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terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Música que veio da África em 2014, por Lúcio Branco

Aby Ngana Diop


































Antes de tudo, peço perdão pelo considerável espaçamento entre as minhas contribuições ao Matéria. Não fugindo à pauta das minhas resenhas publicadas no blog, vou tentar, de algum modo, compensar essa longa ausência com uma lista dos melhores lançamentos do ano no segmento da música africana. Um ponto que salta à vista nesta seleção é a presença de artistas nigerianos, dado nada surpreendente para quem é minimamente familiarizado com o universo em questão.

2014 segue a tendência recente de valorização da música produzida no Continente-Mãe desde a década de 1960. Coletâneas de raridades vintage e lançamentos de veteranos que entenderam que manter a integridade artística, para além dos padrões ditados pelo famigerado escaninho da “world music” no mercado, é a senha. (Um parêntese: talvez falte uma discussão mais a sério sobre os efeitos disfuncionais que arranjos equivocados e outros procedimentos infelizes produziram à música africana justamente no primeiro “surto” da sua maior popularidade, nos 1980; e não só nesse filão musical, me parece – seria um Mal da Década?) Resumindo: essa integridade atende à demanda de uma geração que aprendeu a se relacionar com música graças à internet, que lhe permitiu o acesso a uma produção anteriormente restrita ao circuito africano e, a posteriori, praticamente ao público europeu, em excursões eventuais.

Comecemos pelos majoritários nigerianos...

O documentário Finding Fela, até o momento apenas exibido na programação de festivais de cinema no Brasil, rendeu uma trilha sonora que reúne faixas que comumente não figuram nas coletâneas de Fela Kuti. E o mérito dos responsáveis pela seleção não é pequeno. É uma amostragem que introduz bem ao universo do músico, o que aponta para a abrangência criativa e numérica do seu repertório. Talvez o mesmo não se possa dizer com relação ao filme, cuja linha narrativa é muito calcada no musical da Broadway que acabou por dar maior projeção ao nome e à lenda do síndico da Kalakuta Republic nos últimos anos. Uma “estratégia de propaganda” que muito provavelmente não seria aprovada pelo próprio. É preciso dizer que a condição de existência da produção do documentário foi ditada pelo êxito do musical, daí a sua inevitável narrativa metalinguística.




E por falar em afrobeat e “cinebiografia”, Tony Allen, com seu Film of life, faz mais do mesmo, o que significa, nos seus termos, nunca ser o mesmo. Aquele que é tido – e não por poucos – como o maior baterista em atividade no planeta, dá provas, mais uma vez, de que o seu compromisso é com a inovação contínua nas 13 faixas do álbum. Falamos em afrobeat e já nos corrigimos: com as suas baquetas, Tony Allen ainda toca afrobeat, mas, desde que se evadiu do Africa 70, em 1978, não é mais dentro das fronteiras do gênero que concebeu com Fela, nove anos antes, que ele assina as composições dos seus trabalhos recentes – talvez apenas os seus primeiros álbuns possam ser enquadrados no afrobeat. A lista de convidados de Film of life tem uma dupla de nomes de peso: Manu Dibango e Damon Albarn. Ambos são responsáveis pelos melhores momentos de um álbum que é dançante da primeira à última faixa.



Ainda no domínio dos veteranos nigerianos, o clássico Orlando Julius lançou, este ano, Jayiede Afro. Ele faz, agora, o mesmo que Mulatu Astatke fez há alguns anos atrás: juntou-se aos ingleses Heliocentrics para lançar um álbum só de faixas inéditas. Absolutamente fiel ao estilo que o consagrou como um dos grandes da fusão do highlife com o soulfunky na Nigéria, Orlando surpreende com o fôlego que apresenta aos 71 anos. A típica percussão iorubá que faz a base para o seu canto e o seu sax em Jayiede Afro, por mais que inevitavelmente ainda se relacione com a cultura rítmica que gestou o afrobeat, não faz dele um nome na linhagem musical criada por Fela Kuti e Tony Allen. O jazz, gênero que, juntamente ao highlife e ao soulfunky formam o tripé do afrobeat, não é o elemento estruturante das composições repetitivas de Orlando Julius. (Isso é a constatação necessária da marca do seu estilo, e não uma restrição a ele – muito pelo contrário.) Boa parte de Jayiede Afro é instrumental, o que dá prova da competência dos Heliocentrics como banda de apoio de veteranos da relevância dos mencionados.




