quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

DISCO VOADOR E RODA DE SAMBA: QUE QUE TEM? não? (fluxo sem identidade, não pergunte)



O seu rosto está dirigido para o passado. O último anjo da história adquiriu a forma e a fórmula secreta do super-herói anglocentrado. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. Ele ignora a natureza da colonização, a natureza colonial. Mesmo considerando a possibilidade de usar “fósseis tecnológicos” como ferramentas para construir um futuro — o exemplo do blues e dos tambores que comunicam — aqui a tecnologia ainda é aliada dos encadeamentos progressivos e progressistas, plasmados sobre a prática desregulada de uma ciência vendida e seus tentáculos ideológicos. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. É na apologia da corrida espacial e do seu aparato técnico e cultural que mora o registro. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mesmo argumentando um embaralhamento da temporalidade, a imposição algorítmica anglófona demarca seu imaginário como mitologia colonial, de tal forma que se levarmos até as últimas consequências os componentes desses imaginário, encontraremos ali a proeminência de alguns privilégios revestindo a luta anticolonial negra. A natureza colonial caribenha e latina é atravessada por outros imaginários que não os coloniais, ligados a ideia de nave espacial e robô. E até mesmo a NASA. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. O design do conjunto de dados de treinamento é o componente mais crítico e vulnerável da arquitetura de redes neurais. A rede neural é treinada para reconhecer padrões em dados anteriores com a esperança de estender essa capacidade em dados futuros. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso. Mas, como já ocorreu várias vezes, se os dados de treinamento mostram um viés racial, de gênero e de classe, as redes neurais refletirão, amplificarão e distorcerão esse viés. Sistemas de reconhecimento facial que foram treinados em bancos de dados de rostos de pessoas brancas falharam miseravelmente em reconhecer os negros como humanos. Este é um problema chamado "sobreajuste": dada a abundância do poder de computação, uma rede neural mostrará a tendência a aprender demais, ou seja, fixar-se em um padrão superespecífico: é, portanto, necessário retirar alguns de seus resultados para tornar seu ímpeto de reconhecimento mais relaxado. Semelhante ao sobreajuste pode ser considerado o caso de "apofenia", como nas paisagens psicodélicas do Google DeepDream, nas quais as redes neurais neurais "veem" padrões que não existem ou, melhor, geram padrões contra um fundo ruidoso. Adaptação excessiva e apofenia são exemplos dos limites intrínsecos na computação neural: eles mostram como as redes neurais podem espiralar paranoicamente em torno de padrões em vez de ajudar a revelar novas correlações.

Não há transe entre os NATA (o Negro Afrodiaspórico em Território Anglosaxão), mas há transe entre os NACA (Negros Afrodiaspóricos no Caribe) e os NAAL (Negros Afrodiaspóricos na América Latina).

Em relação à roda: a comparação entre o griot e o storyteller: a ideia de narrativa, na medida em que busca dar conta de um encadeamento causal — sempre em busca de “historicidade”, que é uma obsessão do pan-africanismo — compromete o tipo de relação que se dá no transe, que é regido por outras temporalidades. A experiência narrativa é importante e são muitas narrativas. Porém, o transe não é narrativo. A narrativa conecta uma rede, o ponto de partida é o emissor: o artista, no disco ou no palco, na referência urbana. A partilha, isto é, a operação de engajamento, é posterior à emissão.

Assim, não dá pra comparar os respectivos usos da noção de tecnologia ao blues, como vemos no Akomfrah, ou o Estácio de Ismael. São contextos e relações muito diferentes com a tecnologia. Um esta situado no coração da pesquisa e da produção de objetos técnicos de ponta, há um maior acesso até pela situação politica e econômica (que não é favorável, mas não se compara com o que acontece na América Latina e na África). Na periferia do capitalismo, a lógica é diferente, por mais que se interaja com diversos níveis tecnológicos, a temporalidade do uso é bastante diferente. Com o aguidavi e o tambor, o ogam de candomblé produz novas claves e ideias sonoras, reconfigura o transe. Um procedimento dentro de um contexto tido como arcaico, revela que não há nada mais atual do que a ancestralidade da afropresenca e suas tecnologias.

(Lembrar Appiah quando mostra como a religião africana está mais próxima da ciência do que da religião tradicional europeia).

A roda de samba propõe um outro tipo de partilha em rede, a emissão é cifrada e decifrada por uma moeda de dois lados sob a forma de pergunta e resposta. Eu, que toco, alimento a resposta do público, que me realimenta. Uma rede é formada e, se tudo dá certo, não para de crescer.

