(Este texto foi publicado com alterações consideráveis na Revista Arquivo em Cartaz publicada em 2016. A revista pode ser baixada aqui.)
Tornou-se comum afirmar as origens do samba urbano carioca em relação imediata com a construção de uma identidade nacional, projetada sob o paradigma da sociedade industrial e da cultura de massas.
Por exemplo, utilizando cenas do filme de Brás Cubas de Julio Bressane em que um crânio canta uma canção para produzir um elo entre Machado de Assis e Cartola. Para sugerir o Cartola mulherengo, uma cena de Aviso aos Navegantes, de Watson Macedo em que Oscarito e José Lewgoy — a chanchada descontextualizada para fins metalinguísticos. As citações à Orson Welles e à Rio Zona Norte também des-historicizam a figura de Cartola, fazendo-o flutuar entre elementos alienígenas, aparentemente sem sentido para a cronologia dos fatos, mas introduzindo uma informação de caráter poético. Montagem de imagens de arquivo nos moldes daquela protagonizada por Santiago Alvarez, encenação da realidade passada, samples de filmes que ora situam o momento histórico, ora constituem uma intervenção criativa. “A utilização de arquivos na realização de um documentário, além de trazer cores e viés que são muito próprios de determinados personagens e momentos históricos, é ainda mais importante num país como o Brasil, que tem a memória fragmentada”, declarou Hilton Lacerda em entrevista, marcando posição tanto em relação à construção histórica como também acerca das dificuldades de se trabalhar os arquivos de forma criativa. Com isso, os diretores descentralizam a figura de subjetividade e a expressão coletiva para favorecer a criação. Cartola não representa a cultura ou a identidade nacional, como ocorreu ao samba em todos os momentos em que foi apropriado política e culturalmente para fins determinados, primeiramente protagonizados pelas forças políticas dos anos 30, posteriormente pelo jugo conservador das classes culturais.
Ao invés da linha do tempo, o cosmos da cultura. Em substituição ao fortalecimento da tradição, a capacidade de renovação. Em oposição à reverência do passado, a capacidade de experimentação. Cartola — Música para os olhos apresenta o artista como um astro que atravessa o cosmos da cultura brasileira, uma potência de transfiguração do samba e de suas formas sociais e culturais.
2 SCHVARZMAN, Sheila. “O rádio e o cinema no Brasil nos anos 1930”. In: Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 29., 2006, Brasília. Anais do XXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Brasília, 2006.
3 “Quando um homem que quer fazer grandes coisas tem necessidade do passado, é por intermédio da história monumental que ele se apropria deste passado; ao contrário, aquele que se compraz com a rotina do hábito e o respeito pelas coisas antigas cultiva o passado como historiador tradicionalista; somente aquele que é oprimido pelo presente e quer a todo custo livrar-se deste fardo, sente a necessidade de uma história crítica, quer dizer, de uma história que julga e condena. A transposição imprudente destas espécies ocasiona muitas desgraças: o espírito que critica sem necessidade, aquele que conserva sem piedade e aquele que conhece a grandeza sem ser capaz de realizar grandes coisas...” NIETZSCHE, F.. “II Consideração intempestiva sobre a utilidade e os inconvenientes da história para a vida.” In.: Escritos sobre História. Tradução, apresentação e notas de Noéli Correia de Melo Sobrinho. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2005.
4 FOUCAULT, M. “Nietzsche, a genealogia, a história” in. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1999, pp. 15-37.
5 NIETZSCHE, F.. “II Consideração intempestiva sobre a utilidade e os inconvenientes da história para a vida.” In.: Escritos sobre História. Tradução, apresentação e notas de Noéli Correia de Melo Sobrinho. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2005, p. 73.
6 MAUÉS, A. M.; SOUZA, K. Y. S; ALMEIDA, I. R.. “Não tem tradução”: O cinema como elemento ufanista ante a imposição de valores pela indústria cultural. In: intercom Norte, 2007, Belém. VI Congresso de Ciências da Comunicação, 2007.
