segunda-feira, 21 de julho de 2025

HEINZ VON FOERSTER (1911–2002) O PAI DA SEGUNDA CIBERNÉTICA





Heinz von Foerster, figura carismática na comunidade internacional de cientistas identificados com o legado da cibernética, faleceu em 2 de outubro de 2002, em sua casa em Pescadero, Califórnia, cercado por seus entes queridos. Ele tinha 90 anos. Físico particularmente talentoso em formalismos matemáticos, era também um filósofo interessado em esclarecer a epistemologia que emergia do projeto cibernético.


Ascendência Europeia

Nascido em Viena em 1911, sua infância burguesa foi culturalmente rica: seus pais, e especialmente seus avós, recebiam constantemente uma multidão de artistas, pensadores, cientistas e figuras políticas nessa Viena culturalmente vibrante do início do século XX. Assim, no contexto de sua infância, havia essa agitação intelectual, artística e política que certamente contribuiu para aguçar sua extrema curiosidade intelectual, seu interesse constante pelas artes, particularmente pela dança e pela música, e sua extraordinária inteligência. Heinz gostava de dizer que foi essa atmosfera culturalmente diversa que lhe incutiu, desde muito cedo, o desejo de lidar simultaneamente com uma multiplicidade de perspectivas para formar uma visão da realidade. Aqui encontramos a âncora viva de sua rejeição a visões monodisciplinares — artefatos de instituições acadêmicas — e seu impulso para a fundação de uma perspectiva transdisciplinar.

Ainda jovem, o acaso o levou a assistir a uma palestra proferida na Universidade de Viena por um professor chamado Ferdinand Scheminzky. A palestra intitulava-se "É possível gerar vida artificialmente?". Descobriu-se que essa palestra fazia parte de uma série de encontros organizados por filósofos associados ao "Círculo de Viena". Isso o levou a conhecer o pensamento de Rudolf Carnap, Hans Hahn e Ludwig Wittgenstein ainda muito jovem. Esses encontros filosóficos seriam decisivos na formação de seu pensamento: certas observações de Rudolf Carnap — em particular suas reflexões incisivas sobre o significado do sinal "=" (simetria, reflexividade, transitividade) — levaram-no a ler o Tractacus Logico-Philosophicus de Wittgenstein. Ele recebeu sua formação disciplinar inicial em física (mestrado pelo Instituto de Tecnologia de Viena, seguido de doutorado em 1944 pela Universidade de Breslau). Absorvido principalmente por questões filosóficas, lógica e matemática, adquiriu, como físico, uma especialização em engenharia elétrica. Embora um de seus avôs fosse judeu, conseguiu trabalhar em Berlim durante a guerra, em laboratórios envolvidos no desenvolvimento da tecnologia de radar. Retornou a Viena no final da guerra. Durante esse período, também morou na Silésia, pois a empresa onde trabalhava havia sido transferida para lá.

Seu primeiro trabalho científico foi uma monografia sobre memória. Fascinado pela observação de que um sujeito humano tende a esquecer cada vez mais elementos à medida que recua no tempo na memória, buscou formalizar esse tipo de fenômeno com o objetivo de formular uma teoria da memória. Por fim, utilizou os conceitos da mecânica quântica para construir seu modelo. As condições de vida em Viena no Pós-Guerra eram difíceis — a cidade, devastada pelos bombardeios, ainda estava ocupada pelas forças aliadas — então ele decidiu emigrar com sua família para os Estados Unidos da América em 1949. Ele trouxe consigo algumas cópias de seu livro intitulado The Memory — a Quantum Mechanical Treatise (título em inglês de seu livro escrito em alemão), que ele pensou que poderia servir como um "cartão de visita".


As Conferências Macy sobre Cibernética

Um exemplar de seu livro sobre memória chegou às mãos de Warren McCulloch, diretor do Departamento de Neuropsiquiatria da Universidade de Illinois em Chicago, e este último manifestou interesse em conhecê-lo. Embora Heinz von Foerster ainda não fosse fluente em inglês, os dois homens se entenderam rapidamente ao se depararem com equações diferenciais e outras formulações matemáticas! Esse contato inicial levou McCulloch, então presidente desta reunião, a convidar von Foerster para participar do sexto encontro científico financiado pela Fundação Josiah Macy Jr., organizado em Nova York sob o título: “Mecanismos Circulares Causais e de Feedback em Sistemas Biológicos e Sociais.”

A série de dez Conferências Macy (1946-1953) seria posteriormente reconhecida como o berço da cibernética. Foi Heinz von Foerster — nomeado, ao final desta sexta reunião, "secretário" responsável por preparar os anais e, por fim, garantir a publicação dos Anais — quem propôs o termo "cibernética" como título dessas reuniões. Heinz relata que Norbert Wiener, o criador desse termo e participante dessas reuniões (até a sétima, inclusive), ficou comovido e encantado com ele.

As Conferências Macy sobre Cibernética foram um ponto de encontro privilegiado, onde vários especialistas das ciências naturais (biofísica, matemática, lógica, neurofisiologia, engenharia elétrica) conviveram com alguns pesquisadores das ciências sociais, como os antropólogos Gregory Bateson e Margaret Mead. Este projeto interdisciplinar consiste em refletir sobre os padrões comuns que emergem da comparação entre mecanismos de feedback presentes em vários organismos biológicos, incluindo humanos, a fim de aproximá-los de mecanismos específicos de certos dispositivos técnicos, com base em uma teoria da informação emergente (Claude Shannon está presente) e nos novos recursos de uma ciência da computação emergente (John von Neumann é uma das personalidades presentes). Vários observadores consideram que essas conferências deram origem a algumas das ideias-chave que serão posteriormente discutidas nas áreas de ciência da computação e inteligência artificial (IA), estudo de redes neurais, teorias de sistemas e complexidade, e na ciência cognitiva.


O Laboratório de Computação Biológica (1958-1975)

Enquanto lecionava desde sua chegada aos Estados Unidos no Departamento de Engenharia Elétrica da Universidade de Illinois (Urbana), que dirigia, fundou o Laboratório de Computação Biológica (BCL) na mesma universidade em 1958. O foco científico do laboratório demonstrava um escopo interdisciplinar e internacional. Reunia pesquisadores de diversas áreas científicas (biofísica, biologia matemática, neurofisiologia da cognição, ciência da computação e tecnologia, ciência cognitiva e epistemologia). Beneficiando-se de importantes bolsas, notadamente do Escritório de Pesquisa Naval, parte do trabalho do laboratório levou a avanços na computação paralela. Uma das áreas envolveu a construção de um novo tipo de computador equipado com sensores fotoelétricos para reconhecimento de múltiplos objetos. Outras pesquisas se concentraram em hematologia médica; outras ainda, em demografia.

Heinz von Foerster era um pensador que gostava de provocar a reflexão com base em ideias poderosas de cunho paradoxal, ou às vezes aparentemente tautológico. Uma delas foi o famoso princípio da "ordem a partir do ruído", formulado já em 1960 e que foi adotado notavelmente por Henri Atlan em sua teoria da auto-organização. A tese consiste em argumentar que o ruído introduzido em sistemas auto-organizados gera, em última análise, menos entropia do que uma reorganização do sistema orientada para novos fins. O renascimento contemporâneo dessa ideia nas ciências cognitivas aparece na forma de "ressonâncias estocásticas" (Varela). Von Foerster foi um dos principais proponentes dos problemas da auto-organização, tema que explorou primeiro com Gordon Pask, seu companheiro de longa data, depois com Humberto Maturana (que conheceu em 1962) e, finalmente, com Francisco Varela (que conheceu durante um semi-sabático no laboratório de Maturana em Santiago, Chile, em 1973). Na França, Edgar Morin foi um dos primeiros pensadores a levar a sério as consequências epistemológicas dessas ideias de "ordem através do ruído" e auto-organização. Morin também convidou Heinz von Foerster para participar da conferência sobre a “Unidade do Homem: Invariantes Biológicos e Universais Culturais”, realizada na Abadia de Royaumont em setembro de 1972.

Heinz von Foerster decidiu fechar o BCL em 1975. Não apenas por causa de sua aposentadoria, mas também porque observou que as condições de financiamento da pesquisa nos Estados Unidos haviam mudado significativamente. Esse período marcou o início de um declínio institucional por parte de grandes fundações, bem como de agências governamentais e militares, no campo da pesquisa básica abrangido pela BCL. Esse laboratório buscou caminhos de pesquisa e desenvolvimento em ciência da computação que não se alinhavam às tendências dominantes em Inteligência Artificial (IA), um setor que também era fortemente subsidiado por essas agências federais (considere o laboratório de Marvin Minsky no MIT). Isso ilustrou perfeitamente a bifurcação que havia começado bastante cedo entre os cibernéticos, entre a corrente da qual emergiram os desenvolvimentos deslumbrantes da IA (um setor que foi amplamente subsidiado, apesar do fato de esses pesquisadores, em última análise, não terem cumprido suas promessas ambiciosas de construir "inteligência artificial") e a corrente de pesquisadores mais sintonizados com o projeto inicial da cibernética — incluindo os da BCL — que rejeitavam as definições ingênuas de cognição e inteligência propostas pelas principais figuras da IA. Somente mais tarde, durante a década de 1980, as perspectivas conexionistas na ciência cognitiva (e um novo estilo de pensar sobre robótica, inspirado no espírito da BCL) convergiriam com os interesses dos herdeiros de ambas as comunidades de cientistas.


