quinta-feira, 25 de setembro de 2025

ITAMAR ASSUMPÇÃO E A PRECISÃO DO RASCUNHO


 

Para Juçara Marçal e Negro Leo

Eu tenho cabelo duro, mas não o miolo mole!


1. "DEUS TE PRETEJE!"

Quem viveu os anos 1980 tem todo o direito de assistir com ironia toda a deferência contemporânea à música de Itamar Assumpção (1949–2003). Podemos até fantasiar uma cumplicidade extramundo, o próprio Itamar devolvendo o olhar irônico, emendando com um jogo de palavras, uma tirada fina, uma provocação. Por este motivo, pode-se afirmar, sem temer o risco da presunção, que a obra de Itamar Assumpção vive e pulsa sob o signo do inacabado.

Suas considerações, experiências sonoras, musicais e performáticas, indicam uma prescrição inconveniente: a música que ele produziu implica, ainda hoje, em uma atividade ativa de escuta, capaz de identificar uma rica e estranha contra-imagem da tradição cancional brasileira. Revela a consistência desse inacabamento ao prolongar os traços inconvenientes de uma negritude que, mesmo à mercê dos códigos e das condições territoriais marcadas pela insegurança, sempre esteve habituada a manejar a informação e as tecnologias do corpo, do som e da festa.

É conhecida a história de sua prisão em meados dos anos 1970, ainda em Londrina, portando um gravador emprestado, o que levantou suspeita de policiais que provavelmente nunca tinham visto um negro portando um gravador. Este episódio, que lhe acarretou cinco dias na prisão, foi o estopim para que tomasse a derradeira decisão pela vida artística. Sabe-se que, daquele instante em diante, decidiu ser músico e saiu de Arapongas, cidade do Paraná, para São Paulo.

A obra de Itamar prolonga o curto-circuito antropofágico por outras linhas, desta vez associadas aos enfrentamentos e desafios das populações negras urbanas e periféricas no fim do século. Uma obra que é, simultaneamente, invenção e crítica das escolas e tendências correntes da música popular, utilizando, como método de filtragem, a “oralidade cinética” do samba sincopado, do samba de breque, do funk e do rap, do reggae jamaicano, e, por vezes, do rock norte-americano.

No panorama amplo e diverso da música feita no Brasil de hoje — que está longe de se resumir à sigla MPB — Itamar está vivo também por contextualizar um espaço pluralista para as populações negras, evitando identificar-se definitivamente com os papéis pré-concebidos pela sociedade aos músicos negros — além de sambista, funkeiro e malandro, Itamar também tomava como horizonte a vanguarda da experiência pop de seu tempo. Sua atualidade advém das linhas potenciais liberadas por suas realizações, como também por entrar em sintonia com alguns dos traços da cultura negra jovem atual, antenada aos arroubos irônicos e combativos do Rap e do Baile Funk, habituada com a combinação de formato pop e discurso crítico determinado por artistas como Prince, e, hoje, o “negro drama” de Mano Brown e Kanye West.

Assumpção e sua banda, a Isca de Polícia, foram revelados junto ao grupo de artistas que, entre o final da década de 1970 até 1985, fizeram do teatro Lira Paulistana a casa da chamada Vanguarda Paulista, um dos grandes centros de experimentação musical da época. Desde sua aparição no final da década de 1970, desenvolveu um estilo próprio de tocar, cantar, compor e se apresentar. Na época em que saíram os dois últimos volumes da trilogia Pretobrás, ressaltou-se a peculiaridade da experiência póstuma, tão poderosa e evocativa de sua presença. Mesmo em seus dois discos póstumos, Itamar parecia fustigar os vivos. Ainda hoje, não há o que nos impeça de afirmá-lo sob variadas formas. Por exemplo, para a resistência de uma juventude negra, a reafirmar o estatuto vanguardista de artistas populares como Mano Brown, os funkeiros Rennan da Penha e Iasmin Turbininha, o mestre de maracatu Anderson Miguel, o bregafunk de Shevchenko & Elloco.

Ouvir Itamar hoje é submeter sua audição a uma espécie de Saci que, com seu “lirismo objetivo”, prega peças em ouvidos distraídos, mestre dos enigmas à moda de Bob Dylan, deslocando-se no contrapé dos ditames da MPB. Evidentemente, a repercussão de uma voz negra altiva e consciente de sua potência criativa, apta a provocar um curto-circuito entre faixas culturais e se comunicar por enigmas, não seria capaz de evocar uma compreensão unânime em um País que conserva o indelével traço escravocrata.

Mesmo lançando seus primeiros trabalhos de forma independente — Beleléu Leléu Eu (1980), Às Próprias Custas S/A (1982) e Sampa Midnight — Isso não vai ficar assim (1983) — e conquistando prêmios de Revelação do Ano, concedido pela Associação Paulista de Críticos de Arte, em 1981, e Pesquisa de Música Popular Brasileira, concedido pela Shell, em 1982, Itamar caiu no estigma do “artista maldito”. Como escreve Maria Betânia Amoroso, “o mito romântico do artista genioso, difícil, irascível e marginal insiste em manter o inquieto Itamar preso ao clichê. As várias dimensões de Itamar [...] só poderão se mostrar se as máscaras inventadas pelo próprio autor, no exercício da arte, e as demais, sugeridas e reforçadas pela imprensa, forem abandonadas”.

A despeito de todos os poréns que a mediocridade e o racismo à brasileira interpuseram entre Itamar Assumpção e o grande público, ainda hoje é reconhecido como um poeta, compositor e instrumentista central na música paulistana deste e do século anterior. Artistas negros enfrentaram e ainda enfrentam as barreiras de um mercado seletivo: espera-se do negro que cante, não uma música híbrida e experimental, mas samba ou funk em uma linguagem popular acessível. Seria necessário, então, não nos fiarmos mais nos estigmas que a mídia e as corporações culturais apregoam, para buscar na própria matéria musical, sonora, o que há de gigante no artista em questão. 

Para tanto, a primeira tarefa seria desvinculá-lo, ainda que provisoriamente, do termo “cancionista”. Do período particular de consolidação da chamada MPB até meados dos anos 1980, alguns poucos artistas manteriam, em diferentes graus de confrontamento, uma posição de reverência e desconfiança simultâneas em relação à “linha evolutiva” da música brasileira. Percebe-se no trabalho desses autores, que a reverência espontânea à canção brasileira se confrontava com uma desconfiança acerca da seletividade com que alguns caíam nas graças da Indústria Cultural, enquanto outros caíam nas malhas do isolamento. No momento em que, sob o rótulo genérico MPB, consolidou-se um grupo mais ou menos delimitado de trabalhos musicais a serem promovidos, o estigma de “maldito” pairou sobre aqueles que destilavam posturas provocativas em relação ao gosto médio vigente e às exigências do mercado fonográfico e das rádios. Um projeto de filtragem estética, que admitia certas poéticas e sonoridades em detrimento de outras, entrelaçava-se a um projeto de dominação política e econômica.

A atividade do “cancionista”, restrita ao labor da canção, indica a predeterminação de um lugar e de características às quais devem se submeter todos os compositores que pretendem reservar seu lugar no Panteão da Canção Brasileira. Preconcepção que parece operar para além dos movimentos de apreensão teórica, atuando como força motriz para estabilização e hegemonia exegética da atividade artística. 

De maneira divergente daquela estabelecida pelo panteão — a canção como força motriz, como epicentro de toda uma cultura sonora e musical — artistas como Itamar, mas também Os Mutantes, Tom Zé, Arrigo Barnabé e Maurício Pereira, tomaram-na como um elemento, entre outros, a serem manejados em uma órbita rica em possibilidades, tendo por finalidade a expressão estética, mas também moral e política — pois se referem à construção de personalidade e estilo em posição de divergência com a tradição e sua “linha evolutiva”.

Para além de um “cancionista”, quero dizer, de um artista cuja principal atividade se delimitaria à construção de uma dicção, de uma “gestualidade oral”, me parece que Itamar buscou imprimir pelo menos três outros aspectos em sua trajetória artística. Primeiro, reforçar, através de técnicas de composição e performance, o vínculo entre a invenção e a crítica do movimento cancionista ou da visão cancionista da Música Brasileira. A necessidade de se posicionar como um artista pop (e popular) — “agora eu quero cantar na televisão!”, bradava em seu terceiro disco — e, como os popstars negros norte-americanos, vincular a atividade de compositor, intérprete e instrumentista a um elemento de performance que não se restringia à interpretação, mas à ideia de instauração. Mais do que um crooner, o intérprete deve abrir caminho para um acontecimento, um instante, um espetáculo. Gravado ao vivo, seu segundo álbum (Às Próprias Custas S/A), constitui um exemplo dessa capacidade de estabelecer um campo de tensões dramáticas, cênicas, durante a apresentação das canções. 

Justapondo-se ao aspecto performático, a base da sua música consistia em alguns elementos identificáveis. O vínculo direto com a rítmica banta do Batuque de Umbigada, característico de sua terra natal, Tietê, interior de São Paulo, hoje representado pela grande cantora Anicide Toledo. A acentuada polifonia da Umbigada de Tietê constitui, sem sombra de dúvida, um dos traços afro-brasileiros na música de Itamar, caracterizada por uma sonoridade particular da formação instrumental — constituída por tambu, quinjengue, matraca, guaiá e apito. Em seguida, as notórias derivas da tradição cancional, a começar por Tom Zé, Jards Macalé, Walter Franco e Arrigo Barnabé. Completam o quadro: uma liberdade em experimentar as formas do reggae de Bob Marley e Gilberto Gil, o funk/soul/pop negro norte-americano e, de maneira muito particular, o samba sincopado de Geraldo Pereira e o samba de breque de Moreira da Silva. 

Talvez pelo fato de ser contrabaixista, uma estratégia comum em suas canções é concebê-las não a partir da harmonia, mas de uma linha de baixo, um ostinato que opera como centro harmônico.  A roupagem instrumental — contando geralmente com guitarra, baixo, bateria, percussão, piano elétrico e, mais tarde, sintetizadores — evolui para formas menos assimiláveis a algum gênero específico. Composições e arranjos irredutíveis a algum gênero mais objetivo, invenções que pareciam mais preocupadas em criar um trânsito entre urbanidades diaspóricas, sem recorrer a fórmulas gastas e previsíveis. Tudo isso envolto em uma concepção de arranjo e instrumentação, que não se parecia com absolutamente nada no cenário musical brasileiro da época: arranjos mais dramáticos do que propriamente musicais, trilhando caminhos expressivos entre recursos cênicos e performáticos, relatos delirantes do cotidiano e observações mordazes da mediocridade brasileira.