7 “Quando se fala em contrato autoral, se pensa nos caminhos que abrem e fecham os acessos por onde transita a realização do filme. A realização de Cartola enfrentou uma trajetória extensa até ter sua primeira exibição no Festival do Rio, em 2006. O grande entrave foi a liberação de direitos autorais. A obra utilizou muito material de arquivo: trechos de 37 outros filmes e reportagens televisivas, além de 33 músicas interpretadas pelo próprio Cartola e outros cantores. Dos 1,6 milhões de reais investidos, 600 mil foram destinados ao pagamento de direitos autorais. A Raccord, produtora do documentário, levou oito anos para captar os recursos suficientes para pagar os direitos, conseguir as autorizações e realizar o filme. ‘Além de determinar a viabilidade ou não de um filme feito a partir de arquivos, há complicadores adicionais gerados pelas leis de direitos autorais’, explica Patrícia Cornils, assistente de finalização de Cartola. Ela cita dois exemplos: uma imagem da extinta TV Tupi, de Pixinguinha, pode ser comprada, mas só pode ser usada se todas as outras pessoas que aparecem na imagem autorizarem. Uma vez que 90% dessas pessoas já morreram, os produtores precisam encontrar seus herdeiros para conseguir a autorização, o que, muitas vezes, não é tarefa fácil. ‘Com a mobilização de tantos recursos e esforço para ter acesso a todos esses arquivos, Cartola termina sendo uma homenagem à memória brasileira e um exemplo da dificuldade de se ter acesso a ela” conclui Cornils. In: CRUZ, Graziela Aparecida da. A construção biográfica no documentário brasileiro: Uma análise de “Nelson Freire”, “Vinicius” e “Cartola — música para os olhos”. Dissertação de mestrado, Escola de Belas Artes da UFMG, 2011.
8 Hilton Lacerda em entrevista à Marina Suassuna. SUASSUNA, M. “Por uma memória do documentário musical brasileiro”. Publicado originalmente na revista Outros Críticos, n. 10, 2015.
A urbanização e a reforma do Estado que se desenha a partir da Revolução de 1930, adquire força com a expansão da radiodifusão, da produção fonográfica e da indústria do espetáculos. É ainda mais comum ainda afirmar que “o papel de representação da identidade nacional através do samba foi intentado pelo Estado varguista.” O samba permite a catalisação de determinados mitos de fundação e formação, que se desdobrarão na afirmação de uma identidade unificadora, capaz de produzir a sensação de pertencimento e coesão em âmbito nacional.
A partir da década de 1930, o rádio se torna um meio de comunicação popular de maior alcance, efeito estimulado por um decreto publicado durante o governo Vargas em 1932 que autoriza as emissoras a veicular propaganda comercial em suas transmissões. Criado em 1939, o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) se encarregará de vincular a imagem do governo de Vargas aos estratos populares, utilizando-se do samba como solda. A Rádio Nacional se torna patrimônio de Estado, e, conforme a proliferação dos movimentos nacionalistas que se alastram pela Europa, irá operar a catalisação da identidade nacional promovendo a consolidação da política trabalhista da Era Vargas. A maioria dos filmes produzidos no Rio de Janeiro durante os anos 1930 e 1940 tem na música popular como centro do argumento, da narrativa e da ação, alçando artistas como Ciro Monteiro e João de Barro (o Braguinha) à popularidade — Braguinha inclusive foi um dos roteiristas de filmes como Alô Alô Carnaval (1936), de Adhemar Gonzaga.
É perceptível o movimento através do qual as relações entre samba e cinema no Brasil foram, na maioria das vezes, mediadas por determinados modelos de compreensão histórica, determinados a partir do ponto de vista da construção de uma unidade nacional, de uma determinada ideia de “cultura brasileira”. É igualmente perceptível que esta força interpretativa atravessa o conjunto de ideias e práticas enquanto uma “vontade de tradição” que descreve a cultura e a sociedade brasileira. Para conectar a precariedade dos elos perdidos em um continuum histórico capaz de fundamentar a existência de uma “tradição”, é preciso reproduzir a manutenção do nexo causal entre a sucessão de acontecimentos históricos e culturais, tarefa preeminente atribuída aos históriadores brasileiros, mas presente nas manifestações artísticas associadas às artes no país. Neste sentido, tanto o samba quanto o cinema brasileiros constituiram-se como dispositivos privilegiados para a sondagem das formas com as quais lidamos com a memória e com os métodos de construção das narrativas históricas. Na relação entre ambos, a questão se multiplica e adquire contornos dramáticos, associados a uma disputa pelos sentidos da tradição brasileira e as oscilações entre potência transformadora e revisionismo conservador.