Cibernética de Segunda Ordem

As palestras e os escritos de von Foerster que provavelmente serão mais lembrados são de natureza epistemológica. É aí que reside a originalidade do projeto filosófico de Heinz von Foerster. Ele propõe uma nova leitura epistemológica do projeto cibernético. Enquanto até então os pesquisadores se contentavam com uma cibernética de sistemas observados (cibernética de primeira ordem), von Foerster os convida a praticar, em vez disso, uma cibernética de sistemas observacionais (cibernética de segunda ordem), ou seja, uma abordagem que não pode mais excluir a consideração plena do observador incluído no processo de observação. A primeira cibernética — ou mais precisamente, a "primeira leitura" do projeto cibernético, uma vez que as ideias-chave da "segunda cibernética" já estão parcialmente incluídas em certas discussões nas conferências Macy, para aqueles que sabem reconhecê-las — favorece noções como feedback, que apenas alimentam as teorias de controle agora aplicadas ao comportamento dos organismos vivos. Para von Foerster, essa ideia de feedback orientada para a teoria do controle não é nova; já era considerada em estudos de engenharia elétrica. O que é verdadeiramente novo e fascinante no projeto da cibernética é a consideração das consequências lógicas e epistemológicas dos comportamentos dessa categoria de sistemas, que podem agir sobre si mesmos. Esse tipo de funcionamento força o observador a formular paradoxos e a recorrer a conceitos autorreferenciais, o que implica um verdadeiro salto epistemológico em relação à lógica clássica. O ciberneticista de segunda ordem não pode simplesmente recorrer à teoria dos tipos lógicos de Russell para descrever os comportamentos paradoxais de sistemas autorreferenciais: "Eu pensava na teoria dos tipos como uma desculpa miserável para alguém que não quer assumir a responsabilidade de dizer 'eu estou dizendo isso', porque não se espera que se diga 'eu' com a teoria dos tipos." (...) "A cibernética, para mim, é o ponto em que se pode superar a teoria dos tipos de Russell, adotando uma abordagem adequada às noções de paradoxo, autorreferência, etc., algo que transfere toda a noção de ontologia — como as coisas são — para uma ontogênese — como as coisas se tornam." (Entrevista de 1995). A cibernética de segunda ordem consiste em levar a sério a dinâmica do funcionamento paradoxal, acrescentou.

Nas palavras de André Béjin, o projeto epistemológico de von Foerster consiste em "definir as condições de possibilidade de uma teoria da descrição e de uma teoria da cognição e definir seus fundamentos". Ecoando a ambição de Maturana, o objetivo de von Foerster é "restabelecer a margem de autodeterminação de qualquer sistema cognitivo. Tal sistema não seria o que o ambiente faz dele, seria o que ele faz do que o ambiente faz dele". Uma das teses centrais de von Foerster é sustentar que objetos e eventos no ambiente não têm existência intrínseca: eles não existem independentemente do observador que os percebe e que cria representações deles. Este é, a fortiori, o caso dos próprios gestos do observador ligados ao processo de observação: "toda descrição é a descrição de um observador". Com este aforismo aparentemente tautológico, von Foerster oferece uma crítica radical à ideia de objetividade na ciência. Ele defende a reinserção sistemática do observador na observação. O observador está incluído na observação. Em virtude de sua ausência impossível do local e do processo de observação, o observador humano afeta as condições de observação tanto quanto deixa sua marca, por meio do uso da linguagem, na formulação de suas descrições. Von Foerster insiste que os cientistas levem em consideração operações ou descrições autorreferenciais. Ele indica que o uso de "conceitos de segunda ordem" (isto é, aqueles construídos com o prefixo "self", como auto-organização, autoprodução, autorreplicação, autorregulação) é essencial na produção de categorias científicas, particularmente se os cientistas buscam questionar os pressupostos subjacentes da ciência contemporânea, sistemas invisíveis de crenças frequentemente enredados na própria construção dos problemas que a ciência busca resolver. O surgimento dessa segunda cibernética (cibernética da cibernética) estará intimamente associado às diversas perspectivas construtivistas que emergiram na filosofia e nas ciências sociais e humanas. Em outras palavras, desde as décadas de 1960 e 1970, o núcleo ainda ativo de pesquisadores que se identificam com a herança cibernética tem testemunhado o surgimento de uma nova corrente de epistemologia construtivista, cujos três pioneiros foram Heinz von Foerster, Gordon Pask e Humberto Maturana. Esse trabalho é continuado hoje por Ernst von Glasersfeld, Ranulph Glanville, Klaus Krippendorff, Paul Pangaro e Stuart Umpleby.

***

Heinz von Foerster era um homem generoso e charmoso, cheio de humor, impassível, com um olhar aguçado, uma resposta inteligente e sempre pertinente, atento às perguntas que seus alunos e colegas lhe faziam. Frequentemente, respondia a uma pergunta com outra, o que imediatamente desencadeava um diálogo com seu interlocutor. Tive o privilégio de conhecê-lo pessoalmente em outubro de 1974, em uma conferência da Sociedade Americana de Cibernética, uma associação profissional que ele ajudou a fundar (notadamente para homenagear e dar continuidade ao trabalho de Warren McCulloch). Por pura sorte, encontrei-me sentado ao seu lado no banquete. Quando lhe disse que era aluno de Edgar Morin, seus olhos brilharam e ele se lembrou dos bons momentos que passara com Morin. Naquela noite, ele proferiu o "discurso presidencial" que havia intitulado "Cibernética da Cibernética". Ele também havia levado para o local da conferência alguns exemplares da coleção homônima, uma publicação artesanal que ele havia produzido com seus alunos como parte de um de seus cursos na Universidade de Illinois. Desde as primeiras palavras de sua palestra, ele imediatamente capturou a atenção da plateia, que acabara de saborear um farto jantar. Começou apresentando o que chamou de "teorema número um de Humberto Maturana": "Tudo o que é dito é dito por um observador"; acrescentou, com um toque de humor, "modestamente", disse, o que chamou de "corolário número um de Heinz von Foerster": "Tudo o que é dito é dito a um observador". O restante de sua palestra consistiu em mostrar que essas proposições aparentemente tautológicas continham algumas intuições epistemológicas dignas de serem levadas a sério. Sua plateia ficou cativada: ele conseguiu transmitir seu prazer em chegar ao fundo das coisas, mantendo sempre um sorriso que demonstrava estar em plena posse de suas faculdades.

Serge Proulx — Université du Québec à Montréal


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ATLAN, H., Entre o Cristal e a Fumaça, Paris, Seuil, 1979.

BÉJIN, A., “Teoria da Cognição e Epistemologia da Observação: Apresentação”, em A Unidade do Homem, Paris, Seuil, 1974.

Centro Royaumont para uma Ciência do Homem, A Unidade do Homem, editado por E. MORIN e M. PIATTELLI-PALMARINI, Paris, Seuil, 1974.

DUPUY, J.-P., As Origens das Ciências Cognitivas, Paris, La Découverte, 1994.

HEIMS, S., J., The Cybernetics Group, Cambridge, MIT Press, 1991.

MATURANA, H., “Estratégias Cognitivas”, em A Unidade do Homem, op. cit., 1974.

MORIN, E., La Méthode, 1. La nature de la nature, Paris, Seuil, 1977.

VARELA, F., “Heinz von Foerster, o cientista, o homem”, Stanford Humanities Review, 4 (2), 1995.

VON FOERSTER, H. ed., Cybernetics of Cybernetics, coleção de textos, Urbana, Illinois, Biological Computer Laboratory, 1974.

VON FOERSTER, H., “Notas para uma epistemologia de objetos vivos”, em The Unity of Man, op. cit., 1974.

VON FOERSTER, H., “Cybernetics of Cybernetics” em K. KRIPPENDORF, ed., Communication and Control in Society, Nova York, Gordon & Breach Science Publications, 1979.

VON FOERSTER, H., Observing Systems (com uma introdução de F. Varela), Seaside, CA, Intersystems Publications, 1981.

VON FOERSTER, H., entrevista com J.-P. DUPUY, P. LIVET, P. LÉVY e I. STENGERS, Genealogias da Auto-Organização, Cahiers du CREA n.º 8, École Polytechnique, Paris, 1985.

VON FOERSTER, H., entrevista com S. FRANCHI, G. GÜZELDERE e E. MINCH, Stanford Humanities Review, 4 (2), 1995.

VON FOERSTER, H., "Ética e Cibernética de Segunda Ordem" em WATZLAWICK, P. e NARDONE, G., orgs., Estratégia para a Terapia Breve, Paris, Seuil, 2000.

VON FOERSTER, H., Compreendendo a Compreensão. Ensaios sobre Cibernética e Cognição, Nova York, Springer, 2003.

* Uma autobiografia detalhada de Heinz von Foerster será publicada em inglês em 2003. Esta é uma tradução do livro: Monica Broecker & Heinz von Foerster, Part of the World, Carl-Auer-Systeme Verlag, Heidelberg, 2002.

terça-feira, 8 de julho de 2025

“QUE CINEMA É ESSE?”: ATUALIZAÇÕES BRASILEIRAS

 









01.

