terça-feira, 30 de setembro de 2014

DEDO – 2x c32 (DEDO, 2014, Brasil)



Em minha recente passagem pelo Rio de Janeiro, tive o privilégio de dividir o palco duas vezes com o DEDO. Mais tarde, Lucas Pires me contou que eu fui um dos poucos que assistiu a apresentação que ficou conhecida como “performance dos espelhos” em seu formato completo, tocada primeiro em sua forma real e a seguir em uma versão  espelhada.  Em suma, cada performance do DEDO é única - raramente os integrantes a reproduzem uma segunda vez. Mais do que o fruto de três mentes compulsivas e muita dedicação, um presente ao público, que faz parte daquele momento junto ao trio. Mesmo com a distancia de uma ponte aérea, acompanhei com interesse ao amadurecimento do trio, com toda a proximidade que o pós-internet permite.

“DEDOS são membros que nascem na palma da mão ou do pé. São divididos entre si e tem unhas.”. De fato, os dedos são divididos quando analisamos um por um, individualmente. Porém, ao olharmos para a mão (ou um pé), o que vemos é uma unidade.  Trata-se de um conceito minuciosamente pensado pelo trio, que reflete diretamente no aspecto sonoro e visual.  Majoritariamente, bandas e projetos são formados por artistas com visões diferentes, mas complementares. Não foram poucas as vezes em que chorei de ódio durante um ensaio ou que bati o telefone na cara de um colega de banda. Tenho histórias pavorosas, que falam muito mais de mim mesmo do que eu gostaria. E do equilíbrio entre as diferenças nasceram muitos dos trabalhos que produzi em grupo até então. Falo tudo isso porque uma das coisas que mais me chama a atenção no DEDO é a preocupação com a unidade, algo que vai muito além das roupas pretas que o trio invariavelmente usa. Gosto do modus operandi mecânico e minucioso, da preocupação técnica em poder reproduzir uma mesma peça de trás para frente, da maneira mais fiel possível.  Esse tipo de afinidade não vem do nada, e não me surpreendeu  saber que os três conduzem suas atividades extramusicais  em um mesmo ambiente, sentados em uma mesma mesa. Mesmo com o convívio constante, arrisco dizer que esse senso de unidade relaciona-se mais a uma preocupação conceitual - que orienta em definitivo o direcionamento do grupo -  do que qualquer outro campo de relação puramente humana.

Divido a relação entre música e sensibilidade em duas categorias: as músicas que me fazem sentir vivo e as músicas que parecem criar vida própria. Lembro de ouvir a “Pow R Toc H’ aos 19 anos e ficar obcecado pelo Piper at the Gates of Dawn, reproduzindo o álbum exaustivamente em diferentes caixas e aparelhos de som. Foi um pavor gostoso sentir que “havia algo ali”. De lá pra cá, tornei a experimentar essa sensação em alguns discos que trouxeram a tona essa mesma mistura entre satisfação e medo irracional. Não há variação de intensidade, trata-se de um estado pleno, que não dá qualquer indício de que está por vir. Gosto da sensação de desligar um disco por estar “passando mal”, trata-se de uma fraqueza ou vulnerabilidade que eu me dou ao direito de ter. E foi com muita felicidade que revivi essa sensação na última performance do trio que eu tive a oportunidade de assistir (Ao vivo no CCSP). Gosto da maneira como a “música de contato” do DEDO se assemelha a um organismo vivo, que parece sentir fome e se alimentar. É algo grande, que se permite sentir, mas que não se deixa ver. Cada clique ou estalo que emana do PA tem uma forte carga de movimento. Não sei ao certo do que estamos falando, tudo o que eu sei é que é grande, tem vértebras e ESTÁ VIVO.