Diante das configurações históricas que se delinearam através do século XX em estudos e obras de arte, é possível identificar alguns dos modelos históricos subjacentes aos modos de se contar, tematizar ou problematizar o samba urbano carioca e sua história. As reflexões do filósofo alemão Friedrich Nietzsche e do francês, Michel Foucault acerca dos modelos históricos e sua repercussão na formação e na perspectiva prática e intelectual da cultura e da sociedade nos servirão como arcabouço teórico para nosso breve percurso. Com o objetivo de denunciar “o excesso de história” (ein Uebermasse von Historie) que caracteriza a era moderna, Nietzsche concebia os modelos históricos a partir das ideias de história monumental (monumentalische, isto é, a história tomada a partir de uma referência, um marco que fundamenta a “história universal”), história tradicionalista (antiquarische, a história conservadora, construída como um rito de veneração pelo passado e pela tradição) e a história crítica (Kritische, a revisão, a crise, a desconfiança). Foucault, por sua vez, pensava poder livrar-se da perspectiva cristã questionando a “origem” religiosa e metafísica do mundo e do homem, contrapondo a este modelo as ideias de “procedência” (Herkunft, “a linhagem, dimensão corpórea, material da história”), “emergência” (Entstehung, “ponto de surgimento, as leis, regras de controle”) e “invenção” (Erftndung, “artifício, segredo de fabricação — a religião, o conhecimento, um ato de criação”). Em ambos os casos, trata-se de determinar, como escreve Nietzsche, a correlação entre as formas históricas e a “‘força plástica’ (plastische Kraft) do indivíduo, do povo ou da cultura em questão.” Explicando: “esta força que permite a alguém desenvolver-se de maneira original e independente, transformar e assimilar as coisas passadas ou estranhas, curar as suas feridas, reparar as suas perdas, reconstituir por si próprio as formas destruídas.” Trata-se, portanto, de identificar o tipo de relação que um indivíduo, povo ou cultura mantém com seu passado por intermédio das formas históricas: se esta relação os mantém como joguetes ou artífices da cultura e da política, se alimenta a capacidade de experimentação e renovação política e cultural, ou, se, ao contrário, afunda os seres viventes na veneração do passado e na impotência criativa.
A presença do samba na cultura brasileira não é mediada por sua atividade real e efetiva no âmbito das transformações culturais, essencialmente experimental, criativa e irredutível a quaisquer tradições, tal como na formação do samba urbano do Estácio ou do Cacique de Ramos. Mas por determinados modelos de compreensão e perspectiva históricas que submetem essa atividade real ao primado ideológico da política e da cultura. O “cinema falado”, como preconizou Noel Rosa, não era exatamente o culpado pela situação, mas também serviu como instrumento politico. Composta em 1933, a canção “Não tem tradução” reporta à mudança de hábitos que o Estado Novo, a industrialização e o rádio estimulam. A partir do sucesso do filme “A Voz do Carnaval”, de 1933, inicia-se um ciclo de produção cinematográfica conhecido como Chanchada: roteiros prosaicos que serviam como pretexto para a apresentação de artistas do radio, que antecipavam as canções que seriam lançadas durante o carnaval. No período da Chanchada, o cinema trazia o samba para o centro das atenções como expressão popular por excelência de um país que se pretendia unificado pela força do trabalho, da indústria e do progresso. O cinema cortejava as ideias de popular/nacional, além de uma concepção do samba delineada através do poder — pois a Chanchada não ia às vias de fato com as batucadas do morro e do asfalto, mas apresentava um samba ensaiado, domesticado e paródico. O musical trabalhista e a renovação da cultura nacional/popular impressa em Favella dos Meus Amores, de Humberto Mauro (1935) e Alô Alô Carnaval, de Adhemar Gonzaga (1936), evoluíram para a Chanchada musical, que vigorou por 30 anos em obras como Este mundo é um pandeiro (1946) e Não adianta chorar (1945), ambos de Watson Macedo, Garotas e Samba (1957), Carlos Manga ou Carnaval Atlântida (1952), de José Carlos Burle. Samba em Brasília (1960), de Watson Macedo, que apesar do título se passa no Rio de Janeiro, se apresenta nos estertores do gênero, que acompanha a dissolução iminente da Segunda e Terceira Repúblicas. Aqui seria possível identificar algo que passa ao largo de uma história Crítica. Estamos no terreno da construção de uma identidade: por um lado, através do caráter monumental do samba, tomado como marco da “brasilidade”; de outro, pelo caráter antiquário do povo, que toma o samba como uma tradição profunda e legítima, testemunha de seu pertencimento a uma tradição coesa e, agora sim, “nacional”.