A pergunta “que cinema é esse?” não pede respostas ou definições, mas novas perguntas em torno da própria essência do que significa fazer e assistir cinema – ainda que aqui eu deseje, antes de mais nada, indicar o quanto ganhamos ao desfazê-la e desmanchá-la em outras possibilidades cinematográficas. Não me alongarei nesse tema, mas penso que o cinema materializa a mecânica e a metafísica da percepção, da cognição e da imaginação perante uma espécie de duplo, nosso próprio aparelho perceptivo, cognitivo e imaginativo – e, portanto, não se endereça somente “aos olhos ou aos ouvidos de maneira regulável”, como afirma Bresson em seu Notas sobre o cinematógrafo, mas à zona ambígua e cinzenta da própria experiência, produtora de imagens e movimento. Seria possível conciliar, no âmago da matéria cinematográfica, percepção e imaginação oriundas de outras visões e culturas não europeias? Países e populações que possuem diferentes práticas e formulações em torno da produção de imagem e da própria noção de imagem? A resposta não seria apenas negativa, como também dispersa: a própria imagem do sonho e da realidade subjacente à produção do cinema brasileiro, por exemplo, da chamada Retomada e do cinema Maxakali do século XXI difere de forma radicalmente irreconciliável.


02. 

O cinema, contudo, não reproduz um duplo formal a partir de um conjunto perceptivo-cognitivo-imaginativo que é preenchido de alguma maneira por materiais captados, mas inventa, como um acréscimo de realidade, formas singulares de manipulação do tempo e do espaço. E o faz através da composição de planos, cortes, sons e texturas. Procedimentos que geralmente resultam em um “uso criativo da realidade”, como afirma Maya Deren em seus escritos, mas que também implicam um uso técnico particular das máquinas de captar e cortar, que podem variar imensamente de caso a caso, segundo concepções particulares. Pensando assim, a ideia aparentemente absoluta de um Cinema com c maiúsculo desponta sempre sob a forma de uma gestão, sempre oscilando entre uma ética e uma política da imagem. Não que uma outra ética não seja acessível – há quem ame, que consegue amar, Ford e Sueli Maxakali, Mizoguchi e Ana Pi, como eu mesmo. Ao mesmo tempo, porém, para o bem e para o mal, as variações não hegemônicas causam nítido desconforto nos circuitos sedimentados, na crítica, cinefilia, meio acadêmico e festivais: excesso de condescendência ou incompreensão cercam o cinema realizado por indivíduos pertencentes aos povos originários ou por grupos ou indivíduos historicamente alijados do processo estético, econômico e político dos cinemas hegemônicos.


03.

Por outro lado, parece que estamos justamente situados num plano histórico em que a imagem robotizada do cinema comercial, da televisão e das plataformas readquire e amplia seus privilégios. No Brasil, a “retomada da retomada” situa novamente em nosso horizonte a lógica industrial do “cinema é pra quem pode”. Se entre 2003 e 2015 observávamos o movimento das placas tectônicas do privilégio de classe e de raça no cinema brasileiro, hoje o movimento é reduzido, seja por asfixia, seja por apropriação. A escassez de recursos e editais específicos para outros cinemas marca o período pós-golpe e avança sobre o período de reconstrução democrática, reconstituindo a força da presença de uma elite cinematográfica em detrimento das transformações que ocorreram no período do “cinema fome zero” (termo criado por Miguel Jost). O estreitamento da viabilidade acompanha de perto o oportunismo de classe e, de forma muitas vezes imperceptível, a redução da imaginação. Desde o golpe, alguns filmes sinalizam o sintoma de um retrocesso. A armadilha do “cinema negro” enquanto representação uniforme constitui apenas uma parte de um diagrama cuja perversidade se mede tanto pelo número de views, quanto pela manutenção dos protocolos comerciais e institucionais por “diversity”. Sinalizar “eu me importo” – chantagem emocional – como forma de contratação. A maioria dos curadores e financiadores, dos festivais e distribuidoras, já sacaram a tendência que pode favorecer os signos da agenda racial, sem, contudo, contrair grandes compromissos: a culpa branca premiada, a experimentação negra sufocada. Mantém-se o apelo à sensibilidade racial através de uma imaginação limitada pela estreiteza da forma. Estilo, isto é, técnica e imaginação, como dado necessariamente secundário. O que se conta em uma proliferação descontrolada do cinema da escassez imaginativa são as “nossas histórias”, a privatização da imaginação. Entendo os esforços políticos e econômicos protagonizados por players negras e negros em torno da conexão entre temas identitários e a profissionalização no cinema. Porém, se essas negociações implicarem a ausência de mudança estrutural e redução drástica da experimentação estética – portadora de outras possibilidades da imagem – temos aí um problema.


04.

As estratégias são cada vez mais evidentes e sinalizam a manutenção da plantation simbólica de que nos fala Juliano Gomes. A monocultura aponta para um conjunto de conciliações forçadas que cabem perfeitamente na lógica das plataformas. Como assinala o recente artigo de Will Tavlin sobre a ascensão da Netflix e seu cinema de plataforma: “ela não apenas sobrevive quando ninguém está assistindo: é justamente aí que ela prospera”. Então é possível repetir as mesmas histórias e os mesmos modos de contá-la ad infinitum. Algumas tendências evidentes: a expiação pública como autoetnografia voluntária ou involuntária; o registro e “resgate” da “cultura popular” como memória de classe; as boas intenções do inferno como o conjunto de esforços coletivos que confluem para consolidar o signo inequívoco de uma atitude atravessada pela correção moral e conformidade com agendas corporativas. Esses signos servirão de salvo conduto para transitar, com mãos grosseiras, por temas e personagens relacionados com as questões libertárias no Brasil. A captura, contudo, é mais do que um direito, mas uma profissão de fé: a elite expia em praça pública, logo a elite é purificada. O peso do passado é apaziguado pela confissão dos aprendizados. 


05. 

...cachê é poder. O contratado legitima o contratante. O contratante remunera o contratado. Pior do que ser explorado pelo capitalismo: justamente não sê-lo. Cinema como tronco e chicote: quem está lá? O senhor ou o escravo?


06.

A culpa branca encena o drama indígena, pacifica a raiva negra, mas o signo é o de uma expiação pública imediatamente reificada para fins de adoração e comercialização. Há uma ambiguidade insuportável na imagem da expiação e do aprendizado das elites que, involuntariamente, nos revela a confiança elevada em toda sua estreiteza. Em algum momento teremos que falar abertamente sobre o abismo estético e intelectual que separa as imagens das elites cinematográficas e as imagens dos novos cinemas. Não será uma conversa confortável. O cinema da Retomada e o da "retomada da retomada" não possui densidade, camadas, exterioridade. O cinema da elite carioca e paulistana é vazio porque, por mais que se esforcem, suas visões de mundo são inadvertidamente despovoadas – e por isso adequadas aos grandes meios de comunicação, às premiações, a Hollywood e todo o sistema do cinema hegemônico. O mesmo não se pode dizer das múltiplas expressões do cinema produzido pelos Xavantes, Kaiowás, Kuikuros, Maxakalis, do grande cinema de Recife e de Contagem, do cinema operário de Lincoln Péricles e Adirley Queirós, do cinema do Recôncavo de Glenda Nicácio e Ary Rosa, do cinema de gira de Yuri Costa, o cinema de Getúlio Ribeiro, Yasmin Thainá, Grace Passô, Higor Gomes, Amanda Devulsky, Natália Reis, Déo Cardoso, Vinícius Romero, dos cariocas da MBVideo, o cinema do Nordeste, do Norte e do Centro-Oeste, entre tantas outras possibilidades decorrentes de um período de maior distribuição de renda que propiciou a reinvenção do cinema brasileiro, que criou uma nova ecologia de imagens, outros modos de ver, planificar, montar, sonorizar. Estamos falando de uma pletora de novos cinemas que demonstram um olhar mais complexo e esteticamente aventureiro (cinema é aventura) do que o cinema da elite cultivada, viajada, endinheirada. Matutar essa contradição.


07.

O cinema de Sueli Maxakali, por exemplo, usa o plano estático com uma densidade especificamente atrelada à temporalidade Maxakali, justapondo registros do tempo e da imaginação, produzindo algo entre a dilatação e a concentração do tempo como meio para exprimir uma epifania sensorial. Já o cinema coletivo dos Guarani-Kaiowá opera a câmera subjetiva e a voz over de forma não a fazer uma explicar a outra, mas entranhá-las, implicá-las entre si de tal forma que, como em alguns poucos filmes de Apichatpong Weerasethakul (particularmente Cemitério do Esplendor, na cena em que os personagens passeiam por um palácio imaginário), o que não é visto participa ativamente do que é filmado e mostrado – convém mencionar o trabalho de André Brasil e Bernard Belisário acerca dos usos criativos do antecampo e do extracampo em alguns filmes dos “cinemas originários”. Entendo que os dois casos são marcados por uma lógica de apropriação reversa, que transfigura a gramática e a sintaxe cinematográfica ocidental e cria novas formas de ver e sentir: outra sensibilidade. A inconstância da alma selvagem também modula conforme os termos de uma alegre traição: vingança sob a forma de um sequestro provisório da técnica e da linguagem. 


