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sábado, 7 de dezembro de 2013

Elementos Arcaicos: à conversa com Stephen O’Malley























Como se alimenta a imaginação dos artistas? Como se estabelecem os métodos particulares dos grandes criadores? No caso de Stephen O’Malley, americano de Seattle, — e, creiam-me, estamos a falar de um grande criador! — esta equação não parece tão distante ou intangível. “Sempre fui fascinado por ouvir música, acho que é provavelmente a minha principal fonte de inspiração”, declarou à FACT Magazine PT, em entrevista por telefone. Músico, compositor e designer, O’Malley desembarca no Brasil esta semana para uma única apresentação no Sónar São Paulo, com seu projeto drone, o KTL. Uma oportunidade de ouro para assistir a um dos artistas mais prolíficos e decisivos do ainda jovem século XXI.

Aos 37 anos, O’Malley acumula um volume de produção monumental, que ultrapassa uma centena de discos. Como líder, criou bandas que desafiaram os limites do metal, o redefiniram como gênero e expandiram suas fronteiras: Sunn O))), Burning Witch, Khanate e o próprio KTL. Como membro, participa de projetos igualmente desafiadores como o Æthenor, sem contar as colaborações com Merzbow, Nurse With Wound, Boris, Jim O'Rourke, Oren Ambarchi, Melvins, entre outros. Sob a influência de uma banda conterrânea, o Earth, O’Malley adquiriu reconhecimento explorando nuances do metal, incorporando dark ambient, doom, drone e rock psicodélico às texturas rascantes das guitarras headbangers, tingido-as de um caráter cerebral e sombrio. Tal inclinação à experimentação, no entanto, alinha-se a uma percepção muito particular da música e do som:

“Ao longo dos anos, percebi a música como uma forma tradicional de comunicação e arte, passada através de gerações que, de alguma forma, continuaram explorando certas ideias musicais. Algumas idéias são novas, mas um monte de idéias estão presentes em manifestações fundamentais como o ritual, a cerimônia social, a atividade extra-consciente. Trata-se de um atavismo da natureza humana, elementos arcaicos que tem a ver com a necessidade de fazer música.”

Sunn O))) – “Alice”



Com o KTL, O’Malley se junta ao inglês Peter Rehberg (mais conhecido como Pita) para lançar-se à experimentação eletrônica, buscando recriar sobre outras bases, o clima soturno dos discos de death e black metal que o acompanham desde a adolescência. A dupla, que iniciou os trabalhos em meados da década passada, lançou em maio seu quinto álbum, simplesmente batizado como V (eMego, 2012). 

“Peter Rehberg e eu lançamos o último disco do KTL em 2009, e desde então, trabalhamos em muitos projetos, como o Pita, algumas instalações de arte e, é claro, concertos do KTL. Na verdade, nos mantivemos em atividade e fomos convidados para trabalhar em alguns estúdios europeus especializados em música eletrônica. Então, o disco resulta de uma variedade de projetos que nos tomou cerca de dois anos. Na verdade, trata-se de um álbum mais ‘democrático’ que os anteriores, e tanto o clima quanto o tom do disco testemunham o que eu e Peter fizemos juntos recentemente.”

KTL – “Phil 1”



Esta variedade se refletiu no resultado final do disco, que foi gravado em estúdios tradicionalmente ligados à música eletrônica europeia, como o EMS, em Estocolmo e o Meccas GRM, em Paris. Assim, V é talvez um dos trabalhos mais elaborados da dupla, trazendo consideráveis variações de abordagem e composição entre as cinco faixas, ora remetendo ao clima carregado dos trabalhos anteriores, ora dialogando com as dissonâncias e sonoridades eletroacústicas presentes na obra de Gÿorgy Ligeti e Eliane Radigue. A escatológica “Last Spring: A Prequel”, por exemplo, repleta de diálogos em francês, advém do trabalho de Rehberg e O’Malley com a coreógrafa e diretora de teatro Gisèle Vienne, ao passo que “Phil 1” se aproxima das experiências anteriores, dedicadas à exploração dilatada dos drones. Mas o carro-chefe reside na participação do compositor e produtor islandês Jóhann Johanson na apocalíptica “Phil 2”. Johanson compôs a orquestração da faixa e convocou a Filarmônica da Cidade de Praga, conduzida por Richard Hein, realçando o ambiente lúgubre com uma pletora de detalhes.

