O Problema da Ginga
"Conhecemos a ginga como um movimento de avanço e recuo, um negaceio
feito com o corpo, uma forma de deslocamento reto ou circular; este
movimento de dança varia de ritmo e velocidade, e tal como nos recordamos
dele, assim de pronto, ele está relacionado com a prática da capoeira. Ou seja,
o capoeira ginga para adquirir velocidade; para dissimular o golpe; para
surpreender o adversário com seu movimento; para escapar ao golpe do
adversário. A ginga é, pois, um movimento equilibrador para aquele que a
pratica; desequilibrador, para aquele que não a pratica. Ela elimina surpresas
para quem a pratica; e gera movimentos surpreendentes para aquele que não
a pratica.
Estendamos agora este nosso conceito em duas direções. A primeira direção nos faculta entender que existem dois tipos de ginga; a profana e a religiosa ou sagrada. Na origem, elas eram uma só, mas se separaram ao longo da história.
A principal diferença entre a ginga profana e a ginga sagrada é formal: (a) a ginga profana é “retilínea”, enquanto a ginga sagrada é (b) “circular”, baseada nos princípios das forças centrífuga e centrípeta. Contudo, essa diferença não pode ser entendida rigidamente. Por exemplo, no Brasil, ambas estão muito enlaçadas, como vemos no “caráter circular” da capoeira d’Angola e no amplo uso da “ginga retilínea” no candomblé e na umbanda. De fato, na ruptura entre ambas as formas de ginga, houve dois processos: ( a) um foi evolutivo dentro da cultura em referência, como no caso do Egito dos faraós; (b) outro, imposto por força exterior, como a escravidão organizada modernamente pelos europeus. Nesse último caso, deduzo que a fragmentação das gingas resultou da violência cultural da dissociação escravista.
A segunda extensão dessa ideia básica refere-se a dois momentos na cultura humana: (a) num primeiro momento, onde predominavam as mentalidades coletivas, a ginga era uma forma de expressão cultural global; ( b) num segundo momento, com o processo civilizatório, uma parte das culturas humanas deixou de lado seu desempenho mental coletivo, e, consequentemente, a ginga.
Não precisamos aceitar estas ideias como verdades, apenas como hipóteses
de trabalho. Feita esta aceitação, podemos deixar de lado aspectos complexos
de pesquisa, e tentar instrumentalizar os resultados.
a) Ginga e Mentalidade
Nas culturas anteriores à escrita e ao indivíduo, o “Nós” e o “Eu” eram a
mesma coisa. A Cultura era um produto concreto, e mesmo todos os membros
do grupo eram entendidos como um único membro. Nessas culturas de
mentalidade coletiva, não existiam “abstrações”, como “2+2=4”. Temos
comprovações do caráter concreto da “conjugação” do verbo, da enumeração
etc., que nos indicam a inexistência, nas chamadas “civilizações históricas”, da
abstração, tal como faz parte do nosso procedimento lógico corrente.
As implicações desta observação são evidentes. O grupo humano primitivo não se separava dos outros animais, mas os considerava manifestações igualitárias de um coletivo único. Este coletivo também envolvia os “reinos” vegetal e mineral, de modo que os desequilíbrios gerados pela necessidade de sobrevivência requeriam um código sistemático de “mesuras” e obrigações que se estabeleciam mutuamente, devido a cada mudança concreta de situação.
É preciso pedir licença ao “grupo dos leões” para matar um leão; ao “grupo das gazelas”, para caçar as gazelas; ao “grupo dos arbustos”, para arrancar um arbusto; e assim sucessivamente, até que, ao longo de milênios, há todos um ritual de convivência das “três ordens da natureza”. Este ritual de convivência avançou lenta ou rapidamente (depende do ponto-de-vista) ao longo das experiências da horda primitiva e das sociedades paleolítica e neolítica, até se constituir numa grande explicação da natureza e da sociedade, onde entidades ou espíritos-gênios assumiram a representação dos grupos considerados. Chegávamos, portanto, à religião como um código de relações mágicas (não-racionais) com a natureza, e à definição mágica de seus diferentes níveis de mediatização. Nesses níveis, a ginga desempenhava importante papel. Que tipo de mentalidade tínhamos aqui? Como o demonstra o conhecimento das religiões ditas “crenças” ou das religiões ditas “complexas” o universo de suas relações era absolutamente mágico, isto é, alicerçado em relações de causa e efeito, que são falsas do ponto-de-vista lógico.