Esse sopro de vida, tão presente nas performances ao vivo, se faz presente no improviso livre de 2x c32, mesmo que de forma mais contida. Em tempo, trata-se de uma sessão gravada na Comuna , para a gravação de um piloto para a TV idealizado por Paula Galtan. Um registro importante para a carreira dos DEDOS, mas que não substitui de forma alguma a apresentação ao vivo,  sendo uma puramente complementar a outra. Como eu disse anteriormente, nenhum trabalho ou apresentação do DEDO é descartável, da mesma forma que nenhum trabalho ou apresentação  parece ter qualquer ambição de superar a que antecede. Unidade é a palavra de ordem. A obra já nasce pronta, e todo live morre ali. A gravação, masterização e mixagem ficaram a carga do amigo Sávio de Queiroz, junto a Alexandre Goulart.


Diferentes possibilidades:  quem adquiriu o cassette duplo 2x c32 se deu conta de que os artistas não confinaram o álbum a uma ordem pré-estabelecida,  permitindo ao ouvinte experimentar uma série de combinações.  O conteúdo de cada um dos quatro lados é bem uniforme, eu mesmo experimentei umas três combinações diferentes, todas com resultados bem satisfatórios.

Thiago Miazzo

terça-feira, 16 de setembro de 2014

cassaro: experiência, técnica e artifício (notas)
























“a obra reverteu à vida. é necessário repensar, recriar tanto uma coisa como outra, isto é, tanto os signos quanto a vida.”
décio pignatari, “a comunicação pensada” (entrevista). 1968.

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a obra de arte se transformou em vida e experiência, embaralhando arte, consumo, sistemas de estratificação social, técnica, história, ciência e uma pitada de filosofia para conferir legitimidade tanto aos diagnósticos universitários como às opiniões do jet set. não se pode falar em obra sem falar nas implicações que ela deflagra, ainda que em muitos casos, esses agitos favoreçam mais o aspecto “mercado” do que qualquer outras coisa.

independente das diferentes noções de  pregnância e densidade, independente até mesmo da ciranda de legitimacões partilhadas por curadores, colecionadores e empresas et cetera, cada artista cristaliza seu gesto em estruturas que permanecem, sejam enquanto elemento material, seja enquanto lembrança (experiência).

é este desequilíbrio produtivo entre a estabilidade do material e a instabilidade do dispositivo e de seus desdobramentos que define a “obra de arte” hoje, ainda que esta condição ambígua nos obrigue a admitir que o próprio nome empregado para defini-la possa vir a ser usado aqui de maneira displicente. 

toda “obra de arte” se dissolveu, se tornou justaposição de experiências de muitas subjetividades. caos em estágio pré-individual. tensão. o que é a “invenção” hoje neste contexto embaralhado, se não as faíscas que espirram da fricção entre muitas subjetividades?

por sublinhar a ambiguidade entre estabilidade e instabilidade, entre princípio identitário e caos de perspectivas, me interesso pela obra de franklin cassaro. suas peças reposicionam a tensão entre os elementos subjetivos e coletivos que estão implicados nos processos de reprodução da “arte”. para isso, cassaro parte de um conjunto de ideias que transitam entre o jogo, a técnica e a simplicidade, encaminhadas através da performance, do contato imediato com outras subjetividades.

a valorização da experiência presente e do provisório: tomemos o material dos “crânios recicloides” e o “cassarobots reciclardes” (morte orgânica, ressurgimento robótico), confeccionados em papel de alumínio. seres-dispositivos impregnados por uma condição ambígua, entre a estabilidade enquanto “obra” e sua vulnerabilidade material. peças elaboradas com papel de alumínio e outros materiais encontrados nas embalagens de doces, sobrevivem em estado de eminente desintegração. são obras que anulam o distanciamento e sintonizam com o aqui-e-agora de quem as experimenta. parecem que foram produzidas como o pão da padaria: diariamente. obras impregnadas de seu próprio devir, de seu próprio vir-a-ser.

























essas peças deslocam o distanciamento crítico para uma posição mais complexa, que, à moda de um brinquedo e de uma brincadeira, envolvem a interacão entre subjetividades, ações individuais e coletivas. é curioso que esta estratégia de aproximação, que converte o espectador em comparsa, seja pavimentada através de seres de formas estranhas, mais próximos dos insetos que dos homens. é uma aproximação por efeito diferencial, não por afinidade.
