“Quanto a Jóhann, sempre conversamos a respeito de trabalhar juntos, e achamos que agora era a hora certa. Ele fez um arranjo para esta peça em um dos estúdios em que trabalhamos e tivemos a oportunidade de gravar com uma orquestra. Trata-se de algo muito difícil de se fazer, e por sorte tivemos esses recursos. Não estou certo de que poderíamos arranjar esta música… Certamente não faríamos o arranjo para orquestra, mas até mesmo a produção do arranjo...”

Sobre como pretendem levam esta diversidade para os palcos e, particularmente, como conduzirão o concerto no Sónar São Paulo, O’Malley demonstra a intenção de abordar sonoridades divergentes:

“No último concerto que fizemos em Moscou, no mês de março, resolvemos improvisar sobre a estrutura de uma peça antiga, composta em 2007. Não fazíamos isso em uma apresentação há muitos anos! Quando você toca em um festival como Sónar, onde há tanta música ambient e eletrônica no programa, bem como um tipo de música mais baseada no ritmo… Bem, Pete e eu provavelmente faremos algo completamente diferente (risos). Pode ser mais black metal, mais pesado... Estou apenas estimando...”

Não há dúvidas de que seu métier é a música, muito embora manifeste habilidades que não se resumem ao universo musical. Além de percorrer com desenvoltura o espectro de expressões artísticas de nosso tempo, como instalações, performances, design e experimentações de toda sorte, O’Malley foi designer de numerosas capas de disco (Onehotrix Point Never, Boris, Earth, etc.), elaborou peças e instalações com a já citada coreógrafa Gisèle Vienne, o escultor americano Banks Violette, o performer ialiano Nico Vascellari, o coletivo suíço KLAT e o cineasta belga Alexis Destoop. Não pairam dúvidas quanto ao aspecto imagético, quase cinematográfico — e, com certeza, dramático — que perpassa todos os seus trabalhos, mas ele acrescenta:

“Uma das coisas mais interessantes da música é que você pode entrar em contato com ela de muitas maneiras, não apenas através da audição ...  Sempre pensei a música como um dispositivo visual, mas também ‘físico’. A música não é simplesmente direcionada para os ouvidos, parte de seu poder de atração advém do fato de que ela estimula a imaginação de maneiras diferentes. Me surpreende o fato de que as pessoas possam ser estimuladas pela música que eu faço, mantendo uma relação ‘visual’ com a escuta. Porém, a grande ilusão é que a audição é um sentido isolado! Pois ela tem a ver também com o toque e a visão.”

Na carreira de O’Malley, a improvisação ocupa um lugar de destaque, desempenhando talvez o papel extático, “extra-consciente”, que ele reivindica para as manifestações musicais. No ano passado, o artista se apresentou completamente sozinho em uma venue em Jerusalém chamada Uganda. Desta apresentação, resultou uma fita cassete de quarenta minutos batizada Romeo, e editada pelo selo Ideologic Organ. O artista nos falou sobre como é estar em um palco completamente sozinho:

“Evitei improvisar sozinho em público por um longo tempo. Na verdade é muito assustador, porque basicamente você explora seus próprios limites. Em grupo, há uma estrutura, você pode se resguardar em suas próprias limitações. Às vezes, se você está improvisando algo que não é realmente bom, você pode se escorar em alguém como Steve Noble (risos). Quando você está improvisando por si mesmo, está nu e exposto. Sobre um projeto solo, a pergunta que me vem à cabeça é: ‘isso vale a pena não para mim, mas tem valor para a experiências das pessoas?’ Improvisar com as pessoas implica em alguma forma de comunicação, mas quando você está sozinho é outro exercício. É como assistir ao crescimento de uma personalidade. Não é que não seja prazeroso, trata-se de um desafio interessante.”