O mesmo no ritual afroreligioso em função do transe, preconceituosamente chamado transtorno pela psicanálise.

Não há nave espacial, tampouco toda a mitologia do ciborgues.

No transe, mais do que uma possibilidade de afrofuturismo, temos a potência disjuntiva da afropresença.

A metáfora da nave espacial é reveladora. Ela revela uma metáfora da fuga traçada por forças que escapa do fim do mundo colonial para o espaço. Produto de um déficit afetivo das crianças negras que assistiram a TV Americana dos anos 50 e se viam subrepresentadas. Talvez aí resida a chave para interpretar os elementos do imaginário afrofuturista, um certo tipo de relação com a ideia de se “contar histórias” (toda uma tradição norte-americana) e um certo tipo de relação com o imaginário televisivo com seus anjos, reis, rainhas, princesas, discos voadores, monstros, vampiros, etc.

Mas a nave também parece ser a energia condutora para uma viagem que busca, ao mesmo tempo, a conexão com forças tão intuitivas como desconhecidas, o que no caso norte-americano é o tipo de sensação que remete ao conceito de “ancestralidade”. Uma força ao mesmo tempo ancestral e desconhecida, hackeada por certos tipos de objetos técnicos mais complexos, pois localizados em países de primeiro mundo.

O ritmo não é batucada. Há o ritmo da vida, como afirma Agawu.

Então, o NATA (negro afrodiaspórico em território anglosaxão) experimenta um imaginário atravessado por esses objetos reluzentes que podem ser tanto a nave espacial do seriado como uma lustrosa novidade doméstica, uma batedeira, uma empregada robótica, como nos Jetsons. Sensações como deslocamento cultural, alienação. O Édipo é impossível entre os africanos. O NATA se apropria desses objetos, seja porque esses países propiciam uma economia capaz de facilitar o acesso ou como nos saques que originaram o hip hop no Brooklyn em meados dos 70. Porém, esses objetos técnicos não são nem mais nem menos acessíveis aos negros porque chegam em suas mãos, ele precisam reinventar esses objetos para fins de festa e resistência, posição no mundo e atividade. Até aí, somos todos iguais.

A questão é que esta metáfora da nave espacial não só indica um imaginário específico em torno do termo “ficção científica”, como também parece remeter a um sentimento de incompletude, a impossibilidade de pôr em andamento um processo que só pode se efetuar com a efetiva ejeção desta nave ao cosmos. Essa impossibilidade, que os NATA experimentam como uma incompletude imanente, que deu estrutura e operação para a música e a cultura NATA, é a impossibilidade, por ausência de ferramentas, do transe. E esta me parece ser a metáfora mais involuntária do universo afrofuturista em território anglosaxão: o horizonte possível de uma viagem ao espaço, materializada nos depoimentos dos astronautas negros, leva a questão para o ambiente da exploração espacial, que ainda conserva seu aspecto colonial. Mas também pode remeter a um impulso de viajar nos cosmos que nunca se completa porque o negro norte-americano não trouxe consigo ou não preservou a alta tecnologia do transe.

Percebo, assim, a insistência na imagem da nave espacial como

a) expressão de não-adequação como metáfora da fuga, fuga de um presente impossível (a violência, o racismo, não vão mudar, melhor vazar…). Ishmael Reed dá a senha: o discurso dos brancos manifesta o desejo de mandar os NATA de volta pra África (discurso que em certa medida acaba sendo acolhido pela militância negra com o sinal reverso: retornar poderia ser positivo — ele gostaria de voltar pra casa mas não pode. Não há escapatória deste tempo, deste espaço.”); enquanto a mesma ideia não persiste entre os NACA e os NAAL, pois a elite local prefere mantê-los tão segregados quanto úteis. (Estudar)

Para os NATA, o tempo presente é o futuro, pois, Goldie indica, as máquinas podem fazer coisas fantásticas. Natural para uma cultura progressista. Mas para os NAAL e os NACA, o tempo presente é um leque de possibilidades muito diversas. Não há espaço para um afrofuturismo que não acolha uma visão mais densa da afropresença, isto é, que não se limite a uma prática inserida nos modos de produção e no próprio ritmo do capitalismo.

