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quarta-feira, 24 de julho de 2013

Um Passo à Frente: Entrevista com Passo Torto





















Ao contrário da maioria dos grupos que tem um compositor galvanizando o processo criativo, vocês são quatro cabeças com ideias e com poéticas próprias. Como foi o processo para encontrar o ponto de convergência entre interesses diversos?

Romulo: Nós quatro temos personalidade artística estabelecida e diversa, possível de se perceber nos trabalhos de cada um. E não só nós do Passo Torto, mas também os outros integrantes dos outros projetos, dos quais fazemos parte. Acho que o que nos une e que movimenta o nosso trabalho, vem justamente do interesse e da admiração que temos um pelo outro. Mesmo em trabalhos solo, como o meu e o do Rodrigo, deixamos que as ideias de todos impregnem nossas composições. E vem daí a confusão que provocamos em muita gente, da nossa força de produção e da variedade de possibilidades de interpretação que nossos trabalhos permitem e que é para mim, sua grande força.

Quais as principais diferenças conceituais e sonoras entre o primeiro e o segundo disco?

Romulo: A mudança mais perceptível já vem estampada no título do disco, Passo Elétrico. Eletrificamos nosso som. Saem os violões e entram as guitarras do Kiko e Rodrigo e mesmo o baixo acústico do Cabral vem envenenado por pedais de efeito, assim como o cavaquinho do Rodrigo. Dessa eletrificação, nasceram novas possibilidades de composição, influenciando até mesmo as letras, que me parecem um pouco mais nervosas que as do primeiro disco.

Basta escutar Passo Elétrico para chegar à conclusão de que a canção está longe de morrer. O que de fato morreu e o que vive na canção brasileira contemporânea? O que vocês percebem hoje no Brasil nesse sentido?

Romulo: O que nos uniu no início, foi justamente nosso interesse por canção. Essa interpretação mal feita da frase do Chico Buarque é que já devia ter morrido. Entendo perfeitamente o que ele diz. Não foi a canção que morreu, foi a ideia de canção que construímos no século XX que passou a não fazer mais muito sentido neste século e que o Chico, na época de sua célebre entrevista, via mais sentido e novidade no que o rap vinha produzindo. Só acho que deveríamos atualizar essa percepção. Existe toda uma geração surgida nesse século que vem abrindo novos caminhos para a canção e que passa justamente pela experiência sonora e sua familiaridade com o processo de gravação. E que já influenciou o trabalho de nomes sagrados da nossa música como Caetano Veloso e Gal Costa. E influenciou até mesmo o rap, caso do Criolo, cujo disco foi produzido pelo Cabral juntamente com o Daniel Ganjaman.

"O que nos uniu no início, foi justamente nosso interesse por canção. Essa interpretação mal feita da frase do Chico Buarque é que já devia ter morrido."



A música do Passo Torto combina subversão da tradição da canção brasileira, inclinação ao ruído, sujeira, opacidade. É possível traçar linhas com o som que vocês ouvem e gostam? O que vocês gostam de escutar hoje, de ontem e de hoje?

Romulo: Mas é claro que sim! A gente é o que a gente ouve. A nossa particularidade é que a gente desconfia muito do que ouve, hahaha. É muito frequente em todos os nossos trabalhos, não acreditarmos fielmente na vocação de cada canção. Se ela se apresenta como uma bossa nova, sua harmonia será inteiramente destruída até não deixar vestígios da influência que a originou. Se a melodia aponta pra uma certa docilidade, a letra seguirá o caminho oposto, a fim de anular a vocação natural da canção. Dessa constante negação é que nasce o que tem de mais original em nossos trabalhos. Da negação nosso trabalho se afirma. Como compositor, é preciso muita maturidade e confiança para lidar com esse processo de desconstrução do seu trabalho.

O release deixa bem clara a tendência sonora exploratória, substituindo a clareza harmônica por texturas rítmicas, ruídos e sonoridades dramáticas. Por favor, falem um pouco a respeito dos arranjos.

