho de (re)invenção sobre a matéria da canção e das manifestações multifárias da “música popular brasileira”. Responsáveis pelo que de mais interessante surgiu nesta seara nos últimos trinta e poucos anos — desde os primeiros álbuns de João Bosco e Djavan? — a turma vem infundindo outros materiais sobre a canção brasileira através de grupos como Metá Metá e Passo Torto e autores como Romulo Fróes e Rodrigo Campos, entre outros. Em termos de concepção temática e sonora, Encarnado talvez seja, em relação a este núcleo de artistas, o disco mais rico e, ao mesmo tempo, divergente do cancioneiro brasileiro recente.

6. O canto de Juçara Marçal reúne muitas informações com as quais podemos determinar uma espécie de procedência. A rigor, é possível vinculá-la ao rol das cantoras suaves, como Alaíde Costa com seu soprano versátil. Sua voz é tecnicamente admirável, mas o assunto aqui não se resume à técnica. Também não me refiro somente à ausência de floreios e clichês com os quais podemos identificar uma larga porcentagem das cantoras contemporâneas. Um dos trunfos desta que me parece ser a maior cantora surgida no Brasil desde Alcione, é a capacidade de adequar seu canto à composição com uma certa humildade, respeitando-a. Quando sua voz cruza o salão, porém, Juçara é capaz de revestir esta mesma canção por uma qualidade enérgica, exprimindo bom-humor sem afetações, ímpeto e tensão dramática. Deflagra-se, então, todo um cortejo de possibilidades, do sussurro rouco ao grito lancinante. Juçara faz parte daquele rol restrito de cantoras que, ao interpretar, compõem e recompõem a canção.























7. O repertório é quase que integralmente contemporâneo. Todos os compositores estão vivos e operantes, com exceção de Itamar Assumpção — cuja presença, no entanto, permanece forte entre nós. Mesmo o jovem veterano Tom Zé comparece com “Não Tenha Ódio no Verão”, canção proveniente de seu último álbum, Tropicália Lixo Lógico. Pela ordem de aparição, é possível elencar um manancial de compositores capazes de enterrar de vez a ladainha da “crise cultural” ou da “crise da canção brasileira”: Rodrigo Campos, Douglas Germano, Everaldo Ferreira da Silva, Romulo Fróes, Alice Coutinho, Gui Amabis, Régis Damasceno, Kiko Dinucci, Siba Veloso, Thiago França e a própria Juçara Marçal. Compositores diferentes entre si, mas que, através de um recorte preciso, reúnem-se ao redor do conceito do álbum.

8. A instrumentação é econômica, calcada no diálogo entre as guitarras de Kiko Dinucci e Rodrigo Campos, que fornecem a espinha dorsal da grande maioria dos arranjos. Thomas Rohrer na rabeca e Campos alternando-se no cavaquinho com e sem efeitos, completam o time, que também conta com Thiago França com seu saxofone percussivo em “Damião” e pocket piano em “E o Quico?”. Uma profusão de efeitos dramáticos e climáticos são obtidos a partir de guitarras e cavaquinhos que distribuem-se e justapõem-se em bordados sonoros compostos por acordes soltos, solos, arpeggios, ruídos, ostinatos — observem, por exemplo, a reviravolta rítmica de “Queimando a Língua” (aos dois minutos), a chegada do disco voador em “E o Quico?”, o cavaquinho agudo de Campos intervindo brutalmente sobre os versos dolorosos do refrão de “Ciranda do Aborto”, os efeitos que pontuam “Canção para Ninar Oxum”, etc.