Do ponto de vista lógico, o crocodilo não é o senhor do rio, nem torna sagrado o que ele come; Apolo não efetua curas em determinados lugares do hemisfério norte; ou muito menos Nossa Senhora se manifesta a diferentes povos sob diferentes formas, para depois intermediar os interesses desses povos junto a Jesus, nascido na Judeia, já que ele também é uma parte de Deus. Essas assertivas, tomadas como afirmação, são absolutamente absurdas, do ponto-de-vista lógico.
No entanto, que força estranha, que mentalidade é esta que pode “compreender” ou acreditar em tais explicações? Ou melhor, que tipo de experiência histórica é esta, que permite extrair tal tipo de conclusões da vida social vivida?
Este tipo de mentalidade é a mentalidade primitiva. Este tipo de experiência histórica das comunidades primitivas, onde os bandos de homens são apenas um “espírito”, uma “ordem” natural que caminha na própria natureza, uma espécie de comichão na superfície do universo.
E apesar destas percepções aparentemente erradas serem hoje traduzidas pelo oposto de “lógico”, ou seja, como irracionais, a seu turno e a seu tempo elas se constituíram na lógica específica da Humanidade. Houve um tempo histórico, do qual apenas recentemente nos destacamos, em que a lógica, a compreensão superior da espécie humana estava na religião – nesta anti- razão! - e não nos manuais de lógica ou nas universidades.
O que quero dizer com isto? Quero dizer que as categorias hoje opostas do “lógico” e do “histórico”, em seus conteúdos, são definições recentes. Seus conteúdos como ferramentas humanas são verdades relativas, variam ao longo do tempo, e não podem ser compreendidas como expressão universal da experiência de “todas” as culturas, porque “todas” implica necessariamente na exclusão de algumas.
Quero dizer que, num determinado momento que compreende talvez 99% do tempo de existência humana, os homens se guiaram exclusivamente, ou quase, por critérios hoje irracionais, e que funcionavam para tais homens. Tais critérios sobreviveram da mentalidade coletiva de então sob a forma de religião. Contudo, se intentarmos adentrar esta mentalidade, então os seus mecanismos de funcionamento se nos aparecem como cada vez menos irracionais, ou seja, conseguimos perceber que a irracionalidade é uma forma de racionalidade, um produto histórico concreto e, consequentemente, possível de ser desvendado, em seus grandes traços, à nossa compreensão. A racionalidade de um grupo de homens que não tem explicação para o relâmpago e o trovão é necessariamente diferente daquela de outro grupo de homens, que tem uma explicação experimental para o relâmpago e o trovão. Daí não se pode concluir que o primeiro grupo se obstinasse a viver sem esta explicação; é claro que ele elaboraria uma explicação, baseada em falsa relação de causa e efeito, para a ciência contemporânea. O efeito social da explicação far-se-ia sentir no desempenho da vida em grupo, por critérios que nós hoje classificaríamos de “mais eficazes” ou “menos eficazes”.
Cada grupo viveria com o resultado de suas experiências, ou seja, das alterações introduzidas, caminhando por esta via de diferenças para a separação de outros grupos. Simplificando, podemos dizer que o somatório das alterações de mentalidade de um grupo, resultado de sua prática histórica, o empurra para um certo tipo de especialização possível ou de outro. Neste um milhão de anos que nos separa da “horda hominídea” quase pura, há um conjunto numericamente limitado de experiências humanas possíveis, que em breve será “objeto” de “seriação matemática”. Este conjunto limitado “explica” os resultados possíveis – e prováveis – da experiência histórica humana. Tal conjunto limita não apenas o universo possível da especialização humana, como, o que é mais importante, limita o universo provável de especialização de cada grupo. Desvendado, o que de fato deve haver ocorrido, cabe-nos a análise efetiva dos processos detectáveis arqueológica e antropologicamente, para reforçar nossas hipóteses explicativas.