Mais tarde, quando o país mergulhava em um período ditatorial, o samba representava não só o resgate do popular/nacional, como também uma força expressiva que se pretendia alternativa à cultura de massas. A “Verdade” que legitima o “samba tradicional” respaldava-se na sabedoria dos antigos enquanto os legitimadores desses passado de glórias, tematizado através de documentários didáticos e portraits poéticos e nostálgicos. É o momento em que o cinema debruçava-se sobre os retratos, lançando o cinema na era do resgate e da reverência: Heitor dos Prazeres, de Antônio Carlos Fontoura (1965), Pixinguinha, de João Carlos Horta (1969), Moreira da Silva, de Ivan Cardoso (1973) e Nelson Cavaquinho, de Leon Hirzman (1969) constituem exemplos deste momento. Ou o didatismo cepecista que se percebe em Maxixe, a dança perdida, de Alex Viany (1980) e Partido Alto, de Leon Hirzman (1982), nos quais se procura introduzir as manifestações culturais periféricas e suburbanas às populações urbanizadas do sudeste. Aprofunda-se o conteúdo antiquário, a veneração por uma tradição, seja pelo simples retrato, seja pela experiência do registro. O samba permanece simultaneamente como portador e sucedâneo do nacional/popular, representando e assegurando o conteúdo daquilo que é próprio da cultura brasileira, vinculando-o a uma perspectiva progressista: salvar o samba implica em salvar o povo.
Quando, anos mais tarde, emerge o digital, o samba deixa de expressar um sentimento, um conceito ou uma representação total, e passa a ser retratado como espaço de experiência. Os modelos históricos são baralhados e remetidos à perspectiva dos autores. Os documentários retratam as rodas de samba, os desfiles, os encontros de botequim. Emergem os retratos da era do digital e da experiência, como Aldir Blanc, dois pra lá, dois pra cá, de André Sampaio (2004), Onde a Coruja dorme (2006) de Simplício Neto e Marcia Derraik, Guilherme de Brito, de André Sampaio (2008), Agoniza, mas não morre, de Gabriel Meyohas e Maúra Motta (2011), Paulo Vanzolini – Um homem de Moral, de Ricardo Dias (2008). Ou, ainda, alguns retratos decorrentes de resgate de arquivos, como Batatinha, Poeta do Samba (2008) ou Clementina de Jesus — Rainha Quelé (2011). Nesses filmes, a experiência dos anos 60 não é simplesmente “aprofundada”, mas, pelo contrário, emerge para a superfície dos contatos, dos agenciamentos, dos encontros. Não se trata mais de retratar, mas de confundir o processo cinematográfico com a aproximação do samba e dos sambistas. A classe media já não buscar produzir um conhecimento daquela experiência distante, mas vivenciá-la até confundir-se com ela. Este momento ocorre em paralelo à construção do chamado “Samba da Lapa”, em que a classe média produz seus sambistas e alça-os ao grande mercado. A veneração conservadora adquire, assim, um aspecto monumental: o samba é, sim, expressão maxima da cultura brasileira e, em última instância, daquilo que é propriamente “brasileiro”.
Há, contudo, um ponto fora da curva: chama-se Cartola — Música para os olhos (2006), de Lírio Ferreira. Poderíamos citar também Tudo é Brasil (1997), de Rogério Sganzerla, mas trata-se de uma obra que não se concentra somente sobre o samba ou sobre um sambista. Documentário dirigido pelos pernambucanos Lírio Ferreira e Hilton Lacerda, respectivamente diretores de Baile Perfumado e Tatuagem, Cartola — Música para os olhos se utiliza de intertextualidade para construir uma imagem poética, parcial e fragmentária, do homem, da obra e, da própria noção de documentário. Aqui não se trata do registro positivista da “verdade” ou da “tradição”, mas de uma poética do confronto e da poesia associada à História crítica, tal como preconizada por Nietzsche. A construção concreta do filme, no entanto, foi alvo de uma série de entraves jurídicos e bucrocráticos, que explicam um pouco porque nos atemos à construção histórica monumental/antiquária, ou a um modelo histórico que não ressalta o motor do ato de criação: a experimentação. Para experimentar com essas imagens e sentidos, tal como o filme nos oferece, a questão juridical precede à questão moral/gnoseológica.