08. 

Se existem ecos e ressonâncias de uma concepção específica do Modernismo que não cessa de se imiscuir no imaginário do tempo brasileiro, observa-se que, a despeito do massacre, o Brasil permanece atravessado pela presença daqueles cuja história a história não conta. A história geralmente é definida como um texto que implica a construção de um método de leitura e interpretação. Uma epistemologia da história revela questões candentes, questões embrazadas que, como na antropologia contemporânea, parecem acorrer a problemas filosóficos como identidade, alteridade e ontologia. Nesse contexto, geralmente se problematiza o método; mas o método nunca é neutro, porque sua maquinaria conceitual obedece a outras concepções que não remetem necessariamente a questões metodológicas: o que os filmes dos povos Maxakali e Guarani-Kaiowá nos mostram em toda sua complexidade são imagens variadas do tempo e imagens do movimento, imagens do massacre e da resistência de pontos de vistas singulares. Se a “transfiguração étnica” preconizada por Darcy Ribeiro prevê a possibilidade de uma história transformacional, mesmo que a contragosto do intérprete, e essa história é marcada por insubmissão e violência, não parece de todo inadequado observar essa outra vanguarda do olhar, essa visão sintética de um mundo que não se explica, pois nos diz respeito apenas enquanto se coloca o termo cinema. O cinema, novamente, opera como mediador: Darcy e os missionários eram mediadores, mas que, seja para integrá-los, seja para denunciar sua integração forçada, recorriam ao único ponto de vista que lhes era possível acessar: o do protagonismo histórico. Quando o cinema dos povos originários começa a ser produzido, vislumbramos a transfiguração de uma autoridade: a autoridade discursiva eurocêntrica.


09.

O Brasil respira camadas de contradição no que tange à forma de representação de seus conflitos de classe e a pluralidade de seus povos, talhados à base dos desmandos de uma elite antipática, contrastante com caldeamentos raciais e culturais seculares. O cinema é território privilegiado para acessarmos os vaivéns e continuidades dessas dinâmicas. A gradação intermediária entre o blockbuster e o filme caseiro foi apagada e esses dois modos de se fazer e pensar cinema não morrerão abraçados. Não há sequer um sistema trabalhista concebido e estruturado especificamente para estruturar e conferir dignidade à mão de obra da cultura no brasil, e isso impacta todos os demais estágios e desdobramentos dos processos culturais. As imagens do povo produzidas pela elite política, econômica e cinematográfica são premiadas, deificadas, celebradas pelo aparato cultural, midiático e acadêmico, ao passo que as imagens do povo produzidas a partir de si mesmo foram paulatinamente política e economicamente sufocadas, inviabilizadas, contratadas ou relegadas aos rincões do "experimental", do "acadêmico", de algo que pode ser tudo, menos propriamente "popular". Isso porque a elite olha para o povo de forma simplória e aqui se encontra a maior das perversidades: o povo e, particularmente, o mundo das redes sociais se reconhece mais no retrato de si mesmo produzido pela elite do que pela miríade de imagens às quais me referi acima. Lutar, portanto, por um cinema amazônico, à altura de sua diversidade autêntica, contra toda monocultura política, simbólica, estética...

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Se o cinema contra-hegemônico saberá se desvencilhar das armadilhas que o cercam, é um assunto hoje que deve circunscrever nossas mais caras preocupações – e que de certa maneira Tiradentes carrega como marca inexpugnável de sua singularidade. Porém, há uma pergunta urgente: haverá meios materiais para a propagação da imaginação negra em "expansão infinita", ou, em um futuro muito próximo, seremos convertidos em meros peões, cartas marcadas no tabuleiro da geopolítica moral imposta pelas plataformas de streaming, players e financiadores?

segunda-feira, 12 de maio de 2025

Feitiço sem farofa — sobre Pantera Negra, de Ryan Coogler (2018)



De que “negritude” se fala em Pantera Negra?

O ponto de vista de Pantera Negra é o do modelo diaspórico que, segundo consenso geral, melhor se adaptou ao capitalismo mundial e, malgrado as tentativas incansáveis de dar consistência ao termo, à Modernidade. Uma tipologia específica que, com vestimentas características, música onipresente, modelos de resistência política e, até mesmo, hábitos alimentares, não cessa de servir como referência a outras populações diaspóricas do mundo. Pode-se afirmar que o pano de fundo do filme relaciona-se a correntes de pensamento ligadas a uma perspectiva exclusivamente anglo-saxônica do problema. Em plena ressaca da América pós-Obama, a reboque do cortejo de deserdados pela eleição de Trump, o filme se encaixa no conjunto de tendências que eclodem a partir do movimento Black Lives Matter e de todo o arco da luta contra a violência policial, por direitos e representatividade. É, enfim, ao negro norte-americano, assim como a todos as populações ao redor do globo que conservam este modelo como referência, que este filme é endereçado.

É lícito perguntar se este modelo não seria estrategicamente mais interessante como exemplo do que a via de mão única do herói macho, branco e adulto que permeia a cultura dos super-heróis. Eu concordo, mas insisto: a percepção de uma assimetria entre as diferentes formações das populações negras diaspóricas na América pode fazer com que nós, brasileiros, assistamos o filme com outros olhos. Livres de uma visão da diáspora limitada a certas culturas e concentrações populacionais em detrimento de outras, podemos nos tornar solidários à luta do negro na América do Norte sem nos confundirmos com ele. Pois se é verdade que nas Américas se conserva em diversos segmentos um traço majoritário de autoconsciência da questão racial, não seria menos verdade que algumas tendências minoritárias persistam em diversos contextos, apesar da supremacia imposta pela perspectiva afro-americana.

Não sou contrário às misturas e até mesmo as mal faladas “apropriações”. Tomo como exemplo o próprio rap brasileiro, que se apropriou dos conceitos do rap norte-americano e se mostrou capaz de constituir-se como linguagem própria e potente, quase independente da referência originária. Meu problema não é manter a identidade do “nacional”, mas, diante da abundância de possibilidades, manter um certo grau de indeterminação sobre os sentidos do “ser negro”, e, ainda mais, do “ser negro” diaspórico.

No jogo de representações proposto por Pantera Negra, a perspectiva majoritária massacra a minoritária: não há roda de batuque, pois toda música é ritual, seja de guerra ou religiosa; não há Exu, nem Elegbara (“o dono da força” na ontologia banta, presente na umbanda e na quimbanda), muito menos elementos derivados do complexo cultural jeje-nagô; os griots característicos do Mali e de Gana foram dispensados, não há nenhuma referência a quaisquer conhecimentos transmitidos por comunicação oral, a oralidade também foi interditada; assim como não há Babalaôs (“o pai do segredo”), os leitores do oráculo de Ifá foram substituídos por um sacerdote (Zuri, personagem de Forest Whitaker) que não sorri, semblante duro característico das sociedades secretas cristãs; não se percebe os traços fundamentais e as possíveis influências dos bantos na América, a partir de contribuições decisivas dos Bacongos, dos Ambundos e Ovimbundos, entre outros grupos derivados dos “bantos do centro” (na expressão de Nei Lopes em seu livro Bantos, Malês e Identidade Negra); não há a diversidade religiosa, apenas uma religiosidade unívoca e meramente alusiva, gradualmente sintetizada a uma representação abstrata da “ciência”, representada como uma força cega e brutal que domina todo o espaço-tempo do filme; não há partilha do alimento ou ritual de comunhão, todo rito de passagem é mediado pela batalha violenta e pela lógica do vencedor. Em suma, todas as atividades do filme giram em torno do binômio segurança (proteção do Estado) e conservação da pureza territorial e cultural de Wakanda. O valor da ancestralidade é medido segundo uma temporalidade rigorosamente calculada dentro da causalidade ocidental, interditando qualquer possibilidade de recuperarmos outras temporalidades afrodescendentes — como, por exemplo, aquela que nos transmite o ditado Iorubá: “Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que jogou hoje”. A própria noção de “Afrofuturismo” está comprometida pela mitificação controversa de uma África unificada, e por uma concepção corporativa e progressista da técnica. Na representação da negritude em Pantera Negra, não há espaço para a bantuidade, nem para as concentrações populacionais antilhanas e latinas. A rigor, Wakanda “tem um feitiço sem farofa”…

Diante da supressão de noções e representações mais complexas da negritude diaspórica, surpreende, então, o breve escrito de Achille Mbembe acerca do filme: “Para quem sabe ler entre as imagens, quem sabe como ouvir ritmos e caminhar com o pulso da história, o filho está lá, o manifesto, atrás de uma ou outra sequência, pairam mil sombras e mil correntes de pensamento — de Marcus Garvey a Cheikh Anta Diop, da negritude ao Afrocentrismo, do Afropolitanismo ao Afrofuturismo. Este filme, sem dúvida o primeiro de seu tipo, é antes de tudo uma façanha intelectual, que transforma em imagem e em espetáculo a grandes ideias e correntes de pensamento que acompanham nossos esforços para “sair da grande noite”.”