A partir desse método, surgem, por exemplo, muitas da faixas de Sampa Midnight, como E o QuicoPrezadíssimos ouvintes e Navalha na liga, parceria com Alice Ruiz, a linha de baixo servindo de epicentro, enquanto vários episódios instrumentais e onomatopaicos rondam a estrutura, os versos oscilam entre algo próximo ao rap e ao jogral, num formato próximo do funk norte-americano, mas com características próprias do seu versejar falado e performático. “Valha navalha na liga: nada na barriga!”
Sua poética é marcada por uma lógica do estranhamento, pelo reaproveitamento disjuntivo de diferentes ordens de informações — o que nos remete à tirada certeira de Paulo Leminski em Catatau: “Informação é expectativa frustrada” — isto é, driblar o excesso de previsibilidade, deslocar a expectativa no contrapé de tudo o que seja excessivamente previsível — pois, por exemplo, nos aspectos rítmicos, algum grau de previsibilidade é até desejável. O verso articulando uma cinética oral que usa a palavra para criar saltos e sobressaltos, entre a canção tradicional e a cantiga de rua — ou, como afirma Tom Zé, a “descanção”:

Justo você Berenice
que não chega nem aos pés da Vera Fischer
me sai com essa sandice
De que meu som não chega
Nem no calcanhar de Aquiles
do som do Sting, ex-The Police

Ou ainda:

Vem, ó minha amada
Me dê a mão
E vamos sair por aí
Para ver os preços.

Ao conduzir o olhar romântico para um passeio no supermercado, Itamar extrapola a ironia e descortina uma visão cáustica do consumismo urbano, provocando a eclosão de um lirismo intempestivo, uma emoção criada mais pelo estranhamento disjuntivo do que pela harmonia da forma poética. Itamar levou adiante uma associação igualmente problemática entre a coloquialidade espontânea da dicção malandra — concentrando formas fragmentárias, entoativas e onomatopaicas — com as visões de uma poesia sonora que, tal como o rap, poderia ser de rua e de vanguarda. A interpretação e, por vezes, as próprias canções, assimilavam mais o caráter falado do que o cantado. A voz articulando frases inteiras ou recortando-as tanto pelo diálogo frenético com os backing vocals femininos — em forma de pergunta-e-resposta ou em jogral; ou ainda justapondo vozes em overdubs para extrair um efeito de textura vocal, como, por exemplo, em faixas como “Sutil”. Itamar parecia evitar, cada vez mais, a alternância de alturas, a tessitura dolente da voz, o aspecto emocional da grande canção brasileira, mais centrada no apuro das articulações melódicas. Em termos de timbre, sua voz passeou por diversas possibilidades, ressaltando sempre o aspecto textural, o grito, o sussurro.

Ao mesmo tempo em que seu estilo primava por uma subjetividade decisiva que a tudo recobria, havia algo de pluralista em suas ideias, táticas e personagens. Convém aqui problematizar a própria ideia de autoria: Itamar corresponde hoje a um território tomado por muitas subjetividades, topologias e espacialidades. Um artista cercado de cantoras, músicos, poetas e produtores que atuaram, de forma decisiva, na elaboração de sua produção.

Outros parceiros chegariam aos poucos através das canções, entre eles um tipo muito especial: Benedito João dos Santos Silva Beleléu, vulgo Nego Dito, “cascavel”. Personalidade forte, cujas características vão sendo ressaltadas nas canções, Nego Dito é perigoso: fica louco, faz cara de mal, fala o que vem à cabeça, não gosta de gente, não gosta de pente; não deduz, portanto, uma postura mínima para satisfazer regras de convívio de uma sociedade racista. Nego Dito antecipa a personalidade artística de Mano Brown. Por vezes, é melancólico, mas sua melancolia é também um jogo de cena com o olhar da branquitude: o banzo como linha de fuga, como estratégia de deslocamento e recusa aos modelos vigentes. O artista se coloca em posição de guerra, assimila a postura de uma nobreza negra que expõe sua melancolia devido a razões políticas. Como em Us (2019), filme mais recente de Jordan Peele, o jogo de espelhos não se concretiza entre indivíduos opostos pela diferença, mas entre as disposições conflitantes que habitam um mesmo indivíduo: o artista negro tematiza a grandeza de sua posição, tanto racial-coletiva quanto individual-subjetiva, em sintonia com sua posição enquanto indivíduo concreto, enfrentando cotidianamente os constrangimentos e a violência emanada pela sociedade na qual está submerso.

O compositor pode, então, se utilizar como matéria-prima das inflexões corporais e sociais acarretadas por uma psicopatogênese da colonização, por um autoestudo do sentimento de subalternidade psicológica e social dos negros diaspóricos, sublinhada pelo filósofo e pensador martinicano Frantz Fanon. Como Mano Brown, Itamar foi um artista apto a empreender a mutação do sentimento psicopatológico, transformando o prejuízo psíquico em uma vigorosa política de autoafirmação. 

Provocado por uma ordem social e cultural, frágil do ponto de vista das relações raciais, ele exacerbava os aspectos de sua atividade considerados problemáticos. Constantemente provocado por uma atividade oscilante entre a busca experimental e a necessidade de participar do circuito vigente, entre uma pesquisa experimental e uma vocação pop, entre muitas tradições (o samba carioca, a música paulistana) e tradição alguma, Itamar era um artista em processo de individuação acelerada, recusando-se a assentar seu estilo e sua busca sobre as necessidades do grande público, nutrindo-se entre potenciais poéticos, performáticos e sonoros muito específicos; ao mesmo tempo, criando uma imagem sonora aparentemente incompatível com as exigências mercadológicas dos anos 1980. Essa característica refletia uma posição crítica, não somente em relação à mídia e ao music business, mas a qualquer processo de banalização e uniformização do gosto, contrário aos sedentarismo das probabilidades e das estimativas. Muitas vezes, essa característica se coadunava estranhamente com uma potência autoconsciente que, através de artifícios conceituais, cancionais, teatrais e instrumentais elaborados com rigor e estratégia, buscava inscrever seu nome na história da música brasileira como um pop star afro-brasileiro urbanizado. 

2. TUDO É RASCUNHO!

O artista estático diante do entorno, olha concentrado para a massa de barro. Seu corpo (cérebro, nervos olhos, braços, mãos, dedos) está prestes a lançar-se sobre a matéria inerte, disforme, de onde deverá procurar extrair uma obra de arte.

O exemplo, banal por excelência, parece referir-se a um percurso datado, que suporia um trajeto seguro entre a “realidade espiritual” — a realidade ideal platônica, o modelo abstrato na cabeça do autor — até o encontro, o ajuste dessa realidade à matéria moldável, dócil, passiva. E isso de tal maneira que, do caos, surja uma obra de arte, quiçá uma bela forma. Sob esse esquema, a realização da obra corresponderia à concretização de um projeto marcado pelas contingências do percurso, do modelo original até à obra (a “cópia” do modelo), os reajustes do real e as resistências da matéria, condicionando os resultados até que, um e outro, coincidam em uma forma acabada. O acabamento da obra será dado no mesmo termo em que coincidirem a imaginação modeladora e a sua realização material.

A partir de tal esquema, é possível recolocar algumas conclusões consagradas. Primeiramente, como afirmam Isabelle Stengers e Bruno Latour, explicando "a obra por fazer" de Étienne Soriau, “a todo instante, tanto a obra quanto o artista podem dar errado. A obra está em perigo, tanto quanto o artista — e o mundo mesmo! Sem atividade, sem inquietude, sem erro, não há obra, não há ser”. O que é, então, a obra de arte, se não uma esfinge que submete o artista a um interrogatório, aquilo que Soriau chamava “a esfinge da obra”? E o percurso de construção da obra, não seria marcado também por um grau de "errabilidade" fundamental a todo processo?”

Sorte não haver o que segure
Som…
Senhores e senhores
Mas quem é que me garante
Que mesmo esses microfones
Sempre funcionarão?

É preciso encarar a matéria da canção, consciente dos perigos que ela oferece: perigo de não corresponder às expectativas, de não tocar nas rádios nem nas novelas, de oferecer uma experiência estética banal, perigo de que o microfone não funcione. Autor, obra, mundo: tudo corre perigo. O autor corre o risco de ser preso ou morrer de fome; a obra corre o risco de “dar errado”, e mesmo o Mundo, em louca instabilidade, tende a acabar todos os dias. Mesmo a relação entre intérprete (emissor) e ouvinte (receptor) pode falhar do ponto de vista da assimilação. Emissor, receptor e obra estão imbricados em uma relação de inacabamento existencial, de composição e decomposição incessante, capaz de se reposicionar a cada nova experiência.

E se a experiência se desdobrasse no percurso, — não no projeto? A obra sendo trajeto corresponde à dúvida, ao erro e à luta por extrair algo que justifique a labuta. Adiante, a obra também libera outras linhas experienciais, transformando não somente aquele que a escuta, como também a si mesma. A "errabilidade" do percurso, o seu caráter de busca e rascunho, corresponde mais à trajetória de uma composição agônica do que propriamente ao resultado, aparentemente final, do trabalho. Trata-se de uma ética do rascunho, do experimento, da tentativa:

“Tentei musicar um drama, tentei inventar poemas, tentei música urbana, tentei mais do que imaginas…”. 

A precisão do rascunho corresponde a uma ética da tentativa. “Tudo é rascunho!” — mas encarar o percurso implica em correr o risco, expor-se à "errabilidade" fundamental de todo processo. Criar é rascunhar; não porque a obra é rascunho — a obra de Itamar é, inclusive, bastante precisa. Mas porque “sem atividade, sem inquietude, sem erro, não há obra, não há ser”. Titubear, hesitar, baratinar: palavras se transformam em ferramentas. Um olho no peixe, outro no gato: o ato criativo corresponde a não levar tanto em conta o projeto, mas o trajeto.

A experiência de criador, com toda a sua carga de possibilidades trágicas, almeja a precisão do rascunho — não como esboço, mas como obra aberta —, indicando que precisamos predispor o corpo à experiência que Itamar nos propõe. Em suma, para rascunhar outros mundos a seu lado. 

Apesar de sua morte, a trajetória de Itamar Assumpção se mantém em curso. Não somente pela instabilidade visionária de sua música — foi Itamar quem introduziu uma dicção específica para o rap no Brasil ao compor os versos irônicos de Noite de terror, uma das faixas de seu segundo disco (Às Próprias Custas S/A), como também pela deriva na máxima cantada em uma das grandes canções de seu primeiro disco: “Espero ouvir você dizer que gosta de viver em perigo”. Itamar parece nos reenviar a provocação: O que faz a música da juventude negra contemporânea, se não ostentar o perigo à espreita? Como o rap, o funk, as músicas periféricas — tendências que ainda negociam sua assimilação e legitimação com a mentalidade nacional-folclorista e cancional brasileira — sua antiobra é mais vertigem do que forma e expressão; mais sonho do que circuito ou mercado, máquina que avança em direção a uma visão muito franca do (des)conhecido. Não é melancólica, mas carrega o impulso à libertação, corolário de um país que precisa iniciar o processo de superação da escravidão, que precisa sair do papel. 