Uma das questões mais interessantes associadas com esta problemática do trabalho e da especialização, e das mentalidades a ela correlacionadas, é a da alienação acarretada pela dominação. Parece que a alienação natural, ou seja, aquela oriunda da impotência do grupo diante das forças naturais, é de conteúdo diferente da alienação social, ou seja, da explicação de causalidade falsa mantida por interesse social de dominação. A dominação social, nesse caso, aprofundaria e estenderia as alienações “ingênuas e específicas”, por uma via de estruturas institucionais, para a repartição desigual da riqueza e para a criação de “religiões” - complexas e abstratas visões-de-mundo, com os livros sagrados etc.
Um indicador interessante aqui é que, quanto mais nos afastamos, ao longo do tempo histórico, para as religiões “menos complexas” ou mais simples, menos “alienado” parece ser seu aparato, simples intermediação com as forças da natureza. Contrariamente, nas religiões ditas “complexas”, das sociedades civilizadas, o aparato desenvolveu-se a um ponto de estabelecer-se a ruptura entre a cadeia de falsas causalidades e os procedimentos rituais que sobre ela atuam.
No entanto, os resultados, isto é, os “milagres”, mudança de estado material etc., continuam sendo relatáveis em ambos os casos, o que demonstra a “eficiência” do processo alienatório como modo de tratamento da alma coletiva.
Então aqui podemos inserir mais um aspecto da ginga: ela é um meio de
energização, um mecanismo para “carregar a bateria” da alienação coletiva.
Ginga e Energia Mental
A energia mental ou psíquica tem sido apreciada e canalizada desde a horda
primitiva, embora a sua cadeia de causalidades, como frisamos, não tenha sido
compreendida da mesma maneira que pelos nossos contemporâneos. As
diferentes culturas ao longo do tempo mapearam e criaram mecanismos de
concentração destas formas de energia elétrica, geradas e/ou assimiladas e/ou
retransmissíveis pelos corpos animais. À grande concentração de energia
mental, ou canalizada mentalmente, chamamos correntemente de “Fé”. É
interessante como a fé, como processo de projeção energética, permaneceu até hoje como assunto religioso, que não é analisado – pelo menos em grande
escala - pelas instituições ditas científicas. No entanto, a frase de Jesus, “a fé
remove montanhas” ou os comentários de Buda, quando diz que os indivíduos
de sua época que queriam impressionar os outros se dedicavam a levitar, nos
dão uma indicação do extraordinário papel social desempenhado nas
sociedades pré-industriais pela concentração mental.
Há dois lugares hoje no Brasil onde se pode apreciar os efeitos da “fé” ou da “projeção energética corporal”: a) templos religiosos; b) academias de luta. Nos templos religiosos da quimbanda, do candomblé e da umbanda, como no kardecismo, é possível estudarmos os prodígios da troca de energia humana, em múltiplos aspectos. Nas academias da luta, ou seja, u-shu, kung-fu, karatê, aiki-do, capoeira e algumas escolas de jiu-jitsu autênticas, é possível estudarmos os efeitos resultantes desta potenciação corporal. Um indivíduo pode desfechar um golpe com o pé, a mão ou cabeça igual ao impacto de uma bala de calibre 45; pode ler o seu pensamento; ou “interpretar” seus registros genéticos que encerram um futuro possível.