O mestre Peter King teve o seu magistral Omo Lewa, de 1976, relançado este ano. Fontes internas nos informam que o ainda vivo (embora bem doente) King é dos poucos músicos nigerianos que não celebram a memória de Fela Kuti. Peter King cultiva o ressentimento por ter sido ofuscado pelo criador do afrobeat que, após atingir o status de lenda já em vida, conseguiu colocar todos os seus concorrentes em segundo plano. A indústria e o público perderam a oportunidade de conhecer, mais a fundo, a obra de um mestre que também soube fundir soulfunky e jazz como ninguém. A ausência do viés político e a presença tímida do highlife, talvez tenham comprometido, em algum grau, o apelo da música de Peter King junto a uma faixa mais extensa de apreciadores. Uma injustiça que o relançamento tardio de Omo Lewa, esperamos, repare.




Hungry Man, do Keyboard, dueto nigeriano Keyboard formado por Broderick Majwua e Isaac Digha, pelo que se levantou em pesquisas, foi lançado em 1978. Que se diga logo: é uma obra-prima. Fazendo jus ao nome da banda, os teclados são o mote das seis composições desta raridade felizmente relançada na íntegra. E os arranjos de guitarra e metais só fazem o conjunto da obra ir além, itinerário e destino certos de toda música que é crucial. A sonoridade é muito similar à de gravações de artistas locais como Tony Shorby, C.S. Crew e Pazy & the Black Hippies, ou de um ganês como Gyedu Blay Ambolley. Repito: Hungry Man é um monumento.




Atendendo pela mesma dimensão criativa, e vinda da safra dos 1980, temos a nigeriana Aby Ngana Diop com o seu Liital, um ataque polirrítmico em grande parte orientado por djembes em ponto de tensão máxima. Caso a conheça (e muito provavelmente a conhece), David Byrne deve tê-la na galeria dos seus músicos africanos prediletos. Talvez o PIL, de John Lydon, possa ser apontado da mesma maneira, caso levarmos em conta o uso de sintetizadores, aqui. O rótulo fajuto de “world music” é nocauteado em cada nota/batida/modulação vocal de Liital. O canto de Diop e o coral que a acompanha complementam a complexidade rítmica dos djembes numa trama indiferente à noção ocidental de diálogo harmônico entre vocal e instrumentação.



E o que dizer do recém-descoberto William Onyeabor? Em 2014, este artista adotado pela crítica e por aficionados em música africana foi contemplado com duas compilações que revisitam a apresentam, num espectro mais amplo, a sua obra agora saída de vez da sombra: CD Box Set e Boxset 1. O mestre nigeriano da eletrônica virou até tema de documentário que explora a faceta do seu relativo ostracismo artístico no passado e o seu atual e voluntário ostracismo pessoal no presente. O artista, encontrado após intensa investigação do manager da Luaka Bop, selo que tem lançado sua obra, não quer dar entrevistas sobre nenhum desses dois momentos da sua vida. Sua trajetória tão genial como obscura rendeu o documentário Fantastic Man.