Como o Brasil, uma obra por se fazer.

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Publicado originalmente em 12 de agosto de 2019 no Suplemento Pernambuco

segunda-feira, 21 de julho de 2025

HEINZ VON FOERSTER (1911–2002) O PAI DA SEGUNDA CIBERNÉTICA





Heinz von Foerster, figura carismática na comunidade internacional de cientistas identificados com o legado da cibernética, faleceu em 2 de outubro de 2002, em sua casa em Pescadero, Califórnia, cercado por seus entes queridos. Ele tinha 90 anos. Físico particularmente talentoso em formalismos matemáticos, era também um filósofo interessado em esclarecer a epistemologia que emergia do projeto cibernético.


Ascendência Europeia

Nascido em Viena em 1911, sua infância burguesa foi culturalmente rica: seus pais, e especialmente seus avós, recebiam constantemente uma multidão de artistas, pensadores, cientistas e figuras políticas nessa Viena culturalmente vibrante do início do século XX. Assim, no contexto de sua infância, havia essa agitação intelectual, artística e política que certamente contribuiu para aguçar sua extrema curiosidade intelectual, seu interesse constante pelas artes, particularmente pela dança e pela música, e sua extraordinária inteligência. Heinz gostava de dizer que foi essa atmosfera culturalmente diversa que lhe incutiu, desde muito cedo, o desejo de lidar simultaneamente com uma multiplicidade de perspectivas para formar uma visão da realidade. Aqui encontramos a âncora viva de sua rejeição a visões monodisciplinares — artefatos de instituições acadêmicas — e seu impulso para a fundação de uma perspectiva transdisciplinar.

Ainda jovem, o acaso o levou a assistir a uma palestra proferida na Universidade de Viena por um professor chamado Ferdinand Scheminzky. A palestra intitulava-se "É possível gerar vida artificialmente?". Descobriu-se que essa palestra fazia parte de uma série de encontros organizados por filósofos associados ao "Círculo de Viena". Isso o levou a conhecer o pensamento de Rudolf Carnap, Hans Hahn e Ludwig Wittgenstein ainda muito jovem. Esses encontros filosóficos seriam decisivos na formação de seu pensamento: certas observações de Rudolf Carnap — em particular suas reflexões incisivas sobre o significado do sinal "=" (simetria, reflexividade, transitividade) — levaram-no a ler o Tractacus Logico-Philosophicus de Wittgenstein. Ele recebeu sua formação disciplinar inicial em física (mestrado pelo Instituto de Tecnologia de Viena, seguido de doutorado em 1944 pela Universidade de Breslau). Absorvido principalmente por questões filosóficas, lógica e matemática, adquiriu, como físico, uma especialização em engenharia elétrica. Embora um de seus avôs fosse judeu, conseguiu trabalhar em Berlim durante a guerra, em laboratórios envolvidos no desenvolvimento da tecnologia de radar. Retornou a Viena no final da guerra. Durante esse período, também morou na Silésia, pois a empresa onde trabalhava havia sido transferida para lá.

Seu primeiro trabalho científico foi uma monografia sobre memória. Fascinado pela observação de que um sujeito humano tende a esquecer cada vez mais elementos à medida que recua no tempo na memória, buscou formalizar esse tipo de fenômeno com o objetivo de formular uma teoria da memória. Por fim, utilizou os conceitos da mecânica quântica para construir seu modelo. As condições de vida em Viena no Pós-Guerra eram difíceis — a cidade, devastada pelos bombardeios, ainda estava ocupada pelas forças aliadas — então ele decidiu emigrar com sua família para os Estados Unidos da América em 1949. Ele trouxe consigo algumas cópias de seu livro intitulado The Memory — a Quantum Mechanical Treatise (título em inglês de seu livro escrito em alemão), que ele pensou que poderia servir como um "cartão de visita".


As Conferências Macy sobre Cibernética

Um exemplar de seu livro sobre memória chegou às mãos de Warren McCulloch, diretor do Departamento de Neuropsiquiatria da Universidade de Illinois em Chicago, e este último manifestou interesse em conhecê-lo. Embora Heinz von Foerster ainda não fosse fluente em inglês, os dois homens se entenderam rapidamente ao se depararem com equações diferenciais e outras formulações matemáticas! Esse contato inicial levou McCulloch, então presidente desta reunião, a convidar von Foerster para participar do sexto encontro científico financiado pela Fundação Josiah Macy Jr., organizado em Nova York sob o título: “Mecanismos Circulares Causais e de Feedback em Sistemas Biológicos e Sociais.”

A série de dez Conferências Macy (1946-1953) seria posteriormente reconhecida como o berço da cibernética. Foi Heinz von Foerster — nomeado, ao final desta sexta reunião, "secretário" responsável por preparar os anais e, por fim, garantir a publicação dos Anais — quem propôs o termo "cibernética" como título dessas reuniões. Heinz relata que Norbert Wiener, o criador desse termo e participante dessas reuniões (até a sétima, inclusive), ficou comovido e encantado com ele.

As Conferências Macy sobre Cibernética foram um ponto de encontro privilegiado, onde vários especialistas das ciências naturais (biofísica, matemática, lógica, neurofisiologia, engenharia elétrica) conviveram com alguns pesquisadores das ciências sociais, como os antropólogos Gregory Bateson e Margaret Mead. Este projeto interdisciplinar consiste em refletir sobre os padrões comuns que emergem da comparação entre mecanismos de feedback presentes em vários organismos biológicos, incluindo humanos, a fim de aproximá-los de mecanismos específicos de certos dispositivos técnicos, com base em uma teoria da informação emergente (Claude Shannon está presente) e nos novos recursos de uma ciência da computação emergente (John von Neumann é uma das personalidades presentes). Vários observadores consideram que essas conferências deram origem a algumas das ideias-chave que serão posteriormente discutidas nas áreas de ciência da computação e inteligência artificial (IA), estudo de redes neurais, teorias de sistemas e complexidade, e na ciência cognitiva.


O Laboratório de Computação Biológica (1958-1975)

Enquanto lecionava desde sua chegada aos Estados Unidos no Departamento de Engenharia Elétrica da Universidade de Illinois (Urbana), que dirigia, fundou o Laboratório de Computação Biológica (BCL) na mesma universidade em 1958. O foco científico do laboratório demonstrava um escopo interdisciplinar e internacional. Reunia pesquisadores de diversas áreas científicas (biofísica, biologia matemática, neurofisiologia da cognição, ciência da computação e tecnologia, ciência cognitiva e epistemologia). Beneficiando-se de importantes bolsas, notadamente do Escritório de Pesquisa Naval, parte do trabalho do laboratório levou a avanços na computação paralela. Uma das áreas envolveu a construção de um novo tipo de computador equipado com sensores fotoelétricos para reconhecimento de múltiplos objetos. Outras pesquisas se concentraram em hematologia médica; outras ainda, em demografia.

Heinz von Foerster era um pensador que gostava de provocar a reflexão com base em ideias poderosas de cunho paradoxal, ou às vezes aparentemente tautológico. Uma delas foi o famoso princípio da "ordem a partir do ruído", formulado já em 1960 e que foi adotado notavelmente por Henri Atlan em sua teoria da auto-organização. A tese consiste em argumentar que o ruído introduzido em sistemas auto-organizados gera, em última análise, menos entropia do que uma reorganização do sistema orientada para novos fins. O renascimento contemporâneo dessa ideia nas ciências cognitivas aparece na forma de "ressonâncias estocásticas" (Varela). Von Foerster foi um dos principais proponentes dos problemas da auto-organização, tema que explorou primeiro com Gordon Pask, seu companheiro de longa data, depois com Humberto Maturana (que conheceu em 1962) e, finalmente, com Francisco Varela (que conheceu durante um semi-sabático no laboratório de Maturana em Santiago, Chile, em 1973). Na França, Edgar Morin foi um dos primeiros pensadores a levar a sério as consequências epistemológicas dessas ideias de "ordem através do ruído" e auto-organização. Morin também convidou Heinz von Foerster para participar da conferência sobre a “Unidade do Homem: Invariantes Biológicos e Universais Culturais”, realizada na Abadia de Royaumont em setembro de 1972.

Heinz von Foerster decidiu fechar o BCL em 1975. Não apenas por causa de sua aposentadoria, mas também porque observou que as condições de financiamento da pesquisa nos Estados Unidos haviam mudado significativamente. Esse período marcou o início de um declínio institucional por parte de grandes fundações, bem como de agências governamentais e militares, no campo da pesquisa básica abrangido pela BCL. Esse laboratório buscou caminhos de pesquisa e desenvolvimento em ciência da computação que não se alinhavam às tendências dominantes em Inteligência Artificial (IA), um setor que também era fortemente subsidiado por essas agências federais (considere o laboratório de Marvin Minsky no MIT). Isso ilustrou perfeitamente a bifurcação que havia começado bastante cedo entre os cibernéticos, entre a corrente da qual emergiram os desenvolvimentos deslumbrantes da IA (um setor que foi amplamente subsidiado, apesar do fato de esses pesquisadores, em última análise, não terem cumprido suas promessas ambiciosas de construir "inteligência artificial") e a corrente de pesquisadores mais sintonizados com o projeto inicial da cibernética — incluindo os da BCL — que rejeitavam as definições ingênuas de cognição e inteligência propostas pelas principais figuras da IA. Somente mais tarde, durante a década de 1980, as perspectivas conexionistas na ciência cognitiva (e um novo estilo de pensar sobre robótica, inspirado no espírito da BCL) convergiriam com os interesses dos herdeiros de ambas as comunidades de cientistas.


