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terça-feira, 12 de março de 2013

Rob Mazurek Octet – Skull Sessions (2013; Cuneiform/Submarine; EUA/Brasil)




Formado a partir de uma combinação do São Paulo Underground com o Starlicker, eis o primeiro rebento do octeto de Rob Mazurek. Batizado como Skull Sessions, o álbum traz uma leva de músicos com os quais Mazurek mantém colaborações regulares: o baterista John Herndon, o vibrafonista Jason Adasiewicz, o flautista Nicole Mitchell, Guilherme Granado nos teclados e eletrônicos, Carlos Issa (Objeto Amarelo) na guitarra e nos eletrônicos, Maurício Takara na percussão e cavaquinho e Thomas Rohrer na rabeca e no saxofone. Um time formado na base da amizade, o que se reflete na fluência com que passam do improviso à execução dos temas, do ruído à melodia mais singela, da cornucópia sonora aos detalhes mais imprevistos.

Em 73 minutos, o octeto conduz o ouvinte por cinco faixas que tanto podem se associar à noção geral de jazz (isto é, de improviso), como mantém laços criativos com duas ou três vertentes da música instrumental dos anos 70: a fase fusion de Miles (Bitches Brew, On The Corner), sobretudo na dosagem entre partes ensaiadas e o improviso; o aspecto extático, spiritual, da Fire Music de Sonny Sharrock, Archie Shepp, William Parker; e, por fim, a música brasileira, particularmente do instrumental dos anos 70 desenvolvido por nomes como Hermeto Pascoal, Airto Moreira e Egberto Gismonti. 

Vale notar que essas referências devem apenas situar o leitor no alistamento de contribuições que, parece, constituem o trabalho, mas não esgotam sua significação. A bem da verdade, as Skull Sessions se encontram a meio caminho das modulações do Chicago Underground Duo e da profusão sonora da Exploding Star Orchestra, situando-se assim entre a economia estratégica do primeiro e a ambição harmônica da segunda. Das estratégias, a fluência com que ocorrem as “deixas” para mudar o clima, o andamento ou o arranjo; da ambição harmônica, um certo despojamento punk na hora de sobrepôr muitas informações sonoras, característica que dialoga com o jazz de Sun Ra, mas que também constitui um dos grandes talentos de Mazurek. Soma-se a isso a prática do “layering”, da sobreposição (ou justaposição) de linhas e volutas rítmicas, harmônicas e melódicas, com a contribuição fundamental da miscigenação de timbres eletrônicos e acústicos.






Neste contexto, a frase de Jeff Parker, presente no texto do encarte de Stellar Pulsations, ganha um sentido muito específico: “Rob Mazurek vem explorando a idéia de criar ambientes para perder-se no som”. Ora, há um claro, pregnante, luminoso paradoxo nesta ideia! Trata-se de uma operação que se propõe a conjugar a disposição intencional, isto é, tudo aquilo que o artista pode prever, com o campo de possibilidades em aberto que esta mesma disposição cria. De um lado, a extrema sabedoria técnica, criativa, formal; de outro, um “deixar-se-levar”, uma espontaneidade que se reflete no aspecto cromático do som. 

Tal característica se torna perceptível conforme as primeiras tramas se desenham em “Galactic Ice Skeleton”, dezessete minutos de uma odisseia sonora com forte pegada funky-fusion e traços brazucas nas melodias e harmonias. É notável a presença entrelaçada do vibrafone, da rabeca, dos timbres eletrônicos, e também a forma como os vários timbres ocupam a paisagem da composição. Tal característica se confirma na sequência, com “Voodoo and the Petrified Forest”, faixa que sustenta a aparência lírica da anterior, para desembocar em uma incrível improvisação free, com destaque novamente para a rabeca de Thomas Rohrer e a percussão de Maurício Takara. 

Talvez a faixa mais que contenha o trecho mas abstrato do álbum, “Passing Light Screams” começa com a contribuição de todos os instrumentos degladiando-se de forma tensa e desordenada. De repente, a fonte seca: resta o vibrafone e alguns ruídos discretos executados pela percussão e pela rabeca. Com timbre macio, o trumpete descreve uma melodia para, alguns minutos depois, juntar-se à flauta e ao teclado para iniciar um tema sinistro que irá conduzir em crescendo a faixa para seu fim. O vibrafone introduz a marcha “Skull Caves of Alderon”, cujo belíssimo tema remete ao maracatu e às fanfarras nordestinas. A zoeira noise de seus últimos minutos contrasta com a última faixa do trabalho, “Keeping the Light Up”: neste caso, o jogo passa a ser com as lacunas, os vazios, os silêncios, ocupados de forma parcimoniosa por melodias breves e intervenções discretas.