Kiko: De alguma maneira o som do disco traduz o que sentimos pela cidade, a São Paulo de hoje está no disco com certeza. Os ruídos, a polifonia, o ritmo vertiginoso, beleza e feiura aparecendo paralelas. Mas isso não foi uma meta nossa, foi apenas uma consequência estética fruto da nossa própria vivência urbana. Acredito que se morássemos em uma cidade bonita, preservada e com qualidade de vida, a nossa música seria outra.


Em relação à poética, a diferença entre o primeiro disco e o Passo Elétrico me parece evidente. Antes, vocês cantavam a estranheza de São Paulo com um travo meio amargo, meio sombrio. Mas agora há uma irreverência, uma ironia sacana, ainda um clima sombrio, mas irônico…

Kiko: Engraçado, embora o primeiro trabalho fosse melancólico, ao mesmo tempo ele era mais solar, existia mais lirismo, era uma estranheza diurna da cidade. O Passo Elétrico é um diagnostico da cidade doente, não há espaço para esperança, ele canta a morte de SP. É nessa falta de esperança que surge o olhar mais malicioso e sarcástico. Uma espécie de "foda-se", como alguém que sorri pra própria morte, com desprezo.

O Passo Elétrico é um diagnostico da cidade doente, não há espaço para esperança, ele canta a morte de SP. (...) Uma espécie de "foda-se", como alguém que sorri pra própria morte, com desprezo.























Em relação ao trabalho de arte do Kiko, na capa, nas filipetas do Passo: a arte parece fazer parte do som, da ideia transmitida pelo som. Qual a intenção em manter a unidade visual do Passo?

Kiko: Sempre tivemos um compromisso estético, visual, nos preocupamos muito com isso. O Romulo tem muita vivência em artes plásticas. O Rodrigo adora cinema. Tentamos refletir isso nas capas e nos cartazes. Gostaríamos de ampliar mais essas experiências, com arte, vídeo, cinema.

Escutando “Rárárá” me toquei que um samba assim meio de vanguarda é algo que não se faz no Brasil desde algumas experiências de Paulinho da Viola, Candeia e Elton Medeiros (com Tom Zé). Pelo menos dois de vocês (Rodrigo e Romulo) surgiram dentro de um contexto de samba. Como percebem o conservadorismo que perdura hoje nesse gênero que é tipo uma instituição nacional?

Kiko: A idéia do “Rárára” era fazer uma estrutura bem tradicional, lírica. Tenho muita vivência no samba. Conheci o Rodrigo tocando com ele numa roda. A estranheza dessa música é a letra, extremamente sarcástica e violenta. Pensamos muito na maneira de como as pessoas tocam samba hoje. Enxergo um caminho evolutivo entre os grandes sambistas da história: Sinhô, Donga, Bide e Marçal, Ismael, Noel, o Cacique de Ramos e por aí vai. Hoje a juventude que se diz sambista pega esse bastão e joga lá pro passado novamente, como se engessando uma cultura fosse o melhor jeito de conservá-la. Acredito que a tradição vem da invenção e se adapta ao tempo atual para sobreviver. Nenhum jovem vai conseguir imitar o Candeia, nem o Bob Dylan, tem que ser honesto consigo mesmo e assumir o "hoje" no seu trabalho. Ao mesmo tempo falamos sobre samba porque temos vivência nesse gênero, temos muito respeito, embora pareça que não.

"Nenhum jovem vai conseguir imitar o Candeia, nem o Bob Dylan, tem que ser honesto consigo mesmo e assumir o "hoje" no seu trabalho."



Por favor, falem um pouco sobre como tem sido as apresentações de vocês, e se planejam algo para o Quintavant, nos próximos dias 28 e 29?