Cibernética de Segunda Ordem

As palestras e os escritos de von Foerster que provavelmente serão mais lembrados são de natureza epistemológica. É aí que reside a originalidade do projeto filosófico de Heinz von Foerster. Ele propõe uma nova leitura epistemológica do projeto cibernético. Enquanto até então os pesquisadores se contentavam com uma cibernética de sistemas observados (cibernética de primeira ordem), von Foerster os convida a praticar, em vez disso, uma cibernética de sistemas observacionais (cibernética de segunda ordem), ou seja, uma abordagem que não pode mais excluir a consideração plena do observador incluído no processo de observação. A primeira cibernética — ou mais precisamente, a "primeira leitura" do projeto cibernético, uma vez que as ideias-chave da "segunda cibernética" já estão parcialmente incluídas em certas discussões nas conferências Macy, para aqueles que sabem reconhecê-las — favorece noções como feedback, que apenas alimentam as teorias de controle agora aplicadas ao comportamento dos organismos vivos. Para von Foerster, essa ideia de feedback orientada para a teoria do controle não é nova; já era considerada em estudos de engenharia elétrica. O que é verdadeiramente novo e fascinante no projeto da cibernética é a consideração das consequências lógicas e epistemológicas dos comportamentos dessa categoria de sistemas, que podem agir sobre si mesmos. Esse tipo de funcionamento força o observador a formular paradoxos e a recorrer a conceitos autorreferenciais, o que implica um verdadeiro salto epistemológico em relação à lógica clássica. O ciberneticista de segunda ordem não pode simplesmente recorrer à teoria dos tipos lógicos de Russell para descrever os comportamentos paradoxais de sistemas autorreferenciais: "Eu pensava na teoria dos tipos como uma desculpa miserável para alguém que não quer assumir a responsabilidade de dizer 'eu estou dizendo isso', porque não se espera que se diga 'eu' com a teoria dos tipos." (...) "A cibernética, para mim, é o ponto em que se pode superar a teoria dos tipos de Russell, adotando uma abordagem adequada às noções de paradoxo, autorreferência, etc., algo que transfere toda a noção de ontologia — como as coisas são — para uma ontogênese — como as coisas se tornam." (Entrevista de 1995). A cibernética de segunda ordem consiste em levar a sério a dinâmica do funcionamento paradoxal, acrescentou.

Nas palavras de André Béjin, o projeto epistemológico de von Foerster consiste em "definir as condições de possibilidade de uma teoria da descrição e de uma teoria da cognição e definir seus fundamentos". Ecoando a ambição de Maturana, o objetivo de von Foerster é "restabelecer a margem de autodeterminação de qualquer sistema cognitivo. Tal sistema não seria o que o ambiente faz dele, seria o que ele faz do que o ambiente faz dele". Uma das teses centrais de von Foerster é sustentar que objetos e eventos no ambiente não têm existência intrínseca: eles não existem independentemente do observador que os percebe e que cria representações deles. Este é, a fortiori, o caso dos próprios gestos do observador ligados ao processo de observação: "toda descrição é a descrição de um observador". Com este aforismo aparentemente tautológico, von Foerster oferece uma crítica radical à ideia de objetividade na ciência. Ele defende a reinserção sistemática do observador na observação. O observador está incluído na observação. Em virtude de sua ausência impossível do local e do processo de observação, o observador humano afeta as condições de observação tanto quanto deixa sua marca, por meio do uso da linguagem, na formulação de suas descrições. Von Foerster insiste que os cientistas levem em consideração operações ou descrições autorreferenciais. Ele indica que o uso de "conceitos de segunda ordem" (isto é, aqueles construídos com o prefixo "self", como auto-organização, autoprodução, autorreplicação, autorregulação) é essencial na produção de categorias científicas, particularmente se os cientistas buscam questionar os pressupostos subjacentes da ciência contemporânea, sistemas invisíveis de crenças frequentemente enredados na própria construção dos problemas que a ciência busca resolver. O surgimento dessa segunda cibernética (cibernética da cibernética) estará intimamente associado às diversas perspectivas construtivistas que emergiram na filosofia e nas ciências sociais e humanas. Em outras palavras, desde as décadas de 1960 e 1970, o núcleo ainda ativo de pesquisadores que se identificam com a herança cibernética tem testemunhado o surgimento de uma nova corrente de epistemologia construtivista, cujos três pioneiros foram Heinz von Foerster, Gordon Pask e Humberto Maturana. Esse trabalho é continuado hoje por Ernst von Glasersfeld, Ranulph Glanville, Klaus Krippendorff, Paul Pangaro e Stuart Umpleby.

***

Heinz von Foerster era um homem generoso e charmoso, cheio de humor, impassível, com um olhar aguçado, uma resposta inteligente e sempre pertinente, atento às perguntas que seus alunos e colegas lhe faziam. Frequentemente, respondia a uma pergunta com outra, o que imediatamente desencadeava um diálogo com seu interlocutor. Tive o privilégio de conhecê-lo pessoalmente em outubro de 1974, em uma conferência da Sociedade Americana de Cibernética, uma associação profissional que ele ajudou a fundar (notadamente para homenagear e dar continuidade ao trabalho de Warren McCulloch). Por pura sorte, encontrei-me sentado ao seu lado no banquete. Quando lhe disse que era aluno de Edgar Morin, seus olhos brilharam e ele se lembrou dos bons momentos que passara com Morin. Naquela noite, ele proferiu o "discurso presidencial" que havia intitulado "Cibernética da Cibernética". Ele também havia levado para o local da conferência alguns exemplares da coleção homônima, uma publicação artesanal que ele havia produzido com seus alunos como parte de um de seus cursos na Universidade de Illinois. Desde as primeiras palavras de sua palestra, ele imediatamente capturou a atenção da plateia, que acabara de saborear um farto jantar. Começou apresentando o que chamou de "teorema número um de Humberto Maturana": "Tudo o que é dito é dito por um observador"; acrescentou, com um toque de humor, "modestamente", disse, o que chamou de "corolário número um de Heinz von Foerster": "Tudo o que é dito é dito a um observador". O restante de sua palestra consistiu em mostrar que essas proposições aparentemente tautológicas continham algumas intuições epistemológicas dignas de serem levadas a sério. Sua plateia ficou cativada: ele conseguiu transmitir seu prazer em chegar ao fundo das coisas, mantendo sempre um sorriso que demonstrava estar em plena posse de suas faculdades.

Serge Proulx — Université du Québec à Montréal


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ATLAN, H., Entre o Cristal e a Fumaça, Paris, Seuil, 1979.

BÉJIN, A., “Teoria da Cognição e Epistemologia da Observação: Apresentação”, em A Unidade do Homem, Paris, Seuil, 1974.

Centro Royaumont para uma Ciência do Homem, A Unidade do Homem, editado por E. MORIN e M. PIATTELLI-PALMARINI, Paris, Seuil, 1974.

DUPUY, J.-P., As Origens das Ciências Cognitivas, Paris, La Découverte, 1994.

HEIMS, S., J., The Cybernetics Group, Cambridge, MIT Press, 1991.

MATURANA, H., “Estratégias Cognitivas”, em A Unidade do Homem, op. cit., 1974.

MORIN, E., La Méthode, 1. La nature de la nature, Paris, Seuil, 1977.

VARELA, F., “Heinz von Foerster, o cientista, o homem”, Stanford Humanities Review, 4 (2), 1995.

VON FOERSTER, H. ed., Cybernetics of Cybernetics, coleção de textos, Urbana, Illinois, Biological Computer Laboratory, 1974.

VON FOERSTER, H., “Notas para uma epistemologia de objetos vivos”, em The Unity of Man, op. cit., 1974.

VON FOERSTER, H., “Cybernetics of Cybernetics” em K. KRIPPENDORF, ed., Communication and Control in Society, Nova York, Gordon & Breach Science Publications, 1979.

VON FOERSTER, H., Observing Systems (com uma introdução de F. Varela), Seaside, CA, Intersystems Publications, 1981.

VON FOERSTER, H., entrevista com J.-P. DUPUY, P. LIVET, P. LÉVY e I. STENGERS, Genealogias da Auto-Organização, Cahiers du CREA n.º 8, École Polytechnique, Paris, 1985.

VON FOERSTER, H., entrevista com S. FRANCHI, G. GÜZELDERE e E. MINCH, Stanford Humanities Review, 4 (2), 1995.

VON FOERSTER, H., "Ética e Cibernética de Segunda Ordem" em WATZLAWICK, P. e NARDONE, G., orgs., Estratégia para a Terapia Breve, Paris, Seuil, 2000.

VON FOERSTER, H., Compreendendo a Compreensão. Ensaios sobre Cibernética e Cognição, Nova York, Springer, 2003.

* Uma autobiografia detalhada de Heinz von Foerster será publicada em inglês em 2003. Esta é uma tradução do livro: Monica Broecker & Heinz von Foerster, Part of the World, Carl-Auer-Systeme Verlag, Heidelberg, 2002.

terça-feira, 8 de julho de 2025

“QUE CINEMA É ESSE?”: ATUALIZAÇÕES BRASILEIRAS

 









01.

A pergunta “que cinema é esse?” não pede respostas ou definições, mas novas perguntas em torno da própria essência do que significa fazer e assistir cinema – ainda que aqui eu deseje, antes de mais nada, indicar o quanto ganhamos ao desfazê-la e desmanchá-la em outras possibilidades cinematográficas. Não me alongarei nesse tema, mas penso que o cinema materializa a mecânica e a metafísica da percepção, da cognição e da imaginação perante uma espécie de duplo, nosso próprio aparelho perceptivo, cognitivo e imaginativo – e, portanto, não se endereça somente “aos olhos ou aos ouvidos de maneira regulável”, como afirma Bresson em seu Notas sobre o cinematógrafo, mas à zona ambígua e cinzenta da própria experiência, produtora de imagens e movimento. Seria possível conciliar, no âmago da matéria cinematográfica, percepção e imaginação oriundas de outras visões e culturas não europeias? Países e populações que possuem diferentes práticas e formulações em torno da produção de imagem e da própria noção de imagem? A resposta não seria apenas negativa, como também dispersa: a própria imagem do sonho e da realidade subjacente à produção do cinema brasileiro, por exemplo, da chamada Retomada e do cinema Maxakali do século XXI difere de forma radicalmente irreconciliável.


02. 

O cinema, contudo, não reproduz um duplo formal a partir de um conjunto perceptivo-cognitivo-imaginativo que é preenchido de alguma maneira por materiais captados, mas inventa, como um acréscimo de realidade, formas singulares de manipulação do tempo e do espaço. E o faz através da composição de planos, cortes, sons e texturas. Procedimentos que geralmente resultam em um “uso criativo da realidade”, como afirma Maya Deren em seus escritos, mas que também implicam um uso técnico particular das máquinas de captar e cortar, que podem variar imensamente de caso a caso, segundo concepções particulares. Pensando assim, a ideia aparentemente absoluta de um Cinema com c maiúsculo desponta sempre sob a forma de uma gestão, sempre oscilando entre uma ética e uma política da imagem. Não que uma outra ética não seja acessível – há quem ame, que consegue amar, Ford e Sueli Maxakali, Mizoguchi e Ana Pi, como eu mesmo. Ao mesmo tempo, porém, para o bem e para o mal, as variações não hegemônicas causam nítido desconforto nos circuitos sedimentados, na crítica, cinefilia, meio acadêmico e festivais: excesso de condescendência ou incompreensão cercam o cinema realizado por indivíduos pertencentes aos povos originários ou por grupos ou indivíduos historicamente alijados do processo estético, econômico e político dos cinemas hegemônicos.


03.