Embora este artigo não se destine a fazer a crítica ao opúsculo escrito por Mbembe (de quem admiro o arrojado Crítica da Razão Negra), o trecho citado repete a estratégia de Pantera Negra, revestindo de autoridade a limitação de seu recorte – uma construção por redução dos efeitos rizomáticos da diáspora. Mesmo apresentados sob a forma sedutora, nas palavras de Mbembe, de uma nova “humanidade negra”, este amálgama de “mil correntes de pensamento” não manqueja somente por interditar aspectos minoritários das expressões diaspóricas (aspectos que poderiam, por exemplo, desenraizá-las dos fundamentos e aspirações liberais presentes no Afrofuturismo e no Afropolitanismo), mas também por exaltar o exemplo das concentrações populacionais que se mantiveram em posição subalterna em relação à religião e a política do poder local. Esta faceta fica evidente quando o próprio Mbembe escreve, em 2015, sobre o Afropolitanismo: “Contudo, o centro por excelência do afropolitanismo é, nos dias de hoje, Johanesburgo, na África do Sul. Nessa metrópole forjada no ferro de uma história brutal uma figura inédita da modernidade africana está se desenvolvendo. Trata-se de uma modernidade que tem pouco a ver com o que se conhecia até agora. Ela se nutre na fonte de múltiplas heranças raciais, de uma economia vibrante, de uma democracia liberal, de uma cultura do consumo que participa diretamente dos fluxos da globalização. Aqui está se criando uma ética da tolerância suscetível de reanimar a criatividade estética e cultural africana do mesmo modo que em outra época o Harlem ou Nova Orleans o fizeram nos Estados Unidos.” (Grifo meu)

É necessário reconhecer que, desta operação, as populações diaspóricas extraíram forças para sustentar algum grau de construção comunitária, elemento importante nas formas de organização que asseguraram a sobrevivência negra nas Américas. Há, porém, que se reivindicar aqui uma gradação sutil entre suas diversas modulações, identificando aquelas que carregaram, ainda que de forma bastante modificada, substratos fragmentários de símbolos, valores e práticas não-cristianizadas e não-ocidentalizadas.


Tradição e Modernidade

Nota-se, por exemplo, que Pantera Negra opera os sentidos da Tradição e da Modernidade sob uma estrutura conceitual severamente posicionada nos termos de uma polaridade. A vastidão da diáspora é substituída por uma visão unívoca, e aqui começa boa parte dos equívocos estratégicos do filme, pois, como afirma Appiah em Na Casa de Meu Pai: A Africa na Filosofia da Cultura, “nenhum de nós compreenderá a Modernidade enquanto não compreendermos uns aos outros”. Estamos, portanto, adentrando um território no qual a cristalização do binômio tradição-modernidade e de suas respectivas caricaturas, já não basta para edificarmos uma compreensão adequada do problema. Tampouco a aparente solução que o filme apresenta para essa questão, qual seja, a busca por reconciliações no plano de uma religiosidade esclarecida, tal como apregoou o Positivismo Cristão na virada do século passado.

Appiah observa que as práticas efetivas das religiões das ditas sociedades tradicionais introduzem nuances que desestabilizam a força lógica estável das definições: “Se a modernização é concebida, em parte, como a aceitação da ciência, temos que resolver se achamos que as provas nos obrigam a abandonar a ontologia invisível”, pontua, acrescentando que em diversos registros das religiões na África, as teorias científicas não tem força suficiente para substituir a influência das religiões tradicionais. Partindo do modelo de caracterização da reflexão crítica sobre a tradição descrita por Karl Popper, Appiah destaca similitudes entre a atitude do cientista e a do babalaô (adivinho e curandeiro iorubá), pois ambos apreciam e interpretam a tradição de modo a alterá-la conforme os resultados e consequências efetivas provocadas pelo ritual. Na ciência moderna, como na religião africana tradicional, opera-se com os critérios de explicação, previsão e controle. Para Appiah, os etnólogos confundiram os pressupostos das religiões de matriz cristã com o que de fato parece orientar os rituais religiosos tradicionais africanos: não somente os manejos ritualístico de elementos simbólicos, mas a aplicação prática dos elementos materiais no andamento do processo — a materialidade, às vezes orgânica e sangrenta, daquilo que é oferecido às entidades. Todos que professam as religiões afro-brasileiras sabem, em termos práticos, o quanto as entidades, assim como a ciência moderna, “preferem” a matéria. Os praticantes nutrem uma forte expectativa no poder do ritual e das entidades invocadas, de modo a refleti-la não apenas do ponto de vista de uma obediência irracional, mas como uma atitude tomada em vistas da resolução de um problema prático. A oferenda ritual chamada Ebó é oferecida como uma tentativa respeitosa de comunicação com as entidades, mas que persiste, sobretudo, porque parece eficaz aos praticantes. Através da comparação entre os sistemas de crença, de produção material efetiva, prática e simbólica, Appiah, seguindo por esta chave de interpretação, aproxima a religião africana tradicional não da crença religiosa cristã ocidental (“simbólica”), mas da teoria científica ocidental moderna (“material”). Isto é, há espaço em muitos desses rituais ditos “tradicionais” para uma correção “crítica”, tal como se apregoa em relação ao “espírito científico”. Por outro lado, é possível observarmos na ciência moderna e, particularmente, na ciência contemporânea, a reprodução mimética e computadorizada dos modelos científicos correntes. Os aspectos crítico-inventivos da tradição (pois é preciso usar a imaginação durante os processos) e a ciência automatizada: associações que vão de encontro ao imobilismo que exprime as concepções mais correntes de “tradição” e “modernidade”.

Apenas para ilustrar de que forma se elabora e executa esta operação, observa-se, de saída, que Pantera Negra torna invisível as nuances presentes em cada um dos processos, assim como suas particularidades e eventuais justaposições, semelhanças e diferenças. Implícita na organização social e política de Wakanda, a religião tradicional estaria relacionada à crença irracional no plano superior onde habita os anciãos, seres cujo passado venerável povoam as mentes dos habitantes. Este passado, porém, é passível de ser questionado e até mesmo superado, de forma que há espaço para uma dimensão “crítica” — como demonstra a cena em que T’Challa (Chadwick Boseman) retorna ao plano ancestral para expor, diante dos espíritos, suas discordâncias com as decisões que seu pai tomou no passado. Trata-se, porém, de uma reprovação moral — fazer o certo, corrigir o passado —, e não extra-moral — uma retificação prática (“o que fazer agora?”). A ciência, por outro lado, seria representada como uma força política e gnoseológica reacionária, compondo com os rígidos ditames da segurança, a fórmula altamente racionalizada que garante o isolamento de Wakanda. Estes modelos são reproduzidos sob a forma de uma síntese aparentemente equilibrada entre aspectos “tradicionais” e “modernos”, que, no entanto, mantém estagnada a polaridade formal. Como poderia ser diferente?

Um exemplo particular no campo da música do Brasil pode nos auxiliar a perceber as tensões entre Tradição e Modernidade de uma outra forma, bastante diversa daquela apresentada pelo filme. Em seu célebre escrito sobre música popular no Brasil, editado em 1928, Mário de Andrade traçava um paralelo categórico sobre a arte no país que, por sorte e por engenho, as décadas seguintes viriam a desmentir. Para ele, haveria entre o estado social e o estado estético da arte uma relação de determinação: as condições políticas e sociais do país determinam uma arte “primitiva” e “interessada”. Ao utilizar o conceito de “interesse”, Mário de Andrade toma de empréstimo o vocabulário da estética de Kant para caracterizar a perspectiva social de toda arte “primitiva”, geralmente voltada para os festejos e rituais coletivos, religiosos e pagãos. Em um país em que tudo faltava às populações pobres, miseráveis e assoladas pela fome, não haveria de brotar uma música popular moderna, elaborada e sofisticada, capaz de assimilar as tendências étnicas, culturais e técnicas as mais diversas e produzir, não só um repertório robusto, como também uma indústria fonográfica e um sistema de radiodifusão majoritariamente sustentado pela inventividade da música negra. Suprema ironia: fora justamente a ausência de tudo que não deixou ao negro brasileiro outra opção se não lançar-se a mais radical das experiências. Inventar tudo aquilo que lhe faltava, criar uma atmosfera capaz de conectar-lhe com o presente, constituir um chão próprio para deixar brotar alguma autoestima. Inventaram, assim, um tempo e um espaço próprios (ou impróprios, dado aquilo que lhe era oferecido pelo branco); erigiram as paredes, as ruas, estradas e cidades por onde passam os brancos; improvisaram suas próprias moradias onde até hoje cantam seus sambas e funks, regados por bebidas que induzem ao delírio e cozinhando suas comidas e quitutes. Como afirma Mbembe, essa arte nunca fora “tradicional”, pois destinava-se a denunciar a “extraordinária fragilidade da ordem social”. Essa “vanguarda da vida”, que toma a necessidade pelas rédeas (o samba, o funk, a favela, o quilombo, o terreiro) em uma relação de continuidade/descontinuidade com a máquina despótica tecno-científica voltada para a produzir maiores zonas de conservação. Marcada desde sempre pela experimentação e por uma atividade da vanguarda mais radical do que poderiam supor os folcloristas e modernistas, interagindo inclusive com a tecnologia disponível em sua época e por uma atividade eminentemente urbana, a ação das populações negras nas Américas enraizava-se sempre na necessidade demiúrgica do negro desterritorializado.