Voltando ao afrobeat, tratemos de Seun Kuti, que, neste 2014 que se encerra, apresentou-se mais uma vez em solo brasileiro por ocasião da turnê de um novo álbum que, talvez, destoe dos anteriores em alguns aspectos. Porém, não se deixe enganar: é um trabalho, em grande medida, fiel ao estilo consagrado pelo seu pai. A adoção de um gênero como o rap em duas faixas tem o dedo do produtor Robert Glasper – que é, também, pianista de jazz. Para os puristas, talvez o músico de 31 anos brilhe menos em A Long Way to the Beginning. Longe de ter fugido do ritmo que é a razão de ser da sua carreira (este é, sem dúvida, um álbum de afrobeat), Seun deixa claro desta vez que conhece e quer explorar outras searas musicais. Fã declarado da cultura hip hop, ele já parecia indicar, há tempos, impaciência por abraçá-la de algum modo. Mas não o faz ele mesmo. “IMF” tem a participação do rapper M1, da dupla americana Dead Prez. Em “African Smoke”, Seun cede a vez para o MC ganês Blitz The Ambassador, com quem, em troca, colaborou na gravação de “Make You No Forget” de seu álbum Afropolitan Dreams, lançado simultaneamente com Long Way. “Ohun Aiye” é mesmo highlife, só que num compasso mais acelerado que o usual, como é do feitio da Egypt 80. Dispensável dizer que “Kalakuta Boy” é autobiográfica – porém, não que é uma das melhores faixas do álbum. A Kalakuta Republic, a comuna autônoma fundada por Fela Kuti no coração de Lagos, foi o lar de Seun desde o nascimento até poucos anos atrás. A força dos metais da Egypt 80 faz voarem alto “African Airways” e “Higher Consciousness”. A cantora germano-nigeriana Nneka faz intervenções em “Black Woman”, a faixa mais lenta das sete do álbum. Só muita má vontade poderia acusar essa presença pop de “concessão” a algo que pudesse merecer o rótulo de “world music” – como, de fato, tantas vezes já fez o seu irmão mais velho, Femi, ao longo da carreira. Em suma: pode-se dizer que, em 2014, o afrobeat ganhou mais um trabalho à altura das aspirações do seu criador.



Agora, saindo do terreno nigeriano...

Apiafo, da Vaudou Game, para um crítico mais movido pela má vontade do que qualquer outro critério mais proveitoso de avaliação é de um oportunismo autoevidente. A audição rápida do álbum remete automaticamente às coletâneas recentes da Orchestre Poly-Rythmo de Cotonou, ou, ainda, à magistral African Scream Contest, do selo alemão Analog Africa, lançada em 2008 e que colige algum afrobeat e, principalmente, a (re)apropriação do soulfunky produzido no Togo e no mesmo país de origem da Poly-Rythmo: Benim. (Inclusive, é mais do que esperado o lançamento do prometido segundo volume de African Scream Contest.) Não há mistério mesmo quanto às fontes sonoras dessa banda que segue a tendência da Owiny Sigoma Band, ao reunir músicos africanos e europeus. O que surpreende é que o espectro da Vaudou Game é mais amplo: cabe nele, também, referências explícitas ao ethio jazz e, ainda no registro do soulfunky, à queniana Matata, referência de peso para qualquer interessado pelo resgate do “elo perdido” da produção africana dos 1960/70/80. O que reforçaria as restrições àquilo que apontamos como suposto oportunismo no atual momento de valorização dessa produção. Mas que se ache o que quiser. O fato é que Apiafo é mais que digno de menção. Os cacoetes podem ser por vezes até óbvios (no vídeo de “Pas Contente”, até o uniforme de palco com o qual a Poly-Rythmo se apresentava nos 1960/70 é emulado), mas se trata de um trabalho que reúne 12 faixas que só atestam o talento dos seus criadores em reeditar um som ao qual tiveram acesso graças à atual voga de valorização dos sons afro. Fenômeno – supõe-se – curiosamente extensivo até mesmo aos músicos nativos da nova geração. O crítico mais implacável não poderá deixar de concluir que essa geração intercontinental está mesmo antenada com uma tradição cultural que, agora, pode ser avaliada com um senso de medida mais proporcional ao que merece a sua envergadura.




O desert blues, ou tuareg blues, comparece na nossa lista com três títulos: Akal Warled, de Irmarhan Timbuktu, The Tapsit Years, de Terakaft, e Emmaar, do mais popular Tinariwen. Diversa nas suas semelhanças, a abordagem contemplativa sobre o Saara está no trio de álbuns com mais ênfase ora na marcação rítmica das palmas, ora nos solos de guitarra. Arranjos acústicos também compõem a fórmula – no caso do Tinariwen, é mais frequente que nos seus trabalhos anteriores.