Romulo: As apresentações tem sido especialmente prazerosas pra nós todos. Passo Elétrico é um disco complexo de se fazer ao vivo, por conta da polifonia rítmica dos arranjos, das muitas mudanças de efeitos numa mesma música e da junção de todas essa vozes produzidas por cada instrumento, uma espécie de maquininha que só se realizam plenamente quando está em perfeito estado de funcionamento. E é o que tem acontecido nos últimos shows, a ponto de já nos sentirmos a vontade de mudar o funcionamento dessa máquina, levando os arranjos pra caminhos ainda mais inesperados. É o que pretendemos fazer no Rio de Janeiro e se nos divertirmos como nos últimos shows, tenho certeza que a diversão se espalhará pela platéia.

Depois do “passo torto” e do “passo elétrico”, pra onde está caminhando o interesse de vocês? Qual é o próximo passo?

Romulo: O próximo passo será sempre o passo adiante. O passo que mudará o passo anterior. Diferente, mas sempre torto!























Perguntas elaboradas por Mariana Mansur, Fred Coelho, Juliano Gomes e Bernardo Oliveira

Passo Torto – Passo Elétrico (2013; YB, Brasil)

























O novo trabalho do grupo Passo Torto é escuro. Brilha de forma intensa, mas se mostra um brilho opaco, que rompe a noite mas faz parte dela. Passo Elétrico é um disco em que o frio que cruza as cidades nesses dias de julho fazem sentido sonoro. Escrevo esse texto por acaso de São Paulo e ao andar pela Avenida Paulista todo o som desses dias se encaixam na cornucópia de riffs, distorções e cordas percussivas que atravessam suas composições. As quedas em buracos, os silêncios, as tempestades, os desencontros dos narradores de cada composição (“eu vim determinado a lhe dizer adeus”) ganha massa sonora e poética que incendeia, taca fogo. Mas, mesmo assim, faz escuro nesse novo passo.

Os prédios dessa cidade-mundo que é o centro do cerco morrem, escarram, têm varizes. A cidade te engole, devora o que você tem. Não há meio termo e, em “O Buraco”, o tom profético sobre nosso tempos de convulsão é certeiro: “te avisei, nada vai parar”. A São Paulo pujante do progresso sem fim ganha o contra-discurso tenso, duro e malicioso da banda. Composta por quatro nomes ativos da atual cena musical paulista, Rodrigo Campos, Romulo Fróes, Kiko Dinucci e Marcelo Cabral se desdobram em diversos projetos solos (Rodrigo e Romulo) e trabalhos paralelos que expandem uma rede intensa de produção. Uma rede que vai do rap de Criolo ao experimentalismo dos MarginalS, incluindo no percurso a pedrada musical do Metá Metá. 

É importante notar que o samba, algo central nas carreiras de Rodrigo, Romulo e Kiko, principalmente, tem um lugar discreto porém fundamental na sonoridade tensa do Passo Elétrico. Se nos discos dos três a percussão é elemento fundamental para um novo caminho do velho estilo tradicional brasileiro, aqui são as guitarras, contrabaixos e violões que dão o tom percussivo. Faixas com duas três guitarras, em polifonias de efeitos e riscos, reinventam o instrumento dentro da nossa música recente. Apenas na sensacional “Rárárá” é que temos a escola mais clássica do samba. Mesmo assim, é um samba sinistro, em que a pegada sagaz do cavaco em contraponto à guitarra rascante são amarrados por uma melodia sinuosa e uma história de sexo, morte e gargalhada. Malandragem pura na beira do desbunde cachaceiro e da marofa impregnando o ar. Um samba que nos leva a outra dimensão.