Por outro lado, parece que estamos justamente situados num plano histórico em que a imagem robotizada do cinema comercial, da televisão e das plataformas readquire e amplia seus privilégios. No Brasil, a “retomada da retomada” situa novamente em nosso horizonte a lógica industrial do “cinema é pra quem pode”. Se entre 2003 e 2015 observávamos o movimento das placas tectônicas do privilégio de classe e de raça no cinema brasileiro, hoje o movimento é reduzido, seja por asfixia, seja por apropriação. A escassez de recursos e editais específicos para outros cinemas marca o período pós-golpe e avança sobre o período de reconstrução democrática, reconstituindo a força da presença de uma elite cinematográfica em detrimento das transformações que ocorreram no período do “cinema fome zero” (termo criado por Miguel Jost). O estreitamento da viabilidade acompanha de perto o oportunismo de classe e, de forma muitas vezes imperceptível, a redução da imaginação. Desde o golpe, alguns filmes sinalizam o sintoma de um retrocesso. A armadilha do “cinema negro” enquanto representação uniforme constitui apenas uma parte de um diagrama cuja perversidade se mede tanto pelo número de views, quanto pela manutenção dos protocolos comerciais e institucionais por “diversity”. Sinalizar “eu me importo” – chantagem emocional – como forma de contratação. A maioria dos curadores e financiadores, dos festivais e distribuidoras, já sacaram a tendência que pode favorecer os signos da agenda racial, sem, contudo, contrair grandes compromissos: a culpa branca premiada, a experimentação negra sufocada. Mantém-se o apelo à sensibilidade racial através de uma imaginação limitada pela estreiteza da forma. Estilo, isto é, técnica e imaginação, como dado necessariamente secundário. O que se conta em uma proliferação descontrolada do cinema da escassez imaginativa são as “nossas histórias”, a privatização da imaginação. Entendo os esforços políticos e econômicos protagonizados por players negras e negros em torno da conexão entre temas identitários e a profissionalização no cinema. Porém, se essas negociações implicarem a ausência de mudança estrutural e redução drástica da experimentação estética – portadora de outras possibilidades da imagem – temos aí um problema.


04.

As estratégias são cada vez mais evidentes e sinalizam a manutenção da plantation simbólica de que nos fala Juliano Gomes. A monocultura aponta para um conjunto de conciliações forçadas que cabem perfeitamente na lógica das plataformas. Como assinala o recente artigo de Will Tavlin sobre a ascensão da Netflix e seu cinema de plataforma: “ela não apenas sobrevive quando ninguém está assistindo: é justamente aí que ela prospera”. Então é possível repetir as mesmas histórias e os mesmos modos de contá-la ad infinitum. Algumas tendências evidentes: a expiação pública como autoetnografia voluntária ou involuntária; o registro e “resgate” da “cultura popular” como memória de classe; as boas intenções do inferno como o conjunto de esforços coletivos que confluem para consolidar o signo inequívoco de uma atitude atravessada pela correção moral e conformidade com agendas corporativas. Esses signos servirão de salvo conduto para transitar, com mãos grosseiras, por temas e personagens relacionados com as questões libertárias no Brasil. A captura, contudo, é mais do que um direito, mas uma profissão de fé: a elite expia em praça pública, logo a elite é purificada. O peso do passado é apaziguado pela confissão dos aprendizados. 


05. 

...cachê é poder. O contratado legitima o contratante. O contratante remunera o contratado. Pior do que ser explorado pelo capitalismo: justamente não sê-lo. Cinema como tronco e chicote: quem está lá? O senhor ou o escravo?


06.

A culpa branca encena o drama indígena, pacifica a raiva negra, mas o signo é o de uma expiação pública imediatamente reificada para fins de adoração e comercialização. Há uma ambiguidade insuportável na imagem da expiação e do aprendizado das elites que, involuntariamente, nos revela a confiança elevada em toda sua estreiteza. Em algum momento teremos que falar abertamente sobre o abismo estético e intelectual que separa as imagens das elites cinematográficas e as imagens dos novos cinemas. Não será uma conversa confortável. O cinema da Retomada e o da "retomada da retomada" não possui densidade, camadas, exterioridade. O cinema da elite carioca e paulistana é vazio porque, por mais que se esforcem, suas visões de mundo são inadvertidamente despovoadas – e por isso adequadas aos grandes meios de comunicação, às premiações, a Hollywood e todo o sistema do cinema hegemônico. O mesmo não se pode dizer das múltiplas expressões do cinema produzido pelos Xavantes, Kaiowás, Kuikuros, Maxakalis, do grande cinema de Recife e de Contagem, do cinema operário de Lincoln Péricles e Adirley Queirós, do cinema do Recôncavo de Glenda Nicácio e Ary Rosa, do cinema de gira de Yuri Costa, o cinema de Getúlio Ribeiro, Yasmin Thainá, Grace Passô, Higor Gomes, Amanda Devulsky, Natália Reis, Déo Cardoso, Vinícius Romero, dos cariocas da MBVideo, o cinema do Nordeste, do Norte e do Centro-Oeste, entre tantas outras possibilidades decorrentes de um período de maior distribuição de renda que propiciou a reinvenção do cinema brasileiro, que criou uma nova ecologia de imagens, outros modos de ver, planificar, montar, sonorizar. Estamos falando de uma pletora de novos cinemas que demonstram um olhar mais complexo e esteticamente aventureiro (cinema é aventura) do que o cinema da elite cultivada, viajada, endinheirada. Matutar essa contradição.


07.

O cinema de Sueli Maxakali, por exemplo, usa o plano estático com uma densidade especificamente atrelada à temporalidade Maxakali, justapondo registros do tempo e da imaginação, produzindo algo entre a dilatação e a concentração do tempo como meio para exprimir uma epifania sensorial. Já o cinema coletivo dos Guarani-Kaiowá opera a câmera subjetiva e a voz over de forma não a fazer uma explicar a outra, mas entranhá-las, implicá-las entre si de tal forma que, como em alguns poucos filmes de Apichatpong Weerasethakul (particularmente Cemitério do Esplendor, na cena em que os personagens passeiam por um palácio imaginário), o que não é visto participa ativamente do que é filmado e mostrado – convém mencionar o trabalho de André Brasil e Bernard Belisário acerca dos usos criativos do antecampo e do extracampo em alguns filmes dos “cinemas originários”. Entendo que os dois casos são marcados por uma lógica de apropriação reversa, que transfigura a gramática e a sintaxe cinematográfica ocidental e cria novas formas de ver e sentir: outra sensibilidade. A inconstância da alma selvagem também modula conforme os termos de uma alegre traição: vingança sob a forma de um sequestro provisório da técnica e da linguagem. 


08. 

Se existem ecos e ressonâncias de uma concepção específica do Modernismo que não cessa de se imiscuir no imaginário do tempo brasileiro, observa-se que, a despeito do massacre, o Brasil permanece atravessado pela presença daqueles cuja história a história não conta. A história geralmente é definida como um texto que implica a construção de um método de leitura e interpretação. Uma epistemologia da história revela questões candentes, questões embrazadas que, como na antropologia contemporânea, parecem acorrer a problemas filosóficos como identidade, alteridade e ontologia. Nesse contexto, geralmente se problematiza o método; mas o método nunca é neutro, porque sua maquinaria conceitual obedece a outras concepções que não remetem necessariamente a questões metodológicas: o que os filmes dos povos Maxakali e Guarani-Kaiowá nos mostram em toda sua complexidade são imagens variadas do tempo e imagens do movimento, imagens do massacre e da resistência de pontos de vistas singulares. Se a “transfiguração étnica” preconizada por Darcy Ribeiro prevê a possibilidade de uma história transformacional, mesmo que a contragosto do intérprete, e essa história é marcada por insubmissão e violência, não parece de todo inadequado observar essa outra vanguarda do olhar, essa visão sintética de um mundo que não se explica, pois nos diz respeito apenas enquanto se coloca o termo cinema. O cinema, novamente, opera como mediador: Darcy e os missionários eram mediadores, mas que, seja para integrá-los, seja para denunciar sua integração forçada, recorriam ao único ponto de vista que lhes era possível acessar: o do protagonismo histórico. Quando o cinema dos povos originários começa a ser produzido, vislumbramos a transfiguração de uma autoridade: a autoridade discursiva eurocêntrica.


09.

O Brasil respira camadas de contradição no que tange à forma de representação de seus conflitos de classe e a pluralidade de seus povos, talhados à base dos desmandos de uma elite antipática, contrastante com caldeamentos raciais e culturais seculares. O cinema é território privilegiado para acessarmos os vaivéns e continuidades dessas dinâmicas. A gradação intermediária entre o blockbuster e o filme caseiro foi apagada e esses dois modos de se fazer e pensar cinema não morrerão abraçados. Não há sequer um sistema trabalhista concebido e estruturado especificamente para estruturar e conferir dignidade à mão de obra da cultura no brasil, e isso impacta todos os demais estágios e desdobramentos dos processos culturais. As imagens do povo produzidas pela elite política, econômica e cinematográfica são premiadas, deificadas, celebradas pelo aparato cultural, midiático e acadêmico, ao passo que as imagens do povo produzidas a partir de si mesmo foram paulatinamente política e economicamente sufocadas, inviabilizadas, contratadas ou relegadas aos rincões do "experimental", do "acadêmico", de algo que pode ser tudo, menos propriamente "popular". Isso porque a elite olha para o povo de forma simplória e aqui se encontra a maior das perversidades: o povo e, particularmente, o mundo das redes sociais se reconhece mais no retrato de si mesmo produzido pela elite do que pela miríade de imagens às quais me referi acima. Lutar, portanto, por um cinema amazônico, à altura de sua diversidade autêntica, contra toda monocultura política, simbólica, estética...

10

Se o cinema contra-hegemônico saberá se desvencilhar das armadilhas que o cercam, é um assunto hoje que deve circunscrever nossas mais caras preocupações – e que de certa maneira Tiradentes carrega como marca inexpugnável de sua singularidade. Porém, há uma pergunta urgente: haverá meios materiais para a propagação da imaginação negra em "expansão infinita", ou, em um futuro muito próximo, seremos convertidos em meros peões, cartas marcadas no tabuleiro da geopolítica moral imposta pelas plataformas de streaming, players e financiadores?

segunda-feira, 12 de maio de 2025

FEITIÇO SEM FAROFA — SOBRE PANTERA NEGRA, DE RYAN COOGLER (2018)




De que “negritude” se fala em Pantera Negra?