cassaro ativa o aspecto performático através de seus “atos escultóricos”: captura a atenção do espectador como um mágico de beira de estrada. retira do bolso um pequeno balãozinho que, por força das lufadas de ar provocadas por gestos precisos, se movimentam no espaço. não há figura mais antagônica ao artista plástico legitimado e consolidado no mercado do que a imagem do cacheiro viajante que diverte as crianças, encantando-as com seus truques ligeiros e descompromissados.


















a captura, no entanto, não é completa. sua performance é um processo de liberação nos quais os segredos se abrem aos olhos de quem vê: a estrutura tecno-lógica da mágica é revelada simultaneamente à produção do encanto, como no caso do uso de ventiladores nos “cassarinhos”. abre-se uma porta de entrada que oscila entre o prazer da surpresa e uma sorte de conhecimento natural e imediato, alusivo à curiosidade cientifica.
































o ar é um de seus parceiros invisíveis, como n’os “abrigos”. o abrigo se enche de ar, que é retido graças ao toque da boca do balão no piso. embora relativamente cientes do que está acontecendo, nos encontramos no interior de uma bolha gigante de ar, delimitada por um plástico repleto de ruídos visuais, instaurando um momento de suspensão imaginativa do tempo-espaço: estamos em terras alienígenas. da relação intersemiótica entre o efeito natural (a física) e o aspecto simbólico (a ideia de algo invisível que nos envolve) nasce uma terceira posição: o bioconcretismo pode ser compreendido como afirmação simultânea da arte e da vida, catalisadas através da invenção.



HAPPENINGS_2011_Franklin Cassaro - OCAÔCA from happenings on Vimeo.

o brinquedo reivindica a substituição do paradigma crítico-contemplativo por uma atitude crítico-participativa: não se trata apenas de compreender a lógica do fenômeno, gozar o efeito estético e a sensação de jogo, mas de estimular a repetição. repetir a mágica por suas próprias mãos, não é esta a nossa inclinação quando assistimos ao mágico que nos permite compreender seus truques?

cassaro concentra um tipo muito particular de justaposicão que retensiona a relação entre artista e espectador, entre indivíduo e coletividade, entre o artista-educador e o artista-celebridade, entre elementos estáveis e instáveis. essa particularidade pode ser resumida nos seguintes pontos:

- a valorização da experiência presente e do provisório: a arte em estado líquido que se infiltra por entre as parades robustas do material, da experiência e da lembrança. arte atualíssima, que não cessa de se desdobrar em outras experiências, obras impregnadas de seu próprio vir-a-ser.

- performance: onde a performance não remete ao aspecto “desinteressado”, “performático”, mas às relações interessadas entre o “mágico” e a plateia; 

- arte como técnica e artifício: no qual o deleite não embriaga simplesmente, mas também permite desvendar seu mecanismo aos olhos do espectador; um deleite que não aliena, mas educa e estimula por “exemplaridade inclusiva” (o brinquedo como dispositivo inclusivo);

- uma noção particular do mercado: o negócio (o objeto) pode ser vendido, mas também ensinado. você pode não levar a peça, o objeto, “a obra”, mas fica com a experiência.

- aproximação do espectador por efeito diferencial, não por afinidade — formas pop, mas de um pop pueril, antiindustrial, antipático: o robô, a caveira, o passarinho feito por notas de dez reais;

- o ar é a metáfora do invisível, mas de um invisível que preenche a imaginação: relação intersemiótica entre o efeito natural e o aspecto simbólico gera um sentido particular da justaposição arte/vida;

- o coletivo não é administrado enquanto “massa”, mas desdobramento de gestos, aproximações, sondagens, articulações. o coletivo, neste caso, não compartilha do distanciamento seguro do “espectador”, mas se torna dado imprevisível da própria performance.

Bernardo Oliveira