Tanto nos templos religiosos como nas academias de luta, o que se estará presenciando são apenas restos. Restos dos poderosos efeitos das gingas sagrada e profana, que guiaram durante milênios o desempenho “irracional” das sociedades humanas. E aqui chegamos a um ponto muito importante. Nas sociedades primitivas usava-se o corpo individual como parte do corpo coletivo (do grupo) para receptar energia eletromagnética das forças da natureza, em ampla integração com elas. Esta era a verdadeira sabedoria. Esta a lógica mais poderosa. Ela propiciava a cura, o transe hipnótico, visões proféticas sobre o grupo. A ginga era o modo de mover o corpo, até tornar tudo vazio, fundindo mente e corpo num único movimento. Daí advinha o transe hipnótico, e a potenciação procurada pelo grupo.
Agora podemos compreender as implicações filosóficas da admissão de um “estágio de ginga” para as culturas humanas, como há os estágios paleolítico ou neolítico, do ponto-de-vista tecnológico e produtivo-material.
Assim como podemos “recuperar” instrumentos paleolíticos, como um machado golpe-de-punho ou uma agulha de osso, podemos “recuperar” a ginga das culturas gingantes e entender como elas funcionavam, ou até nos apropriarmos de suas ferramentas culturais.
Poderia alguém argumentar que esta é uma “ideia de museu”. Mas o museu modernamente vem sendo considerado não mais como uma vitrina iluminista de culturas mortas e assassinadas, mas um lugar onde se discutem outras culturas, vivas ou mortas; um lugar onde se parte daí para fazer cultura. Por exemplo, para o centenário da Abolição, apresentei um projeto de criação de um museu vivo de cultura negra, que obviamente também é um museu negro de cultura viva. Infelizmente, a ideia não foi aproveitada.
No caso da cultura negra, grande parte dos instrumentos materiais de cultura ainda estão vivos, embora simplificados. Para dar um exemplo, na África existem sete tipos de gungo ou berimbau, mas no Brasil só temos um único tipo. Os sete berimbaus africanos têm significado sagrado diferente entre eles, referindo-se a diferentes entidades e diferentes estados culturais grupais. Essa diferença foi perdida na América, porque juntaram-se culturas diferentes e criou-se, é evidente, um novo significado, uma nova leitura para um conceito síntese.
A importância da preservação dos instrumentos materiais para a prática da ginga revela o caráter multifacético da preservação da própria cultura. Pode-se esquecer as sete formas sagradas do berimbau, mas não se perde o berimbau, e a sua função convocatória. Se a cultura não pode se reproduzir pelo seu máximo, ela se reproduzirá pelo seu mínimo, mas ela ainda será produzida.
É interessante notar o aspecto provocativo de uma cultura que se reprime: ela se reduz, mas, ao mesmo tempo, se concentra: ela caminha por uma centralidade, diminui os seus gestos expansivos, mas mantém-se por gestos essenciativos.
A cooperação do atabaque, ou do tambor em geral, com o berimbau, ou qualquer instrumento de corda, tem uma função abertamente alucinatória. Ela visa desligar os ouvintes-dançarinos da realidade circundante, e introduzi-los no reino comum do sonho, no processo da potenciação da mente coletiva. Ela convoca o mundo fronteiriço com os mortos.
Por esta via, a cultura negra se recria, levanta das cinzas, e oferece-se como
uma festa ao corpo entreaberto daqueles que a assumem. Através do movimento rítmico é possível “retornar” a uma culturalidade reprimida, e
“assenhorear-se do passado”. Tal era o processo de identificação coletiva nas
culturas dravidi, egípcia, etíope, daomeana etc., antigas. E tal é o processo
hoje, nos “terreiros” de capoeira, umbanda, candomblé, quimbanda etc., no
que se refere ao Brasil.
[BARBOSA, Wilson do Nascimento. Ginga e cosmovisão. In. Atrás do muro da noite: dinâmicas das culturas afro-brasileiras. RUFINO DOS SANTOS, Joel; BARBOSA, Wilson do Nascimento. Brasília: Ministério da Cultura. Fundação Cultural Palmares, 1994, p. 25-47. (Biblioteca Palmares, v. 1)]
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