É perceptível o movimento através do qual as relações entre samba e cinema no Brasil foram, na maioria das vezes, mediadas por determinados modelos de compreensão histórica, determinados a partir do ponto de vista da construção de uma unidade nacional, de uma determinada ideia de “cultura brasileira”. É igualmente perceptível que esta força interpretativa atravessa o conjunto de ideias e práticas enquanto uma “vontade de tradição” que descreve a cultura e a sociedade brasileira. Para conectar a precariedade dos elos perdidos em um continuum histórico capaz de fundamentar a existência de uma “tradição”, é preciso reproduzir a manutenção do nexo causal entre a sucessão de acontecimentos históricos e culturais, tarefa preeminente atribuída aos históriadores brasileiros, mas presente nas manifestações artísticas associadas às artes no país. Neste sentido, tanto o samba quanto o cinema brasileiros constituiram-se como dispositivos privilegiados para a sondagem das formas com as quais lidamos com a memória e com os métodos de construção das narrativas históricas. Na relação entre ambos, a questão se multiplica e adquire contornos dramáticos, associados a uma disputa pelos sentidos da tradição brasileira e as oscilações entre potência transformadora e revisionismo conservador.
Diante das configurações históricas que se delinearam através do século XX em estudos e obras de arte, é possível identificar alguns dos modelos históricos subjacentes aos modos de se contar, tematizar ou problematizar o samba urbano carioca e sua história. As reflexões do filósofo alemão Friedrich Nietzsche e do francês, Michel Foucault acerca dos modelos históricos e sua repercussão na formação e na perspectiva prática e intelectual da cultura e da sociedade nos servirão como arcabouço teórico para nosso breve percurso. Com o objetivo de denunciar “o excesso de história” (ein Uebermasse von Historie) que caracteriza a era moderna, Nietzsche concebia os modelos históricos a partir das ideias de história monumental (monumentalische, isto é, a história tomada a partir de uma referência, um marco que fundamenta a “história universal”), história tradicionalista (antiquarische, a história conservadora, construída como um rito de veneração pelo passado e pela tradição) e a história crítica (Kritische, a revisão, a crise, a desconfiança). Foucault, por sua vez, pensava poder livrar-se da perspectiva cristã questionando a “origem” religiosa e metafísica do mundo e do homem, contrapondo a este modelo as ideias de “procedência” (Herkunft, “a linhagem, dimensão corpórea, material da história”), “emergência” (Entstehung, “ponto de surgimento, as leis, regras de controle”) e “invenção” (Erftndung, “artifício, segredo de fabricação — a religião, o conhecimento, um ato de criação”). Em ambos os casos, trata-se de determinar, como escreve Nietzsche, a correlação entre as formas históricas e a “‘força plástica’ (plastische Kraft) do indivíduo, do povo ou da cultura em questão.” Explicando: “esta força que permite a alguém desenvolver-se de maneira original e independente, transformar e assimilar as coisas passadas ou estranhas, curar as suas feridas, reparar as suas perdas, reconstituir por si próprio as formas destruídas.” Trata-se, portanto, de identificar o tipo de relação que um indivíduo, povo ou cultura mantém com seu passado por intermédio das formas históricas: se esta relação os mantém como joguetes ou artífices da cultura e da política, se alimenta a capacidade de experimentação e renovação política e cultural, ou, se, ao contrário, afunda os seres viventes na veneração do passado e na impotência criativa.
A presença do samba na cultura brasileira não é mediada por sua atividade real e efetiva no âmbito das transformações culturais, essencialmente experimental, criativa e irredutível a quaisquer tradições, tal como na formação do samba urbano do Estácio ou do Cacique de Ramos. Mas por determinados modelos de compreensão e perspectiva históricas que submetem essa atividade real ao primado ideológico da política e da cultura. O “cinema falado”, como preconizou Noel Rosa, não era exatamente o culpado pela situação, mas também serviu como instrumento politico. Composta em 1933, a canção “Não tem tradução” reporta à mudança de hábitos que o Estado Novo, a industrialização e o rádio estimulam. A partir do sucesso do filme “A Voz do Carnaval”, de 1933, inicia-se um ciclo de produção cinematográfica conhecido como Chanchada: roteiros prosaicos que serviam como pretexto para a apresentação de artistas do radio, que antecipavam as canções que seriam lançadas durante o carnaval. No período da Chanchada, o cinema trazia o samba para o centro das atenções como expressão popular por excelência de um país que se pretendia unificado pela força do trabalho, da indústria e do progresso. O cinema cortejava as ideias de popular/nacional, além de uma concepção do samba delineada através do poder — pois a Chanchada não ia às vias de fato com as batucadas do morro e do asfalto, mas apresentava um samba ensaiado, domesticado e paródico. O musical trabalhista e a renovação da cultura nacional/popular impressa em Favella dos Meus Amores, de Humberto Mauro (1935) e Alô Alô Carnaval, de Adhemar Gonzaga (1936), evoluíram para a Chanchada musical, que vigorou por 30 anos em obras como Este mundo é um pandeiro (1946) e Não adianta chorar (1945), ambos de Watson Macedo, Garotas e Samba (1957), Carlos Manga ou Carnaval Atlântida (1952), de José Carlos Burle. Samba em Brasília (1960), de Watson Macedo, que apesar do título se passa no Rio de Janeiro, se apresenta nos estertores do gênero, que acompanha a dissolução iminente da Segunda e Terceira Repúblicas. Aqui seria possível identificar algo que passa ao largo de uma história Crítica. Estamos no terreno da construção de uma identidade: por um lado, através do caráter monumental do samba, tomado como marco da “brasilidade”; de outro, pelo caráter antiquário do povo, que toma o samba como uma tradição profunda e legítima, testemunha de seu pertencimento a uma tradição coesa e, agora sim, “nacional”.