O ponto de vista de Pantera Negra é o do modelo diaspórico que, segundo consenso geral, melhor se adaptou ao capitalismo mundial e, malgrado as tentativas incansáveis de dar consistência ao termo, à Modernidade. Uma tipologia específica que, com vestimentas características, música onipresente, modelos de resistência política e, até mesmo, hábitos alimentares, não cessa de servir como referência a outras populações diaspóricas do mundo. Pode-se afirmar que o pano de fundo do filme relaciona-se a correntes de pensamento ligadas a uma perspectiva exclusivamente anglo-saxônica do problema. Em plena ressaca da América pós-Obama, a reboque do cortejo de deserdados pela eleição de Trump, o filme se encaixa no conjunto de tendências que eclodem a partir do movimento Black Lives Matter e de todo o arco da luta contra a violência policial, por direitos e representatividade. É, enfim, ao negro norte-americano, assim como a todos as populações ao redor do globo que conservam este modelo como referência, que este filme é endereçado.

É lícito perguntar se este modelo não seria estrategicamente mais interessante como exemplo do que a via de mão única do herói macho, branco e adulto que permeia a cultura dos super-heróis. Eu concordo, mas insisto: a percepção de uma assimetria entre as diferentes formações das populações negras diaspóricas na América pode fazer com que nós, brasileiros, assistamos o filme com outros olhos. Livres de uma visão da diáspora limitada a certas culturas e concentrações populacionais em detrimento de outras, podemos nos tornar solidários à luta do negro na América do Norte sem nos confundirmos com ele. Pois se é verdade que nas Américas se conserva em diversos segmentos um traço majoritário de autoconsciência da questão racial, não seria menos verdade que algumas tendências minoritárias persistam em diversos contextos, apesar da supremacia imposta pela perspectiva afro-americana.

Não sou contrário às misturas e até mesmo as mal faladas “apropriações”. Tomo como exemplo o próprio rap brasileiro, que se apropriou dos conceitos do rap norte-americano e se mostrou capaz de constituir-se como linguagem própria e potente, quase independente da referência originária. Meu problema não é manter a identidade do “nacional”, mas, diante da abundância de possibilidades, manter um certo grau de indeterminação sobre os sentidos do “ser negro”, e, ainda mais, do “ser negro” diaspórico.

No jogo de representações proposto por Pantera Negra, a perspectiva majoritária massacra a minoritária: não há roda de batuque, pois toda música é ritual, seja de guerra ou religiosa; não há Exu, nem Elegbara (“o dono da força” na ontologia banta, presente na umbanda e na quimbanda), muito menos elementos derivados do complexo cultural jeje-nagô; os griots característicos do Mali e de Gana foram dispensados, não há nenhuma referência a quaisquer conhecimentos transmitidos por comunicação oral, a oralidade também foi interditada; assim como não há Babalaôs (“o pai do segredo”), os leitores do oráculo de Ifá foram substituídos por um sacerdote (Zuri, personagem de Forest Whitaker) que não sorri, semblante duro característico das sociedades secretas cristãs; não se percebe os traços fundamentais e as possíveis influências dos bantos na América, a partir de contribuições decisivas dos Bacongos, dos Ambundos e Ovimbundos, entre outros grupos derivados dos “bantos do centro” (na expressão de Nei Lopes em seu livro Bantos, Malês e Identidade Negra); não há a diversidade religiosa, apenas uma religiosidade unívoca e meramente alusiva, gradualmente sintetizada a uma representação abstrata da “ciência”, representada como uma força cega e brutal que domina todo o espaço-tempo do filme; não há partilha do alimento ou ritual de comunhão, todo rito de passagem é mediado pela batalha violenta e pela lógica do vencedor. Em suma, todas as atividades do filme giram em torno do binômio segurança (proteção do Estado) e conservação da pureza territorial e cultural de Wakanda. O valor da ancestralidade é medido segundo uma temporalidade rigorosamente calculada dentro da causalidade ocidental, interditando qualquer possibilidade de recuperarmos outras temporalidades afrodescendentes — como, por exemplo, aquela que nos transmite o ditado Iorubá: “Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que jogou hoje”. A própria noção de “Afrofuturismo” está comprometida pela mitificação controversa de uma África unificada, e por uma concepção corporativa e progressista da técnica. Na representação da negritude em Pantera Negra, não há espaço para a bantuidade, nem para as concentrações populacionais antilhanas e latinas. A rigor, Wakanda “tem um feitiço sem farofa”…

Diante da supressão de noções e representações mais complexas da negritude diaspórica, surpreende, então, o breve escrito de Achille Mbembe acerca do filme: “Para quem sabe ler entre as imagens, quem sabe como ouvir ritmos e caminhar com o pulso da história, o filho está lá, o manifesto, atrás de uma ou outra sequência, pairam mil sombras e mil correntes de pensamento — de Marcus Garvey a Cheikh Anta Diop, da negritude ao Afrocentrismo, do Afropolitanismo ao Afrofuturismo. Este filme, sem dúvida o primeiro de seu tipo, é antes de tudo uma façanha intelectual, que transforma em imagem e em espetáculo a grandes ideias e correntes de pensamento que acompanham nossos esforços para “sair da grande noite”.”

Embora este artigo não se destine a fazer a crítica ao opúsculo escrito por Mbembe (de quem admiro o arrojado Crítica da Razão Negra), o trecho citado repete a estratégia de Pantera Negra, revestindo de autoridade a limitação de seu recorte – uma construção por redução dos efeitos rizomáticos da diáspora. Mesmo apresentados sob a forma sedutora, nas palavras de Mbembe, de uma nova “humanidade negra”, este amálgama de “mil correntes de pensamento” não manqueja somente por interditar aspectos minoritários das expressões diaspóricas (aspectos que poderiam, por exemplo, desenraizá-las dos fundamentos e aspirações liberais presentes no Afrofuturismo e no Afropolitanismo), mas também por exaltar o exemplo das concentrações populacionais que se mantiveram em posição subalterna em relação à religião e a política do poder local. Esta faceta fica evidente quando o próprio Mbembe escreve, em 2015, sobre o Afropolitanismo: “Contudo, o centro por excelência do afropolitanismo é, nos dias de hoje, Johanesburgo, na África do Sul. Nessa metrópole forjada no ferro de uma história brutal uma figura inédita da modernidade africana está se desenvolvendo. Trata-se de uma modernidade que tem pouco a ver com o que se conhecia até agora. Ela se nutre na fonte de múltiplas heranças raciais, de uma economia vibrante, de uma democracia liberal, de uma cultura do consumo que participa diretamente dos fluxos da globalização. Aqui está se criando uma ética da tolerância suscetível de reanimar a criatividade estética e cultural africana do mesmo modo que em outra época o Harlem ou Nova Orleans o fizeram nos Estados Unidos.” (Grifo meu)

É necessário reconhecer que, desta operação, as populações diaspóricas extraíram forças para sustentar algum grau de construção comunitária, elemento importante nas formas de organização que asseguraram a sobrevivência negra nas Américas. Há, porém, que se reivindicar aqui uma gradação sutil entre suas diversas modulações, identificando aquelas que carregaram, ainda que de forma bastante modificada, substratos fragmentários de símbolos, valores e práticas não-cristianizadas e não-ocidentalizadas.


Tradição e Modernidade

Nota-se, por exemplo, que Pantera Negra opera os sentidos da Tradição e da Modernidade sob uma estrutura conceitual severamente posicionada nos termos de uma polaridade. A vastidão da diáspora é substituída por uma visão unívoca, e aqui começa boa parte dos equívocos estratégicos do filme, pois, como afirma Appiah em Na Casa de Meu Pai: A Africa na Filosofia da Cultura, “nenhum de nós compreenderá a Modernidade enquanto não compreendermos uns aos outros”. Estamos, portanto, adentrando um território no qual a cristalização do binômio tradição-modernidade e de suas respectivas caricaturas, já não basta para edificarmos uma compreensão adequada do problema. Tampouco a aparente solução que o filme apresenta para essa questão, qual seja, a busca por reconciliações no plano de uma religiosidade esclarecida, tal como apregoou o Positivismo Cristão na virada do século passado.

Appiah observa que as práticas efetivas das religiões das ditas sociedades tradicionais introduzem nuances que desestabilizam a força lógica estável das definições: “Se a modernização é concebida, em parte, como a aceitação da ciência, temos que resolver se achamos que as provas nos obrigam a abandonar a ontologia invisível”, pontua, acrescentando que em diversos registros das religiões na África, as teorias científicas não tem força suficiente para substituir a influência das religiões tradicionais. Partindo do modelo de caracterização da reflexão crítica sobre a tradição descrita por Karl Popper, Appiah destaca similitudes entre a atitude do cientista e a do babalaô (adivinho e curandeiro iorubá), pois ambos apreciam e interpretam a tradição de modo a alterá-la conforme os resultados e consequências efetivas provocadas pelo ritual. Na ciência moderna, como na religião africana tradicional, opera-se com os critérios de explicação, previsão e controle. Para Appiah, os etnólogos confundiram os pressupostos das religiões de matriz cristã com o que de fato parece orientar os rituais religiosos tradicionais africanos: não somente os manejos ritualístico de elementos simbólicos, mas a aplicação prática dos elementos materiais no andamento do processo — a materialidade, às vezes orgânica e sangrenta, daquilo que é oferecido às entidades. Todos que professam as religiões afro-brasileiras sabem, em termos práticos, o quanto as entidades, assim como a ciência moderna, “preferem” a matéria. Os praticantes nutrem uma forte expectativa no poder do ritual e das entidades invocadas, de modo a refleti-la não apenas do ponto de vista de uma obediência irracional, mas como uma atitude tomada em vistas da resolução de um problema prático. A oferenda ritual chamada Ebó é oferecida como uma tentativa respeitosa de comunicação com as entidades, mas que persiste, sobretudo, porque parece eficaz aos praticantes. Através da comparação entre os sistemas de crença, de produção material efetiva, prática e simbólica, Appiah, seguindo por esta chave de interpretação, aproxima a religião africana tradicional não da crença religiosa cristã ocidental (“simbólica”), mas da teoria científica ocidental moderna (“material”). Isto é, há espaço em muitos desses rituais ditos “tradicionais” para uma correção “crítica”, tal como se apregoa em relação ao “espírito científico”. Por outro lado, é possível observarmos na ciência moderna e, particularmente, na ciência contemporânea, a reprodução mimética e computadorizada dos modelos científicos correntes. Os aspectos crítico-inventivos da tradição (pois é preciso usar a imaginação durante os processos) e a ciência automatizada: associações que vão de encontro ao imobilismo que exprime as concepções mais correntes de “tradição” e “modernidade”.