África como Mito de Unificação

Pantera Negra constrói seu delírio totalitário a partir de um subtexto teórico e ideológico que norteia o pensamento negro, nativo e imigrante, nos Estados Unidos. A espinha dorsal é a construção do Panafricanismo de Crummell, Blyden e Du Bois, entre tantos outros teóricos exilados de sua “pátria racial”. Oscilando entre uma arma de combate e uma carta de princípios, o mito de unificação da África se consolidou no imaginário do negro norte-americano, a despeito das complexas formações inerentes não somente ao Velho Continente, como também à diáspora. Ainda é comum no contexto intelectual dos EUA percebermos a tendência a se buscar respostas para o presente com um farol retroativo nas mãos, ainda que se perceba, quando se observa outras regiões e populações, uma gama de variações dos sentidos do passado, do presente e do futuro. Voltado para esta África idealizada, o farol norte-americano, contudo, não se limita a iluminar as condições que possibilitaram a escravidão e a situação do negro nas Américas, mas também, e sobretudo, parece ocupado em produzir uma dupla asserção: os negros são, indubitavelmente, “humanos” (segundo Crummell, bastava observar a capacidade de dominar o inglês e professar a fé cristã para atestar essa verdade); que a África concentrou civilizações avançadíssimas em diversas épocas e regiões (como, por exemplo, o Reino do Congo, formado no século XIV),os negros exilados pela escravidão devendo tomá-las como inspiração e fonte de conhecimento. Fica evidente que o reducionismo à lógica do dominador alimenta o calor da polêmica e marca o nascimento do Panafricanismo, pois nem a posse da língua anglo-saxônica testemunha “Humanidade”, nem a África se resume a uma pátria ideal, a um modelo de “Terra Prometida” a inspirar os condenados da terra distribuídos por onde houve escravidão negra.

Mas foi precisamente a partir daí, deste composto mítico formador da imagem de um Alto Renascimento africano, que os norte-americanos encontraram forças para, em meio às estruturas materiais e simbólicas legadas pelos brancos e indígenas, desenvolver as mais diversas atividades: uma África concebida como um imenso território unificado pela cor da pele, alimentada por uma antiguidade que justificava e, por vezes, suprimia, todo o imaginário patológico produzido pela abundância de conflitos, desacordos e descontinuidades que marcaram sua longa história. No ilusionismo moral que Pantera Negra pretende transmitir através de Wakanda, a África existe propriamente como unidade. Esta ilusão serviu ao colonizador, mas também aos exilados de todo mundo, para produzir uma generalização por redução. De que África se fala quando usamos o adjetivo “africano”? Por que não nos sentimos obrigados a especificar qual é a “África” que está em jogo, visto que são Áfricas muito diferentes na Nigéria e no Níger, em Moçambique e no Mali, em Angola, Mauritânia, Tanzânia? Assim me parece toda vez que nos referimos a este universo enquanto unidade. São muitos os relatos que tentam explicar como o rótulo “África” pôde representar, sob a forma de uma generalização, tantos povos, culturas e épocas, tantas forças que riscaram rotas comerciais e passos de dança, entoaram canções de guerra e de saudade, fincaram seus santuários, exércitos, moradias e plantações sobre o antigo continente.

Estigmatizado ao longo do século passado por ter se transformado em arma de combate, redivivo na atualidade, o Panafricanismo assumia como horizonte a instalação de um conflito mediado entre forças antagônicas, em busca por uma solução eficaz entre perspectivas divergentes — não somente entre “raças”, mas também entre modelos históricos, políticos e culturais: pensamento mágico versus ciência, razão versus emoção, império versus república, e por aí vai.  Localizado em meio a estas dicotomias, Pantera Negra se mostra um filme binário à moda americana, isto é, que opera por uma média, por uma redução das representações adaptadas ao liberalismo. Uma visão binária que, sobretudo a partir do pós-guerra, quando se amplia a autoconsciência das populações negras, opera sempre no limite entre um “nós, negros bem-sucedidos norte-americanos” e os demais “negros” do mundo, os losers, os ressentidos, os necessitados. Decorre daí o debate que se instala entre nacionalistas e internacionalistas em Wakanda, a partir de uma pergunta ética: deveríamos mobilizar o aparato tecnológico do país para estender a mão a outros povos negros do mundo? No limite, Wakanda, convertida em referência, se torna espelho dos EUA, ao passo que os EUA se tornam o espelho do Terceiro Mundo.

Essas questões e conversões entre o tradicional e o moderno testemunham um limite: em determinado momento, quando o Panafricanismo teve que ser resgatado por aqueles que formariam os movimentos de resistência por dentro da América triunfalista do pós-guerra, tornou-se necessário repensar o racismo fora dos EUA, isto é, a opressão racial como uma questão mais ampla. Os documentos e textos relativos a esta transição podem ser encontrados no legado do partido Panteras Negras, no qual Huey Newton identifica, para além do nacionalismo e do internacionalismo, o “intercomunalismo reacionário” – a interconexão das comunidades mundiais sob o capitalismo global – e o “intercomunalismo revolucionário” – enquanto modo de resistência para além de quaisquer formas de nacionalismo ou internacionalismo, visto que as nações já não poderiam existir independentemente dos processos econômicos imperialistas. Mas no filme, na lógica pretensamente inofensiva do “entretenimento” voltado para o público negro (identificada a expressões mais recentes como “Dear White People”, “Insecure” entre outros), percebe-se o esforço em manter as dicotomias em vistas do fortalecimento de uma condição: para que a reivindicação por “igualdade” permanecesse válida, seria necessário reivindicar valores a serem partilhados e assimilados por negros e brancos. Embora conciliatória, essa equação não comporta a participação de imigrantes, mantendo intacto o abismo entre “branco” e “negro” que o racismo científico tratou de aprofundar. Apesar da reivindicação ideologicamente afinada com o pensamento do partido Panteras Negras, a lógica desse entretenimento é a mesma da autoajuda: confunde-se a luta por afirmação, direitos e “felicidade” com a reificação de uma identidade bem-acabada, e não com uma transição experimental enquanto descolonização. Se como afirma Fanon, “a descolonização implica na criação de homens novos”, observa-se que há uma linha tênue entre tendências de conciliação com modelos culturais herdados e consolidados (mais associados aos traços de continuidade do que aos de renovação) e tendências a criar espaço para novas subjetividades e formas de vida. Isto pode ser percebido na prática de artistas como Lee Scratch Perry, que opera sempre no limite das linguagens e das técnicas para fazer um contraponto à noção de cultura “tradicional” associada à diáspora. Pois ao inventar novas formas de gravar e produzir música, Perry, entre tantos outros negros diaspóricos, fez proliferar dinâmicas descolonizatórias, isto é, um modo de transformar a vida por uma reutilização criativa do som, da técnica, do tempo e do espaço.


Diáspora e Caricatura

Na aurora do Panafricanismo, o Padre Alexander Crummell considerava o domínio da língua anglo-saxônica e o cultivo da fé cristã como uma dádiva para as populações negras. O credo para o qual Appiah chama atenção reside no uso corrente e naturalizado de categorias universais atreladas Cristianismo, como subtexto através do qual se formaria uma imagem idealizada da África. Não havia consenso entre os diversos intelectuais que postularam as bases do Panafricanismo, mas uma ideia era aceita por todos: a África como a pátria da “raça negra” e, justamente por isso, serviria como referência, como matéria-prima aos povos exilados por todo o mundo. Até mesmo Crummell considerava o inglês “uma língua superior” aos dialetos africanos por melhor expressar a “Verdade revelada”, mantendo-se seguramente embaixo deste imenso guarda-chuva categorial. Para um filósofo atento como Appiah, o nascimento do Panafricanismo é atravessado por um “racismo intrínseco”, que toma a diferença racial do ponto de vista ontológico, subsumindo as diferenças históricas e cosmológicas sob uma “África” mitificada, construída como uma categoria ampla e generosa, ainda que rarefeita.

O problema reside no fato de que, para os “exilados”, pelo menos os que tinham condições e recursos para “falar”, estavam apartados de algumas realidades profundas desta abundante “Mãe África”, pouco conhecida até mesmo para um descendente de ganenses como Du Bois. Também não conheciam devidamente as populações escravizadas que, alforriadas, se enraizavam e transformavam as cidades que já habitavam por cerca de cento e cinquenta, duzentos anos. Ainda que esses processos se constituam de forma assimétrica, não havendo como afirmar categoricamente a inexistência de uma conexão cultural com a África na formação dos Estados Unidos  —, não se justifica, contudo, a tese de que nos lá houve “abandono cultural” das raízes africanas devido ao fato de que, desde cedo, os negros se consideravam “nativos”. Observa-se nos Estados Unidos que os negros norte-americanos tiveram que se adaptar integralmente às estruturas linguísticas, cosmológicas, religiosas que já se encontrava na base protestante das populações que habitavam a América do Norte. Daí o contraexemplo: o complexo Jeje-Nagô que se forma na Bahia de Todos os Santos, encontra as populações Bantas que já se consideravam nativas. Não havendo esquecido Zambi, Dandalunda e Catendê, tampouco os usos religiosos e recreativos dos tambores, mantinham uma outra dinâmica de transmissão, influência e síntese, bastante diversa da América do Norte.