Um tal equilíbrio entre influência e originalidade, improviso e composição, radicalidade e tradição, som e silêncio requer fluência e comunhão de propósitos. Será? Nada pode ser mais fortalecedor de uma empreitada sonora em conjunto do que a amizade entre seus membros. Certo? À esta altura já não tenho certezas absolutas, mas no caso específico de Rob Mazurek essas premissas parecem funcionar às mil maravilhas.

Bernardo Oliveira



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Rob Mazurek Pulsar Quartet (Angelica Sanchez, Matthew Lux, John Herndon) – Stellar Pulsations (2012; Delmark Records; EUA)




À primeira vista, Stellar Pulsations pode espantar o ouvinte acostumado aos hibridismos eletro-extáticos promovidos por Rob Mazurek, em virtude de sua aparência mais “tradicional”. Neste álbum de estreia do Pulsar Quartet, quarteto formado por velhos conhecidos do trumpetista americano, tomamos contato com uma inflexão instrumental convencionalmente associada ao bebop dos anos sessenta. Este fora meu juízo a partir da primeira audição, ainda no ano passado, cercado de copos, garrafas e amigos ruidosos. À esta altura, o veredito geral contrastava com a percepção atual: o primeiro, preguiçoso, se deu por satisfeito diante do pouco que ouviu; já o segundo, percebeu (aos poucos, é verdade) o que havia “por trás” da aparência.

Reparando atentamente às sete faixas de Stellar Pulsations, percebe-se que há uma lógica interna que confere a timbragem direta (sem efeitos ou estratégias de manipulação digital) a uma série de composições que reinterpretam fenômenos ligados à história do jazz: em “Primitive Jupiter”, o balanço de Nova Orleans com forte inflexão afrolatina; em “Magic Saturn”, o blues arrastado; em “Spiritual Mars” e “Twister Uranus”, a abstração da fire music em função do puro êxtase; em “Spiral Mercury, a presença negra no soul e no rock; a canção folk, “bossa nova”, em “Folk Song Neptune” e “Spanish Venus”.

O erro é acreditar que a “aparência” é simples! A aparência standard de Stellar Pulsations indica mais do que uma retomada de aspectos formadores do bebop. Stellar Pulsations foi construído com a intenção de utilizar o fraseado nervoso e as síncopes do bebop, lançando-se com liberdade sobre o espectro de influência do jazz norte-americano. E isso tanto no que diz respeito aos ritmos que o precederam (Nova Orleans, o blues), como nas manifestações em que demonstrou poder suficiente para se imiscuir na política (a fire music), influenciar a música de outros países (a bossa, o jazz latino e africano) e até mesmo retomar sua influência na indústria de massa, através do soul e do rock’n’roll.

Assim, o grupo escalado para a empreitada deveria, em primeiro lugar, responder pela dinâmica de “contenção exploratória” proposta por Mazurek. Para formar o quarteto, ele reuniu alguns músicos com quem já trabalha há algum tempo, aliás, como é recorrente em sua trajetória. A pianista Angelica Sanchez, componente da Tri-Centric Orchestra, ao lado de Anthony Braxton, Mary Halvorson, Nate Wooley, entre outros, além de acompanhar Wadada Leo Smith. O baixista Matthew Lux, parceiro de Mazurek em uma pá de projetos, como Chicago Odense Ensemble, Exploding Star Orchestra, Isotope 217, Mandarin Movie, etc.. E os ritmos delirantes de John Herndon, baterista do The Eternals, Tortoise e outros tantos projetos com Mazurek. Esse trio, por si só, já seria motivo suficiente para prender a atenção, ainda mais dentro de uma economia de timbres diretos, sem manipulação ou filtro eletrônicos ou digitais. Mas eles ainda fizeram mais do que isso.

Neste sentido, se impõe a beleza do Pulsar Quartet: mais do que vivificação, reinterpretação, revival, rememoração, nostalgia, sua aparência mais tradicional produz uma espécie de alargamento dentro do aparato timbrístico do bebop. Afinal, que conversa é essa de “aspectos tradicionais do bebop”, como se o tempo fosse capaz de apagar a pré-disposição dos músicos desta época para atitudes e tendências mais abertas e fluidas, em outras palavras, seu caráter exploratório sedimentado pela prática da improvisação? O Pulsar Quartet lança-se contra essas hipóteses com a criatividade e o vigor que caracterizam seus músicos. Ainda que em direção diferente, os discos de Branford Marsalis na virada dos 80 para os 90 desempenharam um papel semelhante — sobretudo Crazy People’s Music e Random Abstract. Trata-se de reativar o vocabulário do bebop para produzir, a partir dele, outras possibilidades, inclusive as que foram consideradas divergentes por razões ideológicas, políticas ou sociais.

Bernardo Oliveira