Mas a escuridão do Passo Elétrico é também uma escuridão do segredo, da conversa muda pós-sexo, como em “O símbolo”, diálogo interno do amante sobre o x da questão, parte feminina que nos encara logo de manhã e põe em um plano surreal essa conversa que todos nós já tivemos. Se bato de frente, provoca fadiga. Como o som deles, o símbolo é raivoso, é faminto, é incisivo. São esses pontos escuros de nossa existência que, faixa a faixa, vão constituindo um mosaico de insanidades, de agonias, seguindo uma escola lírica rara entre nós. Não há concessões nem quando se declara amor, como em “Helena”, “A não se que me ame” ou “Isaurinha. São canções que transtornam lugares-comuns do amor no cancioneiro brasileiro. Em “Isaurinha”(que me lembra “Isaura”, composição de Herivelto Martins e Roberto Roberti, gravada por João Gilberto), chega-se a cantar que “tenho vergonha do amor”. Quem tem coragem de afirmar isso nesses tempos? São quatro homens/quatro vozes/quatro narradores que se colocam em um espaço de desconfiança, de putaria, de dissimulação do amor. Caso raro que dá beleza — e desconforto — ao disco. 

Já foram muitas as ótimas resenhas sobre Passo Elétrico. Essa aqui é apenas um convite ao show deles que acontecerá no Rio nos dias 28 e 29 de julho, para deleite dos cariocas. As cordas elétricas e acústicas que eles cruzarão no palco da Audio Rebel precisam ser vistas ao vivo, em ação, para que suas sutilezas e seus arranjos minimalistas, complexos e belíssimos sejam confirmados por nossos olhos. 

Escolho para fechar esse texto um faixa em especial do disco. É “Passarinho Esquisito”.  Subvertendo um tema clássico da MPB, esse passarinho é estuprador. Ele não é o “Sabiá” que me levará de volta do exílio, como a ave que só gorjeia “lá”. Nem será o “Passarim” que quis pousar, não deu, voou. Esse “passarinho esquisito” é um animal transtornado, que tenta se enfiar na vida do narrador da canção, come pelos do nariz, finge que é o outro. Tenta ser irmão, pai, mãe, espírito santo, mas, segundo a frase genial “não é bastante estrangeiro” para tanto. Não ser bastante estrangeiro resume bem o sentimento que surge das minhas audições do Passo Elétrico.  Que lugar é esse que a banda se instalou para olhar para todos nós? Que cidades, que pessoas são essas que caem no buraco do mundo para, através do escuro, acharem a luz? Somos todos passarinhos esquisitos, em pleno vôo, sem saber onde iremos parar. Para os tempos atuais, Passo Elétrico é a trilha sonora essencial. 

Fred Coelho



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Passo Torto: antes de tudo, trata-se de um modo. Antes de qualquer ruído, um aviso de rota, uma indicação de maneira, um sinal de forma: o caminho aqui não é reto, é irregular. Ao mesmo tempo em que o passo é a unidade e a medida é compartilhada (tradição da canção), a qualificação aponta para um modo desviante. Uma postura crítica a priori, nessa nomeação que narra uma espécie de conceito, de marca de nascença. Passo Torto nasce dessa doce condenação: atuar dentro de um espaço excessivamente marcado e dentro dele seguir um caminho próprio. Em Passo Elétrico, se não há a aguda contradição do disco anterior entre uma estética sonora do “bom gosto acústico” e uma abordagem violenta desse material, assim como a constituição de seu imaginário poético, há agora um aprofundamento na criação de um espaço absolutamente próprio e novo, gravando à força seu nome na acidentada calçada da canção brasileira.

Essa “autoconsciência” não ameaça a construção de um universo estanque na medida em que cada canção exala a energia necessária para tal, mas por dentro. O caminho não é, no corpo das canções, da teoria, ou melhor, do exterior, caso fossem canções limpas, estáveis, que são envenenadas por ruídos, distorções e dissonâncias. Não. Talvez seja justamente o contrário: o coração das faixas é impuro. Pode ser um grito, um respiro, uma quase sirene, uma conversa de guitarra. Mesmo a voz sendo o único elemento que parece conseguir se safar da torrente sonora que arrasta e debate as cordas, é difícil localizar-lhes um centro (apesar da recorrente circularidade): o refrão de "Isaurinha", o “ê” de "Tempestade", os nomes próprios. São canções que constituem uma massa. Matéria essa que cultiva os contornos e os estende, investigando-lhe os limites. Não raro há uma espécie de sensação de combate (marcadamente nos duelos das cordas em estéreo). Cada timbre ameaça. A morte toma várias formas: sumir, adeus, cair, definhar, naufragar,  entre muitas outras. E o som é também todo esse flerte com um desparecimento, por subtração (a maior, da percussão, abrindo uma espécie de “deficiência” fundadora e também libertadora) e excesso ou confusão (no final de "Banquete", ou mesmo de "Helena"). O flerte é com esse ponto onde a forma se desfaz: seja no universo poético atipicamente sólido para um grupo de compositores (dificilmente se adivinha de quem é a letra ou música) ou nos arranjos e (des)organização de sons.