Mais tarde, quando o país mergulhava em um período ditatorial, o samba representava não só o resgate do popular/nacional, como também uma força expressiva que se pretendia alternativa à cultura de massas. A “Verdade” que legitima o “samba tradicional” respaldava-se na sabedoria dos antigos enquanto os legitimadores desses passado de glórias, tematizado através de documentários didáticos e portraits poéticos e nostálgicos. É o momento em que o cinema debruçava-se sobre os retratos, lançando o cinema na era do resgate e da reverência: Heitor dos Prazeres, de Antônio Carlos Fontoura (1965), Pixinguinha, de João Carlos Horta (1969), Moreira da Silva, de Ivan Cardoso (1973) e Nelson Cavaquinho, de Leon Hirzman (1969) constituem exemplos deste momento. Ou o didatismo cepecista que se percebe em Maxixe, a dança perdida, de Alex Viany (1980) e Partido Alto, de Leon Hirzman (1982), nos quais se procura introduzir as manifestações culturais periféricas e suburbanas às populações urbanizadas do sudeste. Aprofunda-se o conteúdo antiquário, a veneração por uma tradição, seja pelo simples retrato, seja pela experiência do registro. O samba permanece simultaneamente como portador e sucedâneo do nacional/popular, representando e assegurando o conteúdo daquilo que é próprio da cultura brasileira, vinculando-o a uma perspectiva progressista: salvar o samba implica em salvar o povo.
Quando, anos mais tarde, emerge o digital, o samba deixa de expressar um sentimento, um conceito ou uma representação total, e passa a ser retratado como espaço de experiência. Os modelos históricos são baralhados e remetidos à perspectiva dos autores. Os documentários retratam as rodas de samba, os desfiles, os encontros de botequim. Emergem os retratos da era do digital e da experiência, como Aldir Blanc, dois pra lá, dois pra cá, de André Sampaio (2004), Onde a Coruja dorme (2006) de Simplício Neto e Marcia Derraik, Guilherme de Brito, de André Sampaio (2008), Agoniza, mas não morre, de Gabriel Meyohas e Maúra Motta (2011), Paulo Vanzolini – Um homem de Moral, de Ricardo Dias (2008). Ou, ainda, alguns retratos decorrentes de resgate de arquivos, como Batatinha, Poeta do Samba (2008) ou Clementina de Jesus — Rainha Quelé (2011). Nesses filmes, a experiência dos anos 60 não é simplesmente “aprofundada”, mas, pelo contrário, emerge para a superfície dos contatos, dos agenciamentos, dos encontros. Não se trata mais de retratar, mas de confundir o processo cinematográfico com a aproximação do samba e dos sambistas. A classe media já não buscar produzir um conhecimento daquela experiência distante, mas vivenciá-la até confundir-se com ela. Este momento ocorre em paralelo à construção do chamado “Samba da Lapa”, em que a classe média produz seus sambistas e alça-os ao grande mercado. A veneração conservadora adquire, assim, um aspecto monumental: o samba é, sim, expressão maxima da cultura brasileira e, em última instância, daquilo que é propriamente “brasileiro”.