Stephen O’Malley – Ao vivo em Gênova



Pergunto a respeito da guinada considerável do Æthenor, que além de Daniel O’Sullivan e O’Malley, contou em seu último trabalho, En Form For Blå (VHF, 2011), com Kristoffer Rygg e com o baterista Steve Noble (parceiro de Derek Bailey, entre outros), com quem O’Malley dividiu recentemente o acachapante St. Francis Duo (Bo’Weavil, 2012). A mudança se deve não somente à inclusão momentânea do baterista, mas também a outros fatores.

“Em primeiro lugar, o Æthenor nunca foi realmente uma banda direcionada para as apresentações. Na verdade, fomos convidados para tocar em um festival, cerca de três ou quatro anos atrás, e Daniel O'Sullivan, que é como o líder da banda, trouxe Steve Noble para o projeto. Foi a primeira vez que tocamos juntos ao vivo e, é obvio que passou a soar diferente, porque é uma outra coisa. Os três primeiros discos do Æthenor são basicamente produções de estúdio, e falando por mim mesmo, tenho muito pouco a ver com esses discos, é algo que eu honestamente não domino. Quer dizer, eu sei quais são as partes em que eu estou tocando (risos)… Mas quando começamos a tocar ao vivo, aí a coisa ficou real, pelo menos para mim. Então, é um tipo diferente de projeto. Noble já não esta mais envolvido no Æthenor, mas, de certo modo, houve sim uma segunda geração do grupo que contou com sua presença. Ora, tocar com Steve Noble foi um prazer, e sempre que conseguimos cumprir uma tarefa diferente em conjunto é realmente estimulante!”

Stephen O'Malley, Steve Noble @ Cafe Oto 18.08.10



Para finalizar, pergunto a O’Malley a respeito do selo Ideologic Organ, distribuído pelo Mego de Peter Rehberg. Como se não bastasse sua hiperatividade como artista na música e nas artes visuais, o autor é o responsável pela curadoria e a programação visual do selo. Desde 2007, o Ideologic Organ se dedica a lançar trabalhos de O’Malley e companhia, mas também a desvendar autores misteriosos como Ákos Rozmann e Eyvind Kang. Trata-se de um trabalho em progresso, segundo as palavras de O’Malley:

“Estou tentando descobrir qual é o conceito do selo. Acho que trata-se de uma composição conceitual. Você pode ter Ákos Rozmann, que é um compositor eletrônico, e algo como Sunn O))), trabalhando em um mesmo universo. E ainda assim, tento descobrir que tipo de universo remete ao conceito do selo. Acho que ainda estamos longe de defini-lo. Estamos ainda definindo a identidade visual, trata-se de um selo diferente de todos nos quais já trabalhei. Demora um tempo até que se consolide uma identidade.”

Bernardo Oliveira
Entrevista publicada em 09 de maio de 2012 na edição portuguesa da revista eletrônica FACT Magazine.

terça-feira, 9 de julho de 2013

Ikue Mori: A Arte do Ritmo Assimétrico

























Ikue Mori & Steve Noble – Prediction and Warning (2013; Fataka, Reino Unido)


























Ikue Mori & Maja S.K. Ratkje – Scrumptious Sabotage (2013; Bocian Records, Polônia/Noruega/EUA)


Em 1977, quando, sob a influência do punk, veio de Tóquio para morar em Nova Iorque, Ikue Mori descolou seu primeiro trabalho como percussionista/baterista do DNA de Arto Lindsay e Tim Wright. Sua presença no grupo foi decisiva, tendo sido eleita a responsável por elaborar estruturas rítimicas que se adequassem aos rompantes impostos pela guitarra anômala de Lindsay. Críticos de música da época chegaram a compará-la a um baterista de free jazz, talvez por se recusar a prestar contas à regularidade que se espera de uma baterista de rock. Mas, sobretudo, por desenvolver um método particular para inserir elementos rítmicos descontínuos em uma estrutura relativamente aberta, participando, assim, da linhagem de percussionistas que conduz de Babatunde Olatunji a Maureen Mo Tucker — artistas que conceberam a bateria enquanto um instrumento liberado de sua forma meramente técnica, mantendo diálogo permanente com técnicas oriundas de outros instrumentos de percussão.