"Tempestade" começa: “Quem ouve essa voz/ diante dessa voz/ parada entre nós/ reconhece/ o som/ Permanece/ som/afogado/antes de virar/felicidade/prende todo ar”. Esse recado direto que dá início a que me parece a faixa central de Passo Elétrico, revela uma segurança incomum que marca todo o trabalho, no sentido de um saber sobre onde se está pisando (ou caindo) e que efeitos isso tem. Essa manobra que poderia cair facilmente num pedantismo, na verdade revela uma postura aberta com a qual esse conjunto de canções nos encara. Por mais que a opacidade esteja sempre rondando, que os anteparos se coloquem nas ligações entre os materiais e os personagens (explorando os limites de um reconhecimento de um campo comum), não há segredos, não há truques. Se não abundam adjetivos ou digressões sonoras é porque o universo aqui é claramente da ordem do concreto. Cada elemento significa ele mesmo.

Nos momentos de representação ou mesmo de “encenação”, onde letra e música convergem numa imagem única (a explosão de "Banquete", o tic tac de "O Buraco") essa inventividade da paisagem sonora torna essa passagem de operação de sentido fluida. A máquina não para pra fazer uma imagem. Cada nascimento de um movimento novo nas canções, amparadas pelo notável  trabalho de sustentação e propulsão de Marcelo Cabral, parece vir dessa magma, desse borbulhar de cimento ainda quente, ainda em movimento,  como na segunda parte de "Passarinho Esquisito" e nas cordas que dividem "A Não ser que Ame" no meio. O peso conceitual não se transforma em arbitrariedade afinal.

Dois lugares inescapáveis são traçados em Passo Elétrico. Primeiro: a circularidade, a impressão de uma dificuldade de progressão. O tempo é então de suspensão, de rodear um centro, de variar sobre uma área específica, e à cada volta, adicionar ou subtrair. A linha evolutiva, mesmo com as eventuais variações e divisões clássicas de A e B, parte maior, parte menor, a sensação é sempre de permanência (não por acaso o signo da sirene me é sugerido diversas vezes). Um desvio no tempo afinal, que dá solidez a esse universo igualmente coerente e fugidio, violento e suave. Tudo se impõe com a mesma força de infiltração, como quando desaparece . Essa "deslocalização" hipnótica da forma circular, essa insistência gera isso.

Em segundo lugar, o ausência de percussão. Por todo o disco, o incômodo permanece, pulsa o tempo todo uma falta, na medida em que o ritmo está ali, ensejado, os pulsos aceleram, mas o ponto do passo, a marca, é uma ausência, um corte mesmo. De alguma maneira esse fantasma nos acompanha durante toda a audição. É como que a forma dessa figura de morte tanto perseguida, como que um rock que perdeu a perna, manco e desfalecido, mas obstinado. Esse vazio abre espaço pro protagonismo das cordas, e pra sua função rítmica. Mas é algo que nunca se naturaliza. Aliás, se o primeiro disco dava entender que o horizonte era dessa ordem, o possível equívoco se soterra completamente no Elétrico. O domínio aqui é o do artifício, do inorgânico, que por final se mistura, se dilui, e constitui essa nova ordem, essa matéria rara que constitui esse capítulo decisivo na música brasileira hoje, esse doce impasse. 