Observa-se, ainda, um parentesco tenebroso entre as formas de representação mítica da África unificada, perceptível nas manifestações culturais norte-americanas e uma utilização caricatural do continente que vai povoar o cinema norte-americano. O caso que mais me chama a atenção – e que se relaciona diretamente com Pantera Negra – é o de Eddie Murphy. Seus filmes ridicularizavam os hábitos orientais (O Rapto do Menino Dourado, Michael Ritchie, 1986) e africanos (Um Príncipe em Nova York, John Landis, 1988) da perspectiva de uma média populista do negro norte-americano: uma malandragem despojada, uma franqueza criativa na linguagem, uma forma de ver as coisas típica desta tipologia do homem negro americano. Lembremos que, ainda nos anos 1980, os filmes de Murphy alimentavam uma imagem determinada desta tipologia, trabalhando com personagens construídos a partir de uma mistura de auto ironia com orgulho comunitário. Embalada pela música do “Rei do Pop”, então universalizada por uma máquina corporativa dirigida por brancos, as expressões do orgulho negro atravessavam as demais manifestações negras, desde o Living in America (versão black do Born in USA) até o USA for Africa. No plano das representações, as indumentárias e a dança ceremoniais dos “africanos” de Wakanda não destoam nem um pouco da caricatura ofensiva de Um Príncipe em Nova York.


Wakanda como Quimera
Tomemos a construção visual da cidade de Wakanda. Temos muito a lamentar a ausência de qualquer menção à vida urbana e ao povo local, limitando-se o filme a descrever, em praticamente sua totalidade, os rituais, diálogos e conflitos palacianos e os campos de guerra. A representação visual e a mise-en-scène das sequências na cidade indicam alguns estereótipos com os quais o filme trabalha, que o mantém muito próximo das representações caricaturais dos filmes de Eddie Murphy. A representação visual da cidade não toma como base Nova Iorque ou Los Angeles, mas, talvez, a Jamaica, pela proximidade com a questão fundamental da língua. Já entrevemos que a solução dada pelo filme é uma espécie de Trenchtown gentrificada, comportando, de forma “sustentável”, as casas humildes e o aspecto rural da favela jamaicana.  Por outro lado, no aspecto tecnológico, as poucas e precárias adaptações (como o tosco “botoque digital”) não escondem a supremacia de uma escola visual eminentemente anglo-saxônica e hollywoodiana, na escolha dos modelos de naves espaciais e dos contornos dos Palácios, aposentos e centros de tecnologia. Como nas religiões afro-brasileiras, o campo ritual alude à cachoeira, com os representantes das diferentes nações que compõem Wakanda dançando nas bordas de uma queda d’água. Mas isso como um ritual de passagem organizado dentro de uma lógica na qual a dança está associada à guerra ou à religião. Aliás, o Panafricanismo de Pantera Negra não dança e não canta por alegria, diversão, lascívia, por festa ou comemoração pagã, como também não toca instrumentos musicais. Não requebra a cintura, sequer pronuncia os contornos rítmicos ondulantes da palavra “bunda”. Aliás, a bunda em Wakanda é um elemento inexistente, represado: a bunda não se mexe lateralmente, nem a pélvis, nem os quadris. Wakanda também interditou quaisquer dispositivos químicos embriagantes ou alucinógenos, propulsores do requebro: não se bebe nenhum tipo de aguardente em Wakanda; não se fuma nenhuma erva estupefaciente em Wakanda. À moda de uma fortaleza protestante, Wakanda interditou a farofa e o feitiço, mas também a batucada alegre e pagã, os devaneios corporais não-marciais, o delírio do corpo (a bunda, o peito, as coxas), a alegria contemplativa, corpórea, o calor da roda e do tambor. Tudo ali concorre para o fortalecimento do objetivo: conservar, proteger. Wakanda não é menos paranoica com segurança do que seu espelho, modelo e opressor, os Estados Unidos.

O consenso de que há somente “mulheres fortes” no filme pode ser relativizado se analisamos mais de perto o papel que cada uma desempenha não só na trama, mas na economia simbólica geral de Wakanda. Okoye (Danai Gurira), por exemplo, é general, representando as armas e ostentando a artificialidade de uma expressão de poucos amigos. Ramonda (Angela Bassett) é a matriarca sem matriarcado, representando os valores da Família e assegurando os procedimentos e rituais — que, em todo caso, também decorrem de uma média cultural bastante próxima da síntese céltica. Nakia (Lupita Nyong’o) é a assistente social politizada, comprometida com a diminuição da desigualdade nos países pobres da África, e espelha o tipo de ativismo oportunista, prática comum entre os membros do star system hollywoodiano. Por fim, Shuri (Letitia Wright) representa a jovialidade saltitante do ideal científico, mas sem mencionar, por exemplo, as relações entre raça e ciência no século XIX. Não seria importante nos perguntarmos em que medida a força dessas personagens não estariam associadas às representações dos valores pré-determinados pelos homens brancos e suas instituições?

(Para quem se pergunta por que cargas d’água um filme da Marvel se deteria nesse aspecto da História, por favor, pergunte-se também porque mostrar Magneto lutando contra os nazistas em campos de concentração em X-Men — Primeira Classe (2011)? Ou a representação preconceituosa do sequestro do cientista playboy pelos “terroristas” afegãos este playboy que, segundo conta a história, pretende produzir justiça social escondido atrás de uma armadura tecnológica (Homem de Ferro, 2008)? )

No fim das contas, Wakanda é uma quimera panafricanista construída rigorosamente à luz dos valores “brancos” norte-americanos. Não quer dizer que haja consenso entre esses “brancos” e os modos como reproduzem seus mecanismos de violência e controle, mas a cor da pele é uma marca que persiste como critério no modo como este controle é produzido. Isso fica evidente por todos os lados, mas sobretudo quando nos perguntamos, ainda na sala de cinema, se Killmonger (Michael B. Jordan) não estaria vendo as coisas com mais clareza do que o filme desejaria mostrar. E que T’Challa, este príncipe sentimental e idealizado à contraluz do Príncipe de Maquiavel, corresponderia estranhamente às elites africanas do século XX, sanguinárias e entreguistas, completamente alienadas da dura realidade de seu povo. E, que por fim, assumem acriticamente os valores que, de uma forma ou de outra, constituíam a justificativa moral da escravidão. Quando retorna aos EUA para reconstituir a trajetória de seu tio, T’Challa comenta com Nakia seu desejo de construir um centro cultural no Oakland. Nada mais desprovido de propósito e sentido do que uma apologia da gentrificação em pleno Oakland, a mesma gentrificação que empurra as populações negras para longe do “waterfront”, substituindo-as por prédios imensos e lojas de celulares.

Wakanda como quimera pode ser lida em uma outra chave: como a África, não existe propriamente, é mais um mito estratégico, reiterado por intelectuais privilegiados do jet set acadêmico e administrado por um império do entretenimento que se vale das tensões do momento para disseminar a exaltação das forças da guerra, da burocracia e da ciência gerida pelo capitalismo corporativo. Uma comparação com outra unidade guerreira, Palmares, e Wakanda não se sustenta como modelo de resistência e administração da vida. Apesar de sua formação guerreira, que rechaçou mais de 30 expedições portuguesas e holandesas, Palmares se constituía como uma autêntica formação banta, cuja característica cultural era a combinação de preservação sincrética de seus hábitos, práticas e crenças, assim como uma tolerância que comportava o convívio com índios e até mesmo brancos, todos acorrendo ao Quilombo devido à fartura da sua produção — segundo Nei Lopes “nos tempos de paz, os palmarinos vinham vender o excedente de sua produção” aos povoados vizinhos. Uma unidade guerreira, porém talhada com bases éticas diversas das de Wakanda, pois não havia sequer resquício de dúvidas com relação aos benefícios da convivência e da vizinhança. Tanto a lógica existencial como a imaginação política de Palmares comportavam o convívio entre diferentes mundos.

No Brasil, Pantera Negra foi comemorado como uma vitória, e, antes mesmo de assistir ao filme, muitos colegas já antecipavam os efeitos promissores que um herói da Marvel negro seria capaz de suscitar entre crianças e adolescentes, em sua maioria, carentes de ídolos parecidos com seus amigos e familiares. Mas Wakanda é também a expressão de uma imagem que as crianças não carecem exatamente: uma necessidade de aprisionar e quantificar a força do trabalho, a potência de criação, a disposição física e sexual, a inteligência, a velocidade, o olhar, a beleza, o ritmo que em Wakanda, são represados. A Elite-Represa de Wakanda carece da segurança. Não é à toa que os Republicanos de Wakanda aceitam de bom grado a ajuda da CIA para caçar terroristas sul-africanos, pois trata-se de mais um componente na economia geral da trama a justificar uma intervenção robusta na arte de se subsumir diferenças e produzir maiorias. É de um oportunismo baixo sobre o qual somos obrigados a dizer em alto e bom som: corra!