Há, contudo, um ponto fora da curva: chama-se Cartola — Música para os olhos (2006), de Lírio Ferreira. Poderíamos citar também Tudo é Brasil (1997), de Rogério Sganzerla, mas trata-se de uma obra que não se concentra somente sobre o samba ou sobre um sambista. Documentário dirigido pelos pernambucanos Lírio Ferreira e Hilton Lacerda, respectivamente diretores de Baile Perfumado e Tatuagem, Cartola — Música para os olhos se utiliza de intertextualidade para construir uma imagem poética, parcial e fragmentária, do homem, da obra e, da própria noção de documentário. Aqui não se trata do registro positivista da “verdade” ou da “tradição”, mas de uma poética do confronto e da poesia associada à História crítica, tal como preconizada por Nietzsche. A construção concreta do filme, no entanto, foi alvo de uma série de entraves jurídicos e bucrocráticos, que explicam um pouco porque nos atemos à construção histórica monumental/antiquária, ou a um modelo histórico que não ressalta o motor do ato de criação: a experimentação. Para experimentar com essas imagens e sentidos, tal como o filme nos oferece, a questão juridical precede à questão moral/gnoseológica.
Uma vez resolvidos os entraves jurídicos, Cartola — Música para os olhos foi realizado sobre uma ampla base de arquivos e referências, de modo a permitir uma intense intertextualidade entre as formas históricas e poéticas que atravessam as relações entre o cinema brasileiro e o samba. Com o intuito de produzir um curto-circuito nos fundamentos politicos e culturais que constituem um determinado modelo de identidade nacional, os diretores suspenderam a temporalidade cronológica através do cruzamento entre representações específicas, como as imagens das chanchadas e o cinema poético de Julio Bressane. Acabam por valorizar o aspecto inventivo da cultura em detrimento do aspecto sócio-histórico/documental, tanto da obra de Cartola, como do próprio filme através de artifícios de metalinguagem. Trata-se, portanto, de um documentário que se problematiza enquanto tal, já que abre mão de narrar a história, de documentá-la em sentido rigorosamente cronológico, que se recusa a iluminar supostos efeitos de causalidade, dirimindo as dúvidas e absorvendo as obscuridades em explicações claras e concisas. O procedimento documental de Cartola é essencialmente poético, entendido como uma abertura para produzir choques entre as diversas representações e suas tendências, sejam políticas, artísticas ou culturais. Não se trata portanto de “documentar”, reportando o espectador ao conhecimento do problema, mas oferecer uma experiência de ampliação e relativização do mito Cartola, estimulando este mesmo espectador a construir um mosaico de ideias e posibilidades. Cartola — Música para os olhos opera uma temporalidade difusa, submetida ao primado da imaginação, tomando Cartola como eixo sob o qual orbita esta constelação de imagens, que, no entanto, também emanam sua energia particular, influindo decisivamente no delineamento da importância do compositor brasileiro no século XX.
Por exemplo, utilizando cenas do filme de Brás Cubas de Julio Bressane em que um crânio canta uma canção para produzir um elo entre Machado de Assis e Cartola. Para sugerir o Cartola mulherengo, uma cena de Aviso aos Navegantes, de Watson Macedo em que Oscarito e José Lewgoy — a chanchada descontextualizada para fins metalinguísticos. As citações à Orson Welles e à Rio Zona Norte também des-historicizam a figura de Cartola, fazendo-o flutuar entre elementos alienígenas, aparentemente sem sentido para a cronologia dos fatos, mas introduzindo uma informação de caráter poético. Montagem de imagens de arquivo nos moldes daquela protagonizada por Santiago Alvarez, encenação da realidade passada, samples de filmes que ora situam o momento histórico, ora constituem uma intervenção criativa. “A utilização de arquivos na realização de um documentário, além de trazer cores e viés que são muito próprios de determinados personagens e momentos históricos, é ainda mais importante num país como o Brasil, que tem a memória fragmentada”, declarou Hilton Lacerda em entrevista, marcando posição tanto em relação à construção histórica como também acerca das dificuldades de se trabalhar os arquivos de forma criativa. Com isso, os diretores descentralizam a figura de subjetividade e a expressão coletiva para favorecer a criação. Cartola não representa a cultura ou a identidade nacional, como ocorreu ao samba em todos os momentos em que foi apropriado política e culturalmente para fins determinados, primeiramente protagonizados pelas forças políticas dos anos 30, posteriormente pelo jugo conservador das classes culturais.