Se a “canção morreu” é precisa habitar o mundo dos mortos. E nesse mundo, Kiko Dinucci, Marcelo Cabral, Rodrigo Campos e Romulo Fróes, parecem completamente à vontade. Ficamos então à espera de sua volta de lá. Ansiosos.

Juliano Gomes


sexta-feira, 19 de abril de 2013

Marginals + M. Takara — Ao Vivo Espaço + Soma (2013; s/g, Brasil)

























Diante de uma gravação classificada de boa consciência como bootleg, pretendo que os parágrafos abaixo reúnam argumentos não só para destacar o que há de musicalmente relevante nestas sessões de improviso, mas indicar no mesmo passo de que forma o bootleg reaparece hoje completamente renovado por uma série de condições e estratégias. Trata-se portanto de uma abordagem que busca entrelaçar alguns aspectos estéticos desta colaboração com a detecção de práticas renovadas de registro e distribuição.

Formado por Thiago França (Metá Metá, Criolo), Marcelo Cabral (idem) e o baterista Anthony Gordin, o MarginalS, responsável por um dos discos mais interessantes de 2012, convidou alguns músicos para uma residência no Espaço + Soma em SP. Entre 2010 e 2011, o trio recebeu artistas como Guizado, Thomas Rohrer, DJ Marco, Lurdez da Luz, Criolo e Maurício Takara. Consta que todos esses encontros serão editados e lançados em 2013, começando pela participação de Takara e prosseguindo com Thomas Rohrer e a dupla Guizado e DJ Marco. Para além do díptico precariedade/raridade que norteou a história do bootleg até então, Marginals + M. Takara Ao Vivo Espaço + Soma alia a gravação de boa qualidade, com performances de alto nível e distribuição gratuita.

Me explico. A origem do termo bootleg atravessou o século XX à força de deslocamentos semânticos e apropriações políticas que se desdobraram em direções específicas durante o período de ouro do disco: associado primeiramente às práticas de contrabando e falsificação de mercadorias, para posteriormente nomear a prática criminosa dos selos independentes, até, finalmente, tornar-se sinônimo de item raro nas discotecas especializadas. No Brasil, o bootleg aportou sob o signo da precariedade e da raridade do “disco pirata”, que, bem diferente do produto que é vendido hoje nos camelôs, levava aos aficcionados registros de concertos com qualidade duvidosa — entre os mais conhecidos estão o California Jam do Deep Purple e o Live At Last do Black Sabbath.

Evidentemente, não é de hoje que os fãs gravam shows de seus artistas prediletos, nem que os próprios artistas gravam “por esporte”, experimentação, exercício descompromissado, às vezes despojado, às vezes com rigor ímpar — como é o caso das gravações impecáveis legadas por Itamar Assumpção, que se transformaram nas duas sequências do Pretobrás. Alguns fatores, porém, nos levam necessariamente a considerar a emergência de estratégias e práticas que conferem um outro significado ao bootleg, muitas das quais presentes neste trabalho que uniu o improviso do trio MarginalS às intervenções de Maurício Takara. Trata-se de um trabalho que se apresenta simultaneamente como sintoma e ponta-de-lança no contexto de produção paulistano.

Em primeiro lugar, esta modalidade de bootleg herda somente o nome da prática ilegal ou de procedência duvidosa. Ao contrário, geralmente o autor detém os direitos da sua obra, embora neste caso trate-se de um encontro dedicado ao improviso. Ou seja, aqui não se percebe todo o peso da ilegalidade jurídica que reveste o bootleg como um dispositivo “fora da lei”, que jutificaria seu caráter de “raridade”. É perceptível a forma específica através da qual a criatividade, a organização e a articulação dos artistas entra em estado de fusão — forma semelhante se observa nas Duas Sessões lançadas no início do ano por França, Sérgio Machado e Kiko Dinucci, que incluem a Dada Radio Session e as Fun Fun Sessions. (Dinucci, inclusive, é o autor da capa deste bootleg).