Apenas para ilustrar de que forma se elabora e executa esta operação, observa-se, de saída, que Pantera Negra torna invisível as nuances presentes em cada um dos processos, assim como suas particularidades e eventuais justaposições, semelhanças e diferenças. Implícita na organização social e política de Wakanda, a religião tradicional estaria relacionada à crença irracional no plano superior onde habita os anciãos, seres cujo passado venerável povoam as mentes dos habitantes. Este passado, porém, é passível de ser questionado e até mesmo superado, de forma que há espaço para uma dimensão “crítica” — como demonstra a cena em que T’Challa (Chadwick Boseman) retorna ao plano ancestral para expor, diante dos espíritos, suas discordâncias com as decisões que seu pai tomou no passado. Trata-se, porém, de uma reprovação moral — fazer o certo, corrigir o passado —, e não extra-moral — uma retificação prática (“o que fazer agora?”). A ciência, por outro lado, seria representada como uma força política e gnoseológica reacionária, compondo com os rígidos ditames da segurança, a fórmula altamente racionalizada que garante o isolamento de Wakanda. Estes modelos são reproduzidos sob a forma de uma síntese aparentemente equilibrada entre aspectos “tradicionais” e “modernos”, que, no entanto, mantém estagnada a polaridade formal. Como poderia ser diferente?

Um exemplo particular no campo da música do Brasil pode nos auxiliar a perceber as tensões entre Tradição e Modernidade de uma outra forma, bastante diversa daquela apresentada pelo filme. Em seu célebre escrito sobre música popular no Brasil, editado em 1928, Mário de Andrade traçava um paralelo categórico sobre a arte no país que, por sorte e por engenho, as décadas seguintes viriam a desmentir. Para ele, haveria entre o estado social e o estado estético da arte uma relação de determinação: as condições políticas e sociais do país determinam uma arte “primitiva” e “interessada”. Ao utilizar o conceito de “interesse”, Mário de Andrade toma de empréstimo o vocabulário da estética de Kant para caracterizar a perspectiva social de toda arte “primitiva”, geralmente voltada para os festejos e rituais coletivos, religiosos e pagãos. Em um país em que tudo faltava às populações pobres, miseráveis e assoladas pela fome, não haveria de brotar uma música popular moderna, elaborada e sofisticada, capaz de assimilar as tendências étnicas, culturais e técnicas as mais diversas e produzir, não só um repertório robusto, como também uma indústria fonográfica e um sistema de radiodifusão majoritariamente sustentado pela inventividade da música negra. Suprema ironia: fora justamente a ausência de tudo que não deixou ao negro brasileiro outra opção se não lançar-se a mais radical das experiências. Inventar tudo aquilo que lhe faltava, criar uma atmosfera capaz de conectar-lhe com o presente, constituir um chão próprio para deixar brotar alguma autoestima. Inventaram, assim, um tempo e um espaço próprios (ou impróprios, dado aquilo que lhe era oferecido pelo branco); erigiram as paredes, as ruas, estradas e cidades por onde passam os brancos; improvisaram suas próprias moradias onde até hoje cantam seus sambas e funks, regados por bebidas que induzem ao delírio e cozinhando suas comidas e quitutes. Como afirma Mbembe, essa arte nunca fora “tradicional”, pois destinava-se a denunciar a “extraordinária fragilidade da ordem social”. Essa “vanguarda da vida”, que toma a necessidade pelas rédeas (o samba, o funk, a favela, o quilombo, o terreiro) em uma relação de continuidade/descontinuidade com a máquina despótica tecno-científica voltada para a produzir maiores zonas de conservação. Marcada desde sempre pela experimentação e por uma atividade da vanguarda mais radical do que poderiam supor os folcloristas e modernistas, interagindo inclusive com a tecnologia disponível em sua época e por uma atividade eminentemente urbana, a ação das populações negras nas Américas enraizava-se sempre na necessidade demiúrgica do negro desterritorializado.


África como Mito de Unificação

Pantera Negra constrói seu delírio totalitário a partir de um subtexto teórico e ideológico que norteia o pensamento negro, nativo e imigrante, nos Estados Unidos. A espinha dorsal é a construção do Panafricanismo de Crummell, Blyden e Du Bois, entre tantos outros teóricos exilados de sua “pátria racial”. Oscilando entre uma arma de combate e uma carta de princípios, o mito de unificação da África se consolidou no imaginário do negro norte-americano, a despeito das complexas formações inerentes não somente ao Velho Continente, como também à diáspora. Ainda é comum no contexto intelectual dos EUA percebermos a tendência a se buscar respostas para o presente com um farol retroativo nas mãos, ainda que se perceba, quando se observa outras regiões e populações, uma gama de variações dos sentidos do passado, do presente e do futuro. Voltado para esta África idealizada, o farol norte-americano, contudo, não se limita a iluminar as condições que possibilitaram a escravidão e a situação do negro nas Américas, mas também, e sobretudo, parece ocupado em produzir uma dupla asserção: os negros são, indubitavelmente, “humanos” (segundo Crummell, bastava observar a capacidade de dominar o inglês e professar a fé cristã para atestar essa verdade); que a África concentrou civilizações avançadíssimas em diversas épocas e regiões (como, por exemplo, o Reino do Congo, formado no século XIV),os negros exilados pela escravidão devendo tomá-las como inspiração e fonte de conhecimento. Fica evidente que o reducionismo à lógica do dominador alimenta o calor da polêmica e marca o nascimento do Panafricanismo, pois nem a posse da língua anglo-saxônica testemunha “Humanidade”, nem a África se resume a uma pátria ideal, a um modelo de “Terra Prometida” a inspirar os condenados da terra distribuídos por onde houve escravidão negra.

Mas foi precisamente a partir daí, deste composto mítico formador da imagem de um Alto Renascimento africano, que os norte-americanos encontraram forças para, em meio às estruturas materiais e simbólicas legadas pelos brancos e indígenas, desenvolver as mais diversas atividades: uma África concebida como um imenso território unificado pela cor da pele, alimentada por uma antiguidade que justificava e, por vezes, suprimia, todo o imaginário patológico produzido pela abundância de conflitos, desacordos e descontinuidades que marcaram sua longa história. No ilusionismo moral que Pantera Negra pretende transmitir através de Wakanda, a África existe propriamente como unidade. Esta ilusão serviu ao colonizador, mas também aos exilados de todo mundo, para produzir uma generalização por redução. De que África se fala quando usamos o adjetivo “africano”? Por que não nos sentimos obrigados a especificar qual é a “África” que está em jogo, visto que são Áfricas muito diferentes na Nigéria e no Níger, em Moçambique e no Mali, em Angola, Mauritânia, Tanzânia? Assim me parece toda vez que nos referimos a este universo enquanto unidade. São muitos os relatos que tentam explicar como o rótulo “África” pôde representar, sob a forma de uma generalização, tantos povos, culturas e épocas, tantas forças que riscaram rotas comerciais e passos de dança, entoaram canções de guerra e de saudade, fincaram seus santuários, exércitos, moradias e plantações sobre o antigo continente.

Estigmatizado ao longo do século passado por ter se transformado em arma de combate, redivivo na atualidade, o Panafricanismo assumia como horizonte a instalação de um conflito mediado entre forças antagônicas, em busca por uma solução eficaz entre perspectivas divergentes — não somente entre “raças”, mas também entre modelos históricos, políticos e culturais: pensamento mágico versus ciência, razão versus emoção, império versus república, e por aí vai.  Localizado em meio a estas dicotomias, Pantera Negra se mostra um filme binário à moda americana, isto é, que opera por uma média, por uma redução das representações adaptadas ao liberalismo. Uma visão binária que, sobretudo a partir do pós-guerra, quando se amplia a autoconsciência das populações negras, opera sempre no limite entre um “nós, negros bem-sucedidos norte-americanos” e os demais “negros” do mundo, os losers, os ressentidos, os necessitados. Decorre daí o debate que se instala entre nacionalistas e internacionalistas em Wakanda, a partir de uma pergunta ética: deveríamos mobilizar o aparato tecnológico do país para estender a mão a outros povos negros do mundo? No limite, Wakanda, convertida em referência, se torna espelho dos EUA, ao passo que os EUA se tornam o espelho do Terceiro Mundo.

Essas questões e conversões entre o tradicional e o moderno testemunham um limite: em determinado momento, quando o Panafricanismo teve que ser resgatado por aqueles que formariam os movimentos de resistência por dentro da América triunfalista do pós-guerra, tornou-se necessário repensar o racismo fora dos EUA, isto é, a opressão racial como uma questão mais ampla. Os documentos e textos relativos a esta transição podem ser encontrados no legado do partido Panteras Negras, no qual Huey Newton identifica, para além do nacionalismo e do internacionalismo, o “intercomunalismo reacionário” – a interconexão das comunidades mundiais sob o capitalismo global – e o “intercomunalismo revolucionário” – enquanto modo de resistência para além de quaisquer formas de nacionalismo ou internacionalismo, visto que as nações já não poderiam existir independentemente dos processos econômicos imperialistas. Mas no filme, na lógica pretensamente inofensiva do “entretenimento” voltado para o público negro (identificada a expressões mais recentes como “Dear White People”, “Insecure” entre outros), percebe-se o esforço em manter as dicotomias em vistas do fortalecimento de uma condição: para que a reivindicação por “igualdade” permanecesse válida, seria necessário reivindicar valores a serem partilhados e assimilados por negros e brancos. Embora conciliatória, essa equação não comporta a participação de imigrantes, mantendo intacto o abismo entre “branco” e “negro” que o racismo científico tratou de aprofundar. Apesar da reivindicação ideologicamente afinada com o pensamento do partido Panteras Negras, a lógica desse entretenimento é a mesma da autoajuda: confunde-se a luta por afirmação, direitos e “felicidade” com a reificação de uma identidade bem-acabada, e não com uma transição experimental enquanto descolonização. Se como afirma Fanon, “a descolonização implica na criação de homens novos”, observa-se que há uma linha tênue entre tendências de conciliação com modelos culturais herdados e consolidados (mais associados aos traços de continuidade do que aos de renovação) e tendências a criar espaço para novas subjetividades e formas de vida. Isto pode ser percebido na prática de artistas como Lee Scratch Perry, que opera sempre no limite das linguagens e das técnicas para fazer um contraponto à noção de cultura “tradicional” associada à diáspora. Pois ao inventar novas formas de gravar e produzir música, Perry, entre tantos outros negros diaspóricos, fez proliferar dinâmicas descolonizatórias, isto é, um modo de transformar a vida por uma reutilização criativa do som, da técnica, do tempo e do espaço.


Diáspora e Caricatura

Na aurora do Panafricanismo, o Padre Alexander Crummell considerava o domínio da língua anglo-saxônica e o cultivo da fé cristã como uma dádiva para as populações negras. O credo para o qual Appiah chama atenção reside no uso corrente e naturalizado de categorias universais atreladas Cristianismo, como subtexto através do qual se formaria uma imagem idealizada da África. Não havia consenso entre os diversos intelectuais que postularam as bases do Panafricanismo, mas uma ideia era aceita por todos: a África como a pátria da “raça negra” e, justamente por isso, serviria como referência, como matéria-prima aos povos exilados por todo o mundo. Até mesmo Crummell considerava o inglês “uma língua superior” aos dialetos africanos por melhor expressar a “Verdade revelada”, mantendo-se seguramente embaixo deste imenso guarda-chuva categorial. Para um filósofo atento como Appiah, o nascimento do Panafricanismo é atravessado por um “racismo intrínseco”, que toma a diferença racial do ponto de vista ontológico, subsumindo as diferenças históricas e cosmológicas sob uma “África” mitificada, construída como uma categoria ampla e generosa, ainda que rarefeita.