b) como apropriação de um universo específico do imaginário branco da ficção-científica, seja revertendo seu direcionamento colonial, seja parodiando-o como o faz Octavia Butler (que usa o próprio corpo negro como metáfora da nave espacial, embora o transe ali seja algo arriscado e perigoso, e não um elemento de “purificação” — o transe afro e afrodiaspórico conecta com as forças da natureza, em um processo que eu entendo como a alta tecnologia psico-fisiológica de produzir a diminuição do ressentimento de toda sorte e a ampliação da potência de agir e pensar.

c) como um grito ou um lamento de busca por algo que se sente que se perdeu mas que não se reconhece onde achar. É o transe que dá a nova vida, a perfeita sensação de desacoplamento da metrópole e de todo colonialismo, seja político, epistêmico, técnico, etc. Pela força que desabilita as rígidas balizas interpostas entre práticas que não se coadunam aos modo capitalista de produzir e administrar o conhecimento, a política, o dinheiro e a vida das pessoas. Contra os NATA, Diop.

Por outro lado, há a imensa cultura dos NACA (Negros Afrodiaspóricos no Caribe) e os NAAL (Negros Afrodiaspóricos na América Latina). Como se sabe, nessas regiões as populações negras negociaram de maneiras muito diferentes as tecnologias, conhecimentos e cosmovisões que trouxeram do local de origem.

Hipótese polêmica: nas culturas do transe, a viagem é mais transdutiva pela própria natureza do trânsito técnico: entre os NATA, trata-se de obter o equipamento, os meios, para poder utiliza-los de outra forma; mas entre os NAAL e os NACA, quando não se faz os próprios objetos com materiais rudimentares, surgem as operações em torno da gambiarra, do reproveitamento. São atitudes enviesadas por um modo de ser, ver e usar as coisas, de recriar as tecnologias que circulam dentro dos limites de uma sociedade escravocrata e colonial.

Para os povos do transe, há uma visão cosmológica não-teleológica, a cosmologia fornece o horizonte moral e ético, ao passo que o pan-africanismo e suas modulações entre os NATA sempre remetem a relação entre “origem” e “retorno”, geralmente a uma idealização, garantindo outra dinâmica moral e ética. O cristianismo atravessa ambas as visões de forma muito diferente, sendo que entre os NACA e os NAAL, o impacto é partilhado, então a formação moral não se divide tanto entre bem e mal — por este motivo, a persistente confusão em torno de Exú.

NACAs e NAALs vivem o que Milton Santos chamava de “Circuito inferior”:

“circuito inferior também poderia ser bem definido segundo a fórmula de Lavoisier: "Nada se perde, nada se cria, tudo se transforma." O jornal usado torna-se embalagem, o pedaço de madeira se transforma em cadeira, as latas, em reservatórios de água ou em vasos de flores etc. Isso ocorre também com as roupas que passam do pai para o filho, do irmão mais velho para o irmão mais novo, se já não foi comprada de segunda mão na construção das casas aproveitam-se todos os tipos de materiais abandonados ou vendidos a baixo preço. Muitos utensílios comerciais e domésticos são produtos de recuperações e a vida de uma peça, aparelho ou motor pode ser prolongada pela engenhosidade dos artesãos. A idade média tão elevada dos veículos talvez seja o exemplo mais surpreendente dessa miraculosa capacidade de recuperação que é uma das maiores características das economias pobres, em oposição ao desperdicio das economias ricas e modernas.”

A síncope como "alteração inesperada de ritmo" (inesperada pra quem?) e como quebra da "constância" (qual constância?), como ausência de marcação no tempo fraco (ausência pra quem?), o contratempo responsável por afetar o tempo forte. Essa imprevisibilidade é estrutura (cont)

A síncope Não é uma exceção porque a tal da regularidade ficou lá na Europa, para os jovens beneficários do welfare state e suas máquinas maravilhosas. Não é uma "quebra" pq o que se diz "quebra" é constituinte do "ritmo" (outro conceito problemático). A síncope é operação na música africana e afrodiaspórica, e não uma "exceção", uma "quebra", tampouco uma "ausência".

E não é uma "ausência", pq essa dita ausência é disparadora do transe e do êxtase, portanto é algo tão concreto quanto invisível.

Sim, saquei. A análise dele é importante e incontornável. Porém, do fundo do meu nulo conhecimento de teoria musical, eu intuo que ele privilegia o violão por algum motivo q não identifiquei — já que a interação surdo/tamborim, por si só, já me parecia suficiente.

Eu acho que a gente tinha que abrir um debate amplo sobre essa descolonização da musicologia, da crítica musical, de todas as expressões do pensamento que giram em torno de som, música, "cultura", política etc. Aí já abre vaga para "jovens jornalistas" e temos aí um curso q tal?