Segundo, na medida em não há necessidade de burlar os dispositivos jurídicos que protegem o direito autoral, essas gravações ocorrem com o aval dos músicos envolvidos, o que implica em um cuidado maior até mesmo na hora da mixagem — lembrando que, se muitos bootlegs foram tirados da mesa de som, não esqueçamos dos inúmeros que foram registrados com gravadores de mão. A qualidade do encontro entre Takara e o MarginalS é não só evidente, como também atesta que foi concebido estrategicamente como um produto bem acabado. A distribuição nas redes sociais se encarrega de disseminar o conteúdo, provendo divulgação e incentivando a procura pelos concertos. A qualidade técnica e criativa desta colaboração deriva, assim, de uma prática abundante e atenta. 

Com o exercício tornando-se corriqueiro, consolida-se uma cultura da gravação, que em se emancipando dos grandes eventos e dos cronogramas de lançamento das gravadoras (disco de Natal, disco de Páscoa, etc.), libera não só o artista, como também o público, para uma outra relação com a música. Vale notar que mesmo um artista ousado como Caetano Veloso, porque se inscreve em uma dinâmica de produção e divulgação centrada sobre o calendário do grande mercado, acaba por expor seu trabalho de forma desigual, com prejuízos evidentes para a percepção geral da obra. Não foi por mero acaso que a maioria do público do show relativo ao Abraçaço entoou em coro “Um abraçaço” e até mesmo “A bossa nova é foda” (dois dos carros-chefe executados na rádio e distribuídos nas lojas durante o período do Natal), mas demonstrou desconhecer clássicos como “Triste Bahia” e “Escapulário”. À medida em que produção contínua dita a cadência da divulgação, trabalhos como esta colaboração aparecem sem aviso prévio. 

Uma quarta qualidade desse "bootleg renovado" é que, na medida em que os antigos se formavam como dispositivo de consolidação do "gosto" — pois se constituiam como material “para fãs” — nesta colaboração a potência criativa dos artistas envolvidos opera no limite. A configuração sonora, portanto, combina as diversas tendências que cada um dos membros carrega como parte de sua formação. Thiago França destila o sopro robusto, com ecos e ressonâncias do timbre de Coltrane e das escalas orientalizadas de Mulatu, não se furta a utilizar a flauta e o EWI, além de recorrer aos efeitos mais diversos no sentido de abrir o leque de timbres e possibilidades. Takara distribui sua participação pelos sintetizadores e o vibrafone, enquanto o baixo acústico de Marcelo Cabral traça um diálogo intermitente com a bateria de Tony Gordin. Estamos no epicentro do mais ousado e exploratório improviso jazzístico brasileiro, turbinado pelo rock, o funk, o ethiojazz, e outras vertentes que alimentam o jazz contemporâneo.

Por fim, vale enaltecer a disposição dos artistas em fundar seu trabalho sob estratégias instáveis e, ao mesmo tempo, aberta a novas possibilidades de interação entre artista e público. Em uma crítica ao primeiro disco do trio, em 2011, busquei ressaltar a produtividade de alguns artistas do contexto paulistano, que não só multiplicavam colaborações, como também perseguiam outro espectro de interesses musicais. Desde então, as tensões permaneceram e se acirraram, tanto no que diz respeito às discussões sobre direito autoral, chegando até mesmo ao questionamento da relevância da “cultura” que é produzida hoje no Brasil. O fato de que muitos desses questionamentos remetem diretamente aos conflitos entre formas consolidadas de formação, produção, controle, crítica e distribuição e a emergência de uma sensibilidade que persegue outras direções, indica que não existem perspectivas pré-definidas nesta questão. A produção musical (e cultural) no Brasil é motivo de uma disputa que pode ser descrita a partir da imensa justaposição de mentalidades, necessidades e privilégios, repleta de vencedores parciais e prêmios relativos.

Além de uma audição formidável, MarginalS + Takara ao vivo é também uma resposta e um movimento — parcial, limitado, contundente — no tabuleiro da música do Brasil. 

Bernardo Oliveira