Posteriormente, Mori passou a operar a bateria eletrônica utilizando-se de um método original de improvisação, e, nos anos 2000, adotou o lap top (por vezes chamada “percussão eletrônica”), mantendo-se firme na tentativa de elaborar um discurso percussivo transgressor, pautado na irregularidade e na assimetria. Indicando claramente que esta tendência ainda vigora em seu trabalho, dois lançamentos recentes marcam a presença luminosa de Ikue Mori neste ano que já escorre pelo ladrão. Prediction and Warning, em parceria com o baterista inglês Steve Noble; e Scrumptious Sabotage, com a experimentadora norueguesa Maja Ratkje, ambos lançados em maio deste ano, dois anos depois da excepcional colaboração com Julianna Barwick.

Nesta última colaboração, editada pelo selo Rvgn Intl. como o sexto volume da série FRKWYS, observou-se um desacordo pontual entre o approach carregado da artista japonesa com os sintetizadores espectrais da lourinha de Louisiana. Um descompasso evidente entre estilos, que se encaminhou de forma brilhante no decurso da improvisação. O ato de improvisação, por assim dizer, forçou uma intervenção mais enérgica de Mori em relação às texturas evocativas dispostas por Barwick, propiciando assim um equilíbrio artificial que somente a generosidade e a força da concepção podem impor. O mesmo não se pode afirmar quando Mori se propõe a dialogar com alguns parceiros com os quais mantém evidentes laços de afinidade. Nestes casos, observa-se que a artista opta pela abundância em substituição à parcimônia, liberando todo um arsenal de “vibrações, estridulações, rangidos, zumbidos, estalidos, arranhões, fricções” que anunciam a “idade dos insetos” na música (preconizada por Deleuze-Guattari, Mil Platôs IV, p. 111).

Iniciada em 2010 em um concerto no Café Oto, em Londres, a afinidade entre o pensamento musical de Mori e Steve Noble se evidenciou pela forma aberta com que concebem seus respectivos instrumentos. De tal maneira que, como se pode ler no release de Prediction and Warning, Noble se posiciona como “o espelho acústico da música eletrônica de Mori”, procurando traduzir e incrementar as articulações nervosas da percussão eletrônica com texturas extraídas do rufar de peles, da alternância de baquetas e do estalido dos pratos. Já em relação as extravagâncias vocais de Maja Ratkje, com quem Mori já dividiu algumas gravações e apresentações, trata-se de uma colaboração entre artistas que operam praticamente no mesmo território, isto é, perseguem o aspecto alienígena, “monstruoso”, dos sons. Se Noble representa o “espelho acústico” da assimetria rítmica proposta por Ikue Mori, Scrumptious Sabotage mostra de que forma Mori e Ratkje, a partir de um diálogo entre iguais, tornam-se o espelho invertido uma da outra.

Em Prediction and Warning, gravado em novembro de 2011, percebe-se que há um regime determinado de posicionamento e inserção de acordo com as construções assimétricas propostas pelos artistas. Como “espelho acústico” de Mori, Noble cria as texturas a partir do rufar veloz dos tambores, procurando realçar os sons digitais e orgânicos que Mori produz com o lap top. Dinâmicas de esvaziamento e preenchimento, baixos e altos volumes, valorização dos detalhes ou produção de massa sonora, favorecendo tanto a saturação por sobreposição, como o diálogo percussivo por subtração de elementos. Não há como determinar de forma deliberada quem mantém o domínio do jogo, sobretudo em momentos  de memoráveis miríades sonoras como “Seismic Waves” e nas perturbadora “Convenction”.