O Zamrock, gênero genuinamente zambiano, é representado por dois relançamentos: Day of Judgment, original de 1976, é o primeiro álbum da Ngozi Family, banda liderada pelo guitarrista e vocalista Paul Ngozi, falecido ano retrasado, e Give Love To Your Children, de Musi-O-Tunia. Rikki Ililonga, talvez o mais célebre representante do Zamrock, é o segundo homem no disco. Ao contrário de Paul Ngozi, Ililonga está vivo e em plena atividade.




Da Etiópia, temos um relançamento de 1977, o quase integralmente instrumental (há um discreto coro feminino numa das faixas) Tche Belew, de Hailu Mergia & The Walias. A Walias Band, aqui no apoio a Hailu Mergia, contava entre seus integrantes com nada menos do que Mulatu Astatke e Mahmoud Ahmed. Mas os serviços vocais do genial Ahmed não foram escalados nas 10 faixas de Tche Belew. Neste álbum está a clássica “Musicawi Silt”, regravada pela norte-americana Antibalas Afrobeat Orchestra quando ainda atendia pelo nome de Daktaris, no seu único álbum, Soul Explosion, de 1998. A série Éthiopiques, em seu nº 29, traz Kassa Tèssèma num apanhado de treze faixas do seu som introspectivo, feito de uma só trama soturna de voz e poucas cordas.



O Congo é representado especialmente na nossa lista pelo álbum novo dos Kasai Allstars. O seu título é um aviso dos mais necessários e eloquentes contra qualquer inclinação a folclorismos e culturalismos com os quais se costuma enquadrar, entre nós, a cultura africana: Beware the Fetish. A rigor, é uma lição de casa ainda não feita por nossa tradição crítica na área musical. Não temos dúvidas de que, quando ela finalmente se iniciar, as kalimbas eletrônicas dos Kasai Allstars soarão gratas. Beware the Fetish é um álbum que se encaixa na categoria de melhores do ano, independente de gênero. Os destaques ficam por conta de “He Who Makes Bush Fires for Others”, sua quinta faixa, cuja linha repetitiva de guitarra hipnotiza, e a última, “The Ploughman (Le Laboureour)”, que dá a impressão de que a caixa de som pode estourar a qualquer momento.


Mas saiba o leitor que há mais, tanto nesta lista, como para além dela. Nela, propriamente, comparece o que mais sobressaiu conforme o meu gosto – o que é, de todo, uma limitação. Espero que ele esteja, até onde alcança, conforme o seu.

Aqui vai a lista, em ordem alfabética:

Aby Ngana Diop – Liital (2014)

African Gems (2014)

Beyond Addis: Contemporary Jazz & Funk Inspired by Ethiopian Sounds from the 70′s (2014)

Dexter Johnson & Le Super Star de Dakar – Live à l’Étoile (2014)

Fela Kuti – Finding Fela: Original Motion Picture Soundtrack (2014)

Francis Bebey – Psychedelic Sanza 1982-1984 (2014)

Hailu Mergia & The Walias – Tche Belew (1977, Reissue 2014)

Imarhan Timbuktu – Akal Warled (2014)

Kasai Allstars – Beware the Fetish (2014)

Kassa Tèssèma – Éthiopiques 29: Mastawesha (2014)

Kassé Mady Diabaté – Kiriké (2014)

Keyboard – Hungry Man (2014)

King Ayisoba – Wicked Leaders (2014)

Les Ambassadeurs du Motel de Bamako – Les Ambassadeurs du Motel de Bamako (2014)

Malawi Mouse Boys - Dirt is Good (2014)

Mamadou Diabaté – Griot Classique (2014)

Musi-O-Tunya – Give Love to Your Children (2014)

Muyei Power – Sierra Leone in 1970s USA (2014)

Ngozi Family – Day of Judgement (1976, Reissue 2014)

Noura Mint Seymali – Tzenni (2014)

Orlando Julius & The Heliocentrics – Jaiyede Afro (2014)

Peter King - Omo Lewa (1976, Reissue 2014)