(Publicado em 09/03/2018 na Revista Cinética - online)


quarta-feira, 30 de abril de 2025

PENSAR A ESCOLA COM GILBERT SIMONDON — Jean-Hugues Barthélémy*














Tornou-se trivial destacar o estado de crise em que as escolas se encontram hoje. O que parece menos claro é estabelecer a ligação entre, por um lado, a influência negativa das indústrias culturais no desejo de aprender dos nossos estudantes e, por outro lado, a necessidade e urgência de uma reforma completa dos programas e não apenas dos cursos (e estes são essencialmente os cursos que a reforma planejada pelo atual Ministro da Educação quer modificar). Ora, esta ligação pode ser feita hoje, porque temos agora na França duas obras decisivas e totalmente complementares, uma das quais amplia explicitamente a outra em certos aspectos: as obras dos filósofos Gilbert Simondon e Bernard Stiegler.

Como já dissemos em outro lugar, em colaboração com Julien Gautier [1], os méritos do insight fornecido por Stiegler em seu livro Prendre soin. No que diz respeito aos jovens e às gerações [2] em particular, gostaríamos de voltar aqui brevemente às “Reflexões preliminares sobre uma reforma do ensino” [3] propostas por Simondon na década de 1980, a fim de identificar os elementos precursores de uma verdadeira reforma escolar adaptada aos nossos tempos.


O quadro geral destas Reflexões é estabelecido por Simondon nos seguintes termos:


Adaptar um ser a uma sociedade estável é especializá-lo de modo a poder integrá-lo ao nível da estrutura vertical. Adaptar um ser a uma sociedade metaestável significa dar-lhe uma aprendizagem inteligente que lhe permita inventar com o objetivo de resolver os problemas que surgirão em toda a superfície das relações horizontais. O século XIX teve que construir em poucas décadas uma sociedade de especialistas, adaptada à era da termodinâmica, segundo o princípio da rigidez: daí um fortalecimento da estrutura vertical, tornando-se ubíqua e estendendo-se mesmo onde antes existiam estruturas horizontais (por exemplo, na relação entre a cidade e o campo: um cavalheiro do século XVIII, vivendo em suas terras, não era inferior a um rico comerciante da cidade; no século XIX, o banqueiro tornou- se o deus industrial da cidade). Temos agora que fazer em poucos anos uma educação que transforme as sobrevivências das relações verticais em relações horizontais. (“Prolégomènes à une refonte de l'enseignement”)

Simondon não se contenta aqui em antecipar o que tem se caracterizado até aqui como a “democratização da escola”, ele também formula a passagem da “estrutura vertical” para as “relações horizontais”, especificando a mudança na sociedade que esta passagem deve levar em conta, e que precisamente não conseguimos levar em conta na modificação dos programas escolares. Esta mudança na sociedade é marcada pela diferença entre uma “sociedade estável” e uma “sociedade metaestável”. Esta noção de metaestabilidade designa um tipo de equilíbrio dinâmico, contendo potenciais para um futuro, ao contrário do equilíbrio estável onde os potenciais se esgotam. A nossa sociedade é metaestável neste sentido, e a principal razão para isso é a aceleração do progresso nas novas tecnologias, concebidas hoje por Stiegler.

No entanto, Simondon, a partir de 1958, em Sobre o modo de existência dos objetos técnicos [4], mostrou como a tecnologia é, portanto, uma dimensão importante da cultura, chamada mesmo a tornar-se aquilo que molda uma civilização, com todos os riscos que a podem acarretar. Trata-se, portanto, de prevenir — o que as nossas sociedades claramente não conseguiram fazer, desde o momento em que escreveu estas linhas, nem no campo da ecologia, nem naquele que podemos chamar de “ecologia da mente”, que isto é, no domínio da saúde psicológica não só dos trabalhadores, mas também dos cidadãos que se tornaram consumidores instintivos. O mérito de Simondon foi, portanto, associar uma reabilitação da tecnologia a uma reflexão sobre o que chamou de “alienação psicofisiológica” na era das máquinas. Daí a sua insistência na capacidade de invenção, única garantia de um acoplamento homem-máquina que não seja alienante para o homem e que ao mesmo tempo permita à tecnologia aceder à dignidade da realidade cultural.

Apreciaremos, portanto, facilmente o que é decisivo para a escola de hoje, o projeto simondoniano de uma “cultura técnica”. Para entendê-lo, comecemos com esta afirmação de Sobre o modo de existência dos objetos técnicos: “Há cultura mais autêntica no gesto de uma criança que reinventa um dispositivo técnico do que no texto onde Chateaubriand descreve esse “gênio assustador” que foi Blaise Pascal” [5]. Simondon, nesta insistência nas virtudes da aprendizagem teórico-prática da história das invenções técnicas, poderia lançar luz sobre os desejos mais atuais de reforma educacional. Ele sabia, de fato, que nossa era exige uma história de invenções feitas para a curiosidade das crianças, e preparando essas mentes jovens para depois se beneficiarem no ensino fundamental e médio:

— atividade mental bem diferente da atual repetição mecânica das soluções já dadas — aplicada até mesmo ao Bacharelado, a partir de agora, na preocupação com o “sucesso” do maior número de pessoas no exame.

— de uma história das ciências que lhes permita dar sentido às fórmulas científicas que lhes são solicitadas a manipular, sem sequer abri-las a ir além do simples senso comum, do qual, no entanto, procede a sua descoberta — como o famoso “princípio da inércia” da Galileu, que os nossos estudantes conhecem mas do qual não estão preparados para admitir que o seu significado é o da relatividade do movimento como a equivalência do movimento retilíneo uniforme e... do repouso. Sobre a oposição entre razão científica e simples bom senso, leremos naturalmente a obra epistemológica de Gaston Bachelard em geral, e em particular A Formação da Mentalidade Científica, mas também a obra de Françoise Balibar intitulada Galilée, Newton, lida por Einstein [6].

— de um estudo do funcionamento das tecnologias entre as quais os nossos filhos estão a crescer e das quais são, neste momento, apenas utilizadores-consumidores incapazes de explicar o seu funcionamento, nem a fortiori os efeitos sobre a psique — efeitos dos quais, no entanto, numerosos estudos tendem a mostrar que é hora do conhecimento nos proteger, tornando-nos capazes de praticá-los, que não se reduzam ao seu simples uso atual por impulso. Neste ponto, Bernard Stiegler estende hoje Simondon de uma forma que tende precisamente a fazer da saúde psicossocial uma prioridade política — justificada pelo fato de a atenuação instintiva do desejo ser a fonte das piores catástrofes destrutivas.

Podemos, portanto, imaginar que na escola primária uma história sintética das civilizações tomaria como fio condutor ou espinha dorsal esta história das grandes invenções técnicas pelas quais essas civilizações se definiram. O ensino médio deveria ser o único período em que estudamos história analítica, ou seja, com detalhe econômico e político para uma determinada área geográfica num determinado momento. Porque no ensino médio a história sintética da escola primária deverá ser repetida, mas com todo o sentido que o recuo da consciência reflexiva e já formada permite. Quando falamos de ensino fundamental, ensino médio e faculdade, não prejulgamos as idades em que começam e terminam. Aqui, novamente, é bem possível que mudanças sejam necessárias. Simondon, por sua vez, destacou em qualquer caso que aos dezoito anos é necessário ter uma parte prática e profissional dos estudos e, inversamente, uma vez concluídos os estudos, o trabalho deve conter uma parte de formação teórica continuada.

Quanto à filosofia, “não deve ser concebida como o coroamento dos estudos literários. Deve ser repartido pelos quatro anos que vão dos catorze aos dezoito anos. Não é de ordem literária, assim como não é de ordem científica. As ciências humanas devem ser ensinadas a partir dos quatorze anos” [7].

*Jean-Hugues Barthélémy, Professor de Filosofia em Brest, Doutor em Epistemologia e História da Ciência e Tecnologia pela Universidade de Paris 7-Denis Diderot, autor de Simondon ou do Enciclopédismo Genético (PUF, 2008).


NOTAS
[1] Conferência online “Destruição e formação da atenção — Considerações sobre a crise sistêmica da educação e suas consequências práticas”. https://arsindustrialis.org/destruction-et-formation-de-lattention-consid%C3%A9rations-sur-la-crise-syst%C3%A9mique-de-l%C3%A9ducation-et-ses-1

[2] STIEGLER, Bernard. Prendre Soin. De la jeunessse et des générations. Paris: Flammarion, 2008.

[3] SIMONDON, Gilbert. Prolégomènes à une refonte de l'enseignement. In: Sur la technique (1953-1983). Paris: PUF, 2014. p. 233-253.

[4] SIMONDON, Gilbert. Du mode d'existence des objets techniques. Paris: Aubier, 1989. 

[5] SIMONDON, Gilbert. Prolégomènes à une refonte de l'enseignement. In: Sur la technique (1953-1983). Paris: PUF, 2014. p. 233-253.

[6] SIMONDON, Gilbert. Prolégomènes à une refonte de l'enseignement. In: Sur la technique (1953-1983). Paris: PUF, 2014. p. 233-253.

[7] SIMONDON, Gilbert. Prolégomènes à une refonte de l'enseignement. In: Sur la technique (1953-1983). Paris: PUF, 2014. p. 233-253.