Ao invés da linha do tempo, o cosmos da cultura. Em substituição ao fortalecimento da tradição, a capacidade de renovação. Em oposição à reverência do passado, a capacidade de experimentação. Cartola — Música para os olhos apresenta o artista como um astro que atravessa o cosmos da cultura brasileira, uma potência de transfiguração do samba e de suas formas sociais e culturais.
Notas
1 SIQUEIRA, Magno Bissoli. “Caixa preta: samba e identidade nacional na era Vargas – impacto do samba na formação da identidade na sociedade industrial, 1916-1945.” Tese de Doutorado, USP - FFLCH, 2004.
1 SIQUEIRA, Magno Bissoli. “Caixa preta: samba e identidade nacional na era Vargas – impacto do samba na formação da identidade na sociedade industrial, 1916-1945.” Tese de Doutorado, USP - FFLCH, 2004.
2 SCHVARZMAN, Sheila. “O rádio e o cinema no Brasil nos anos 1930”. In: Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 29., 2006, Brasília. Anais do XXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Brasília, 2006.
3 “Quando um homem que quer fazer grandes coisas tem necessidade do passado, é por intermédio da história monumental que ele se apropria deste passado; ao contrário, aquele que se compraz com a rotina do hábito e o respeito pelas coisas antigas cultiva o passado como historiador tradicionalista; somente aquele que é oprimido pelo presente e quer a todo custo livrar-se deste fardo, sente a necessidade de uma história crítica, quer dizer, de uma história que julga e condena. A transposição imprudente destas espécies ocasiona muitas desgraças: o espírito que critica sem necessidade, aquele que conserva sem piedade e aquele que conhece a grandeza sem ser capaz de realizar grandes coisas...” NIETZSCHE, F.. “II Consideração intempestiva sobre a utilidade e os inconvenientes da história para a vida.” In.: Escritos sobre História. Tradução, apresentação e notas de Noéli Correia de Melo Sobrinho. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2005.
4 FOUCAULT, M. “Nietzsche, a genealogia, a história” in. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1999, pp. 15-37.
5 NIETZSCHE, F.. “II Consideração intempestiva sobre a utilidade e os inconvenientes da história para a vida.” In.: Escritos sobre História. Tradução, apresentação e notas de Noéli Correia de Melo Sobrinho. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2005, p. 73.
6 MAUÉS, A. M.; SOUZA, K. Y. S; ALMEIDA, I. R.. “Não tem tradução”: O cinema como elemento ufanista ante a imposição de valores pela indústria cultural. In: intercom Norte, 2007, Belém. VI Congresso de Ciências da Comunicação, 2007.
7 “Quando se fala em contrato autoral, se pensa nos caminhos que abrem e fecham os acessos por onde transita a realização do filme. A realização de Cartola enfrentou uma trajetória extensa até ter sua primeira exibição no Festival do Rio, em 2006. O grande entrave foi a liberação de direitos autorais. A obra utilizou muito material de arquivo: trechos de 37 outros filmes e reportagens televisivas, além de 33 músicas interpretadas pelo próprio Cartola e outros cantores. Dos 1,6 milhões de reais investidos, 600 mil foram destinados ao pagamento de direitos autorais. A Raccord, produtora do documentário, levou oito anos para captar os recursos suficientes para pagar os direitos, conseguir as autorizações e realizar o filme. ‘Além de determinar a viabilidade ou não de um filme feito a partir de arquivos, há complicadores adicionais gerados pelas leis de direitos autorais’, explica Patrícia Cornils, assistente de finalização de Cartola. Ela cita dois exemplos: uma imagem da extinta TV Tupi, de Pixinguinha, pode ser comprada, mas só pode ser usada se todas as outras pessoas que aparecem na imagem autorizarem. Uma vez que 90% dessas pessoas já morreram, os produtores precisam encontrar seus herdeiros para conseguir a autorização, o que, muitas vezes, não é tarefa fácil. ‘Com a mobilização de tantos recursos e esforço para ter acesso a todos esses arquivos, Cartola termina sendo uma homenagem à memória brasileira e um exemplo da dificuldade de se ter acesso a ela” conclui Cornils. In: CRUZ, Graziela Aparecida da. A construção biográfica no documentário brasileiro: Uma análise de “Nelson Freire”, “Vinicius” e “Cartola — música para os olhos”. Dissertação de mestrado, Escola de Belas Artes da UFMG, 2011.
8 Hilton Lacerda em entrevista à Marina Suassuna. SUASSUNA, M. “Por uma memória do documentário musical brasileiro”. Publicado originalmente na revista Outros Críticos, n. 10, 2015.
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