O problema reside no fato de que, para os “exilados”, pelo menos os que tinham condições e recursos para “falar”, estavam apartados de algumas realidades profundas desta abundante “Mãe África”, pouco conhecida até mesmo para um descendente de ganenses como Du Bois. Também não conheciam devidamente as populações escravizadas que, alforriadas, se enraizavam e transformavam as cidades que já habitavam por cerca de cento e cinquenta, duzentos anos. Ainda que esses processos se constituam de forma assimétrica, não havendo como afirmar categoricamente a inexistência de uma conexão cultural com a África na formação dos Estados Unidos  —, não se justifica, contudo, a tese de que nos lá houve “abandono cultural” das raízes africanas devido ao fato de que, desde cedo, os negros se consideravam “nativos”. Observa-se nos Estados Unidos que os negros norte-americanos tiveram que se adaptar integralmente às estruturas linguísticas, cosmológicas, religiosas que já se encontrava na base protestante das populações que habitavam a América do Norte. Daí o contraexemplo: o complexo Jeje-Nagô que se forma na Bahia de Todos os Santos, encontra as populações Bantas que já se consideravam nativas. Não havendo esquecido Zambi, Dandalunda e Catendê, tampouco os usos religiosos e recreativos dos tambores, mantinham uma outra dinâmica de transmissão, influência e síntese, bastante diversa da América do Norte.

Observa-se, ainda, um parentesco tenebroso entre as formas de representação mítica da África unificada, perceptível nas manifestações culturais norte-americanas e uma utilização caricatural do continente que vai povoar o cinema norte-americano. O caso que mais me chama a atenção – e que se relaciona diretamente com Pantera Negra – é o de Eddie Murphy. Seus filmes ridicularizavam os hábitos orientais (O Rapto do Menino Dourado, Michael Ritchie, 1986) e africanos (Um Príncipe em Nova York, John Landis, 1988) da perspectiva de uma média populista do negro norte-americano: uma malandragem despojada, uma franqueza criativa na linguagem, uma forma de ver as coisas típica desta tipologia do homem negro americano. Lembremos que, ainda nos anos 1980, os filmes de Murphy alimentavam uma imagem determinada desta tipologia, trabalhando com personagens construídos a partir de uma mistura de auto ironia com orgulho comunitário. Embalada pela música do “Rei do Pop”, então universalizada por uma máquina corporativa dirigida por brancos, as expressões do orgulho negro atravessavam as demais manifestações negras, desde o Living in America (versão black do Born in USA) até o USA for Africa. No plano das representações, as indumentárias e a dança ceremoniais dos “africanos” de Wakanda não destoam nem um pouco da caricatura ofensiva de Um Príncipe em Nova York.


Wakanda como Quimera
Tomemos a construção visual da cidade de Wakanda. Temos muito a lamentar a ausência de qualquer menção à vida urbana e ao povo local, limitando-se o filme a descrever, em praticamente sua totalidade, os rituais, diálogos e conflitos palacianos e os campos de guerra. A representação visual e a mise-en-scène das sequências na cidade indicam alguns estereótipos com os quais o filme trabalha, que o mantém muito próximo das representações caricaturais dos filmes de Eddie Murphy. A representação visual da cidade não toma como base Nova Iorque ou Los Angeles, mas, talvez, a Jamaica, pela proximidade com a questão fundamental da língua. Já entrevemos que a solução dada pelo filme é uma espécie de Trenchtown gentrificada, comportando, de forma “sustentável”, as casas humildes e o aspecto rural da favela jamaicana.  Por outro lado, no aspecto tecnológico, as poucas e precárias adaptações (como o tosco “botoque digital”) não escondem a supremacia de uma escola visual eminentemente anglo-saxônica e hollywoodiana, na escolha dos modelos de naves espaciais e dos contornos dos Palácios, aposentos e centros de tecnologia. Como nas religiões afro-brasileiras, o campo ritual alude à cachoeira, com os representantes das diferentes nações que compõem Wakanda dançando nas bordas de uma queda d’água. Mas isso como um ritual de passagem organizado dentro de uma lógica na qual a dança está associada à guerra ou à religião. Aliás, o Panafricanismo de Pantera Negra não dança e não canta por alegria, diversão, lascívia, por festa ou comemoração pagã, como também não toca instrumentos musicais. Não requebra a cintura, sequer pronuncia os contornos rítmicos ondulantes da palavra “bunda”. Aliás, a bunda em Wakanda é um elemento inexistente, represado: a bunda não se mexe lateralmente, nem a pélvis, nem os quadris. Wakanda também interditou quaisquer dispositivos químicos embriagantes ou alucinógenos, propulsores do requebro: não se bebe nenhum tipo de aguardente em Wakanda; não se fuma nenhuma erva estupefaciente em Wakanda. À moda de uma fortaleza protestante, Wakanda interditou a farofa e o feitiço, mas também a batucada alegre e pagã, os devaneios corporais não-marciais, o delírio do corpo (a bunda, o peito, as coxas), a alegria contemplativa, corpórea, o calor da roda e do tambor. Tudo ali concorre para o fortalecimento do objetivo: conservar, proteger. Wakanda não é menos paranoica com segurança do que seu espelho, modelo e opressor, os Estados Unidos.

O consenso de que há somente “mulheres fortes” no filme pode ser relativizado se analisamos mais de perto o papel que cada uma desempenha não só na trama, mas na economia simbólica geral de Wakanda. Okoye (Danai Gurira), por exemplo, é general, representando as armas e ostentando a artificialidade de uma expressão de poucos amigos. Ramonda (Angela Bassett) é a matriarca sem matriarcado, representando os valores da Família e assegurando os procedimentos e rituais — que, em todo caso, também decorrem de uma média cultural bastante próxima da síntese céltica. Nakia (Lupita Nyong’o) é a assistente social politizada, comprometida com a diminuição da desigualdade nos países pobres da África, e espelha o tipo de ativismo oportunista, prática comum entre os membros do star system hollywoodiano. Por fim, Shuri (Letitia Wright) representa a jovialidade saltitante do ideal científico, mas sem mencionar, por exemplo, as relações entre raça e ciência no século XIX. Não seria importante nos perguntarmos em que medida a força dessas personagens não estariam associadas às representações dos valores pré-determinados pelos homens brancos e suas instituições?

(Para quem se pergunta por que cargas d’água um filme da Marvel se deteria nesse aspecto da História, por favor, pergunte-se também porque mostrar Magneto lutando contra os nazistas em campos de concentração em X-Men — Primeira Classe (2011)? Ou a representação preconceituosa do sequestro do cientista playboy pelos “terroristas” afegãos este playboy que, segundo conta a história, pretende produzir justiça social escondido atrás de uma armadura tecnológica (Homem de Ferro, 2008)? )

No fim das contas, Wakanda é uma quimera panafricanista construída rigorosamente à luz dos valores “brancos” norte-americanos. Não quer dizer que haja consenso entre esses “brancos” e os modos como reproduzem seus mecanismos de violência e controle, mas a cor da pele é uma marca que persiste como critério no modo como este controle é produzido. Isso fica evidente por todos os lados, mas sobretudo quando nos perguntamos, ainda na sala de cinema, se Killmonger (Michael B. Jordan) não estaria vendo as coisas com mais clareza do que o filme desejaria mostrar. E que T’Challa, este príncipe sentimental e idealizado à contraluz do Príncipe de Maquiavel, corresponderia estranhamente às elites africanas do século XX, sanguinárias e entreguistas, completamente alienadas da dura realidade de seu povo. E, que por fim, assumem acriticamente os valores que, de uma forma ou de outra, constituíam a justificativa moral da escravidão. Quando retorna aos EUA para reconstituir a trajetória de seu tio, T’Challa comenta com Nakia seu desejo de construir um centro cultural no Oakland. Nada mais desprovido de propósito e sentido do que uma apologia da gentrificação em pleno Oakland, a mesma gentrificação que empurra as populações negras para longe do “waterfront”, substituindo-as por prédios imensos e lojas de celulares.

Wakanda como quimera pode ser lida em uma outra chave: como a África, não existe propriamente, é mais um mito estratégico, reiterado por intelectuais privilegiados do jet set acadêmico e administrado por um império do entretenimento que se vale das tensões do momento para disseminar a exaltação das forças da guerra, da burocracia e da ciência gerida pelo capitalismo corporativo. Uma comparação com outra unidade guerreira, Palmares, e Wakanda não se sustenta como modelo de resistência e administração da vida. Apesar de sua formação guerreira, que rechaçou mais de 30 expedições portuguesas e holandesas, Palmares se constituía como uma autêntica formação banta, cuja característica cultural era a combinação de preservação sincrética de seus hábitos, práticas e crenças, assim como uma tolerância que comportava o convívio com índios e até mesmo brancos, todos acorrendo ao Quilombo devido à fartura da sua produção — segundo Nei Lopes “nos tempos de paz, os palmarinos vinham vender o excedente de sua produção” aos povoados vizinhos. Uma unidade guerreira, porém talhada com bases éticas diversas das de Wakanda, pois não havia sequer resquício de dúvidas com relação aos benefícios da convivência e da vizinhança. Tanto a lógica existencial como a imaginação política de Palmares comportavam o convívio entre diferentes mundos.

No Brasil, Pantera Negra foi comemorado como uma vitória, e, antes mesmo de assistir ao filme, muitos colegas já antecipavam os efeitos promissores que um herói da Marvel negro seria capaz de suscitar entre crianças e adolescentes, em sua maioria, carentes de ídolos parecidos com seus amigos e familiares. Mas Wakanda é também a expressão de uma imagem que as crianças não carecem exatamente: uma necessidade de aprisionar e quantificar a força do trabalho, a potência de criação, a disposição física e sexual, a inteligência, a velocidade, o olhar, a beleza, o ritmo que em Wakanda, são represados. A Elite-Represa de Wakanda carece da segurança. Não é à toa que os Republicanos de Wakanda aceitam de bom grado a ajuda da CIA para caçar terroristas sul-africanos, pois trata-se de mais um componente na economia geral da trama a justificar uma intervenção robusta na arte de se subsumir diferenças e produzir maiorias. É de um oportunismo baixo sobre o qual somos obrigados a dizer em alto e bom som: corra!

(Publicado em 09/03/2018 na Revista Cinética - online)