PANAFRICANISMO
Em sua ótica, a luta de um povo para sua independência nacional reforçava a luta dos outros e viceversa e era reforçada pela luta desses outros. Ou seja, o regime colonial deveria ser combatido em conjunto e não isoladamente. A negritude, posição intelectual e o pan-africanismo, posição política, convergiam ao afirmar respectivamente que todos os africanos tinham uma civilização comum e que todos os africanos deviam lutar juntos.

A questão que se colocava na literatura americana antes do movimento pan-africanista era saber se os negros dos Estados Unidos tinham preservado alguma coisa da herança africana.

Os negros americanos não tinham o passado africano e o que eles transmitiam para seus filhos era: a língua inglesa, a religião cristã, a polidez que convém aos domésticos das grandes fazendas do Sul, tudo isso foi aprendido dos brancos

Tratava-se de ter a liberdade de se expressar como se é, e sempre se foi; de defender o direito ao emprego, ao amor, à igualdade, ao respeito; de assumir a cultura, o passado de sofrimento. A origem africana.

No entanto, ele não procurou fugir do combate cotidiano do seu povo. É na América que ele ficará, pois escreverá: Eu também sou a América.

NEGRITUDE
A identidade consiste em assumir plenamente, com orgulho, a condição de negro, em dizer, cabeça erguida: sou negro.

A negritude é um conceito de síntese. Mas, antes de tudo, ela é uma atitude total de resposta a uma situação. Aimé Césaire, com Léopold Sedar Senghor, Léon Damas e outros, cria o termo negritude e o define como “consciência de ser negro, simples reconhecimento de um fato que implica aceitação – assumir sua negritude, sua história e sua cultura”. E Senghor escreve: “É antes de mais nada uma negação, mais precisamente a afirmação de uma negação”.

O exame da produção discursiva dos escritores da negritude permite levantar três objetivos principais: buscar o desafio cultural do mundo negro (a identidade negra africana), protestar contra a ordem colonial, lutar pela emancipação de seus povos oprimidos e lançar o apelo de uma revisão das relações entre os povos para que se chegasse a uma civilização não universal como a extensão de uma regional imposta pela força – mas uma civilização do universal, encontro de todas as outras, concretas e particulares.

CONCLUSÕES
Evoca-se frequentemente a desintegração das culturas africanas sob as influências que não existiam na África pré-colonial: os livros, as técnicas industriais, as administrações complexas, as intensas relações internacionais. O fato de que os fragmentos culturais africanos trazidos no Novo Mundo pelos escravizados tenham permitido às comunidades negras das Américas reconstruir em parte o tecido original e mantê-lo é uma prova de extraordinária resistência da africanidade na diáspora. Evidentemente, as sociedades africanas de hoje não vivem da mesma herança cultural do fim do século XIX quando começou a colonização. Mas qual é a comunidade cultural que possui hoje o patrimônio cultural de antigamente? Todas as civilizações se enriqueceram incrivelmente em contato umas com as outras. No entanto, elas não perderam sua identidade, que se enraíza em seu passado (Thomas, 1982, p. 304).

Africanidades brasileiras (plural), na minha interpretação, poderia ter o mesmo sentido que os africanismos de Herskovits para designar os elementos da herança africana que sobreviveu na diáspora. Todas as comunidades de matrizes africanas na diáspora reivindicam hoje duas coisas complementares: a inclusão nas sociedades que escravizaram seus antepassados africanos e seus descendentes não no sentido assimilacionista, mas reconhecendo ao mesmo tempo sua identidade ancorada por um lado na continuidade africana, daí a importância de ensinar a história e a cultura africana e, por outro lado, nas culturas de resistência que elas criaram no novo mundo em defesa de sua dignidade e liberdade humanas, daí a importância de ensinar também a história e a cultura negra na diáspora. A nova equação é: queremos ser incluídos sim, mas reconhecendo e respeitando ao mesmo tempo nossa identidade que passa pelas nossas diferenças corporais, culturais e históricas. Não é sem fundamento que os negros americanos rejeitaram politicamente a identidade de afro-americanos (Afro-Americans) que corresponderia à nossa de afro-brasileiros, para adotar a identidade de africanos americanos (Africans Americans), para reafirmar sua herança africana que por muito tempo lhes foi negada.

A negritude criticava a relação de dependência cultural que o colonizador tentava restabelecer e dava fundamento à luta para a reconquista da independência africana.

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