9. Rodrigo Campos comparece com “Velho Amarelo”, o abre-alas, a canção que ostenta o “grito” primordial que permeará todo o disco: “Hoje não!” Já o grito de Douglas Germano e Everaldo Ferreira ensaia a ressurreição triunfante de Damião Ximenes Lopes, assassinado em 1999 por funcionários de um manicômio em Sobral, Ceará. Juçara sobe o tom, disponibilizando-se para surrar os que mataram Damião: “Dá neles Damião! E quando cansar me chama!” Seguem-se duas composições que subvertem o amor lírico com sagacidade. Em “Queimando a Língua”, Romulo Fróes e Alice Coutinho interpretam o transe amoroso através de versos oblíquos, enquanto “Pena Mais que Perfeita”, valsa de Amabis e Damasceno, versa sobre a pena que “na pele moura ferve numa contradança”. O amor incide de forma impiedosa sobre o corpo que resiste, queimando, fervendo.

10. “Odoya”, composição de Juçara, serve como prece para uma travessia dolorosa. Me refiro à “Ciranda do Aborto”, que, novamente nas palavras de Romulo Fróes, destoa do amor romântico com o qual se identifica a poética amena da MPB. Este “bem querer” a que se refere a letra é um ser morto, “despedaçado” por um aborto ritualizado. Afora a roupagem sonora, composta por rabeca, guitarra e cavaquinhos distorcidos, em nada semelhante à roupagem condescendente da MPB contemporânea, observa-se a subversão de alguns dos clichês mais caros aos artistas que se abrigam sob esta sigla. A performance fenomenal de Juçara, a entrega evidente com que entoa cada um dos versos, faz sobressair a tensão entre o corpo retalhado e a presença de um aspecto sobrenatural. À maneira funérea de Nelson Cavaquinho em “Depois da Vida”, Dinucci encena a luta da mãe por conservar seu rebento neste mundo, carregando o ambiente com elementos trágicos — “Mas o chão te engoliu, toda lida findou, pra você descansar no meu braço.”



11. Os versos e melodias precisos de Germano reaparecem em “Canção para ninar Oxum”, levantando o astral para a sequência de canções cômicas. “E o Quico?”, de Itamar Assumpção, além da óbvia alusão involuntária ao guitarrista e compositor do disco, retrata uma conversa delirante sobre questões existenciais entre o próprio Itamar, uma assombração e seres extraterrestres. Depois, a recomendação impagável de Tom Zé, sugerindo ao ouvinte que não tenha ódio durante a referida estação, concluindo com versos de um patriotismo irônico: “isto arrebenta uma nação!” Por fim, a poesia de Siba Veloso, precisa, terrível e satírica a um só tempo, em “A Velha da Capa Preta”: “E a vida é como um cigarro que o tempo amassa e machuca, e a morte fuma a bituca e apaga a brasa no barro.”

12. Finalmente, a voz é o tema de “Presente de Casamento”: Juçara canta um tom acima para desenhar a melodia bluesy e a letra reminiscente, fruto da parceria entre Romulo Fróes e Thiago França. O disco se encerra com “João Carranca”, interpretação da canção registrada em 2007 por Kiko Dinucci e Bando Afromacarrônico. Acompanhada apenas pelo cavaquinho, Juçara narra a história de Guaracy, rainha da Boca do Lixo, que vê o tempo passar e envelhece. Quando seu jovem amado João se torna um rapaz desejado pelas moças, a mulher com ciúmes retalha o rosto do rapaz, transformando-o em João Carranca.



13. A voz que canta pretende resistir ao tempo e até mesmo ao espaço que possibilita sua propagação no ar. Mas também se dispõe a transformá-lo, como a navalha transforma João em João Carranca. A arte, a música em particular, resiste como as cicatrizes na face de João Carranca, como o ciclo de vida e morte que anda por toda a parte, como as múltiplas possibilidades da canção, depósito da economia afetiva da multidão. A voz é navalha no ar, no ânimo, no corpo, na carne, alvos constantes dos ataques impiedosos do acaso e das causas externas. Por esta razão, cantar é mais do que lembrar, mais do que viver. Cantar é também refazer, resistir. O canto “encarnado” de Juçara Marçal, resiste.

Bernardo Oliveira

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