Mesmo em momentos de evidente preeminência — como nas duas faixas que encerram o álbum, “Land Of Famine” e “Inferno”, praticamente conduzidas por Mori, ou na ironia marcial na introdução de “Black Death” e no beat ao final de “Atmospheric Pressure” — é possível detectar o esforço conceitual dos artistas de criar modulações que justifiquem não apenas o caráter brutal da enxurrada sonora, mas algum nível de organização que se aproxime de uma composição. Mas essa característica não compromete a espontaneidade, pelo contrário: em “Montparnasse Derailment”, há uma conversa entre pratos e percussões com erupções pontuais de células do house-techno, indicando, para além de pesquisa e experimentação, a presença indefectível da ironia e da paródia como parte do trabalho.



Após a conversa com seu “espelho acústico”, partimos para o diálogo com o “espelho invertido”. Reconhecida por seus experimentos radicais com processamento de voz e improvisação eletrônica em grupos como o SPUNK e o Fe-Mail, Maja S.K. Ratkje é uma daquelas personalidades multifacetadas, cujo trabalho abrange e tematiza tanto a música contemporânea da primeira e da segunda metade do século (Stockhausen, Xenakis), como as searas particulares da poesia sonora, experimentações eletrônicas, manipulação de fita magnética, pesquisa de timbre, etc, sempre em busca de promover antagonismos terríveis entre os sons estranhos e incômodos. Ora, ninguém mais adequado para uma parceria com Ikue Mori do que outra artista com quem ela pode partilhar a quimera — a “deliciosa sabotagem” — de fazer as máquinas soarem como se estivessem quebradas.

O único som que se pode identificar em Scrumptious Sabotage como pertencendo a alguma estrutura material que não seja o lap top é a própria voz de Ratkje, ainda assim, consideravelmente alterada. Habitamos um território completamente diferente daquele que foi constituído pela dupla Mori/Noble. As peles dos tambores, os ferros e madeiras: de alguma forma os sons eram acompanhados por suas representações orgânicas, passíveis de serem identificadas pelo ouvinte. O mesmo não ocorre em Scrumptious Sabotage, construído integralmente com os lap tops e, ao contrário do construtivismo de Prediction and Warning, opta por promover o vandalismo e a destruição. As faixas se assemelham mais a uma sobreposição de ruínas — a ruína de um sample, de um procedimento — do que qualquer construção, ainda que assimétrica.

Por outro lado, a percussão permanece ignorando, rompendo as amarras da harmonia, seja a harmonia das notas e acordes, seja a harmonia das formas rítmicas. Elemento central do trabalho de Ikue Mori, a ênfase na percussão põe em primeiro plano os aspectos rítmicos dos estrilados de Ratkje. Talvez por essa potencialização do ritmo na música da norueguesa, a dupla exiba uma desenvoltura no que diz respeito à capacidade de produzir o inusitado. Chamo a atenção do leitor para as texturas acidentadas de “Bactrian Camel”, o drone cavernoso em “The Crown” (uma das poucas faixas que mantém um mesmo clima por toda a duração) e, encerrando o disco, a nuvem de graves, repleta de intervenções vocais e ruídos, intitulada “Rivers of Belfast”.


Tomando a trajetória de Ikue Mori pelos apetrechos com os quais ela opera sua linguagem singular — isto é, bateria, drum machine e lap top — é possível distinguir uma tendência a utilizá-los dentro de uma concepção musical regular, ritmicamente contínua e progressiva. Na medida em que ritmo e regularidade se encontram no cerne de grande parte da música que é produzida hoje, a trajetória de Ikue Mori pode ser descrita como um desses esforços incessantes em subverter (ou expandir) a paisagem sonora contemporânea. Contudo, mais do que duas audições formidáveis, Prediction and Warning e Scrumptious Sabotage dão provas suficientes de que sua obsessão pela assimetria não prejudica o diálogo. Ao invés de afastar e isolar, a arte assimétrica de Ikue Mori se abre para a contribuição de outras assinaturas sonoras e se amolda a elas. Esta aparente antipatia, esta personalidade apta a encarar as dificuldades impostas por uma arte que joga com a repulsa e a destruição, paradoxalmente carece da dinâmica colaborativa para dar continuidade a suas ideias.    

Bernardo Oliveira