Riverboat Records: Music from the Source (2014)

Seun Kuti & Fela’s Egypt 80 – A Long Way to the Beginning (2014)

Sidiki Diabaté & Toumani Diabaté – Toumani & Sidiki (2014)

Sierra Leone’s Refugee All Stars – Libation (2014)

Survival - Simmer Down (1977, Reissue 2014)

Terakaft – The Tapsit Years (2014)

The Funk Ark – Man is a Monster (2014)

The Rough Guide to African Blues: Third Edition (2014)

The Rough Guide to the Music of Mali (2014)

The Souljazz Orchestra - Inner Fire (2014)

Tinariwen - Emmaar (2014)

Tony Allen – Film of Life [Deluxe Edition] (2014)

Vaudou Game – Apiafo (2014)

Verckys et l´Orchestre Vévé – Congolese Funk, Afrobeat & Psychedelic Rumba 1969​-​1978 (2014)

William Onyeabor – Boxset 1 (2014)

William Onyeabor – CD Box Set (2014)

Woima Collective – Frou Frou Rokko (2014)



terça-feira, 29 de abril de 2014

Malawi Mouse Boys – Dirt is Good (2014; IRL, Malawi/Reino Unido)

























Um álbum lançado este ano na República do Malauí é capaz de provocar elucubrações insuspeitas. Uma delas, por exemplo, sugere que basta ouvir as suas primeiras notas – e tendo em mente o seu título – para se lançar a um esforço de adivinhação de qual seria o destino do rock caso suas diretrizes iniciais fossem outras. Ou, indo mais direto ao ponto: se, em vez do rock’n’roll clássico formatado por Chuck Berry, o universo criativo de que tratamos fosse mais guiado pelo senso rítmico de Bo Diddley, artista cuja influência, apesar de imensa entre músicos, ainda não se traduz em suficiente reconhecimento crítico ou adesão de público. O elemento em questão é a sujeira, a mesma que nomeia o segundo álbum dos Malawi Mouse Boys. Neste, trata-se de apenas um dos seus ingredientes sonoros. Um outro é a presença simultânea da linha melódica em arranjos simples que contam com assovios e corais precisos que recortam as suas 15 faixas. Daí a menção a Bo Diddley, bússola de tantos artistas que, na tradição pop, deixaram-se nortear pelo apreço à estrutura melódica e, ao mesmo tempo, pela experimentação sônica: The, Kinks, The Sonics, The Jimi Hendrix Experience, The Velvet Underground, The Jesus & Mary Chain etc. (Aos não iniciados em Diddley, recomenda-se começar pela encardida “Mumblin’ Guitar”, de 1959.)

Realmente, essa é apenas uma das referências que Dirt is Good evoca. Há muito mais que pode vir daí.

Sou obrigado a admitir que a cultura musical do Malauí, localizado na África Oriental (Malauí significa “sol nascente” em cinyanja, idioma local do tronco linguístico banto), não é muito frequente nas minhas pesquisas. Do país, conhecia a coletânea Music Of Malawi – From Lake Malawi To The Zambezi, interessante amostragem do repertório tradicional nativo que, caso consultado, o etnocentrismo ocidental certamente definiria como “folclórico”. Mas nada mais natural que a minha ignorância: a África, por si só, transcende desde sempre as nossas limitações em saber sobre ela – e, por extensão, sobre nós mesmos, que dela viemos todos.



Os Malawi Mouse Boys são vendedores de beira de estrada da iguaria (assada no espeto) que trazem no nome. Nos intervalos do expediente, executam o seu tipo peculiar de gospel com instrumentos confeccionados artesanalmente e outros, improvisados – uma lata de refrigerante, por exemplo, pode ganhar uma inusitada função percussiva. Uma dessas sessões ao ar livre foi assistida pelo produtor inglês Ian Brennan, que logo decidiu gravá-los. Sob o critério da precariedade técnica e do decorrente senso de improviso que ela inspira, podemos traçar certo paralelo entre a banda e uma outra, um pouco mais conhecida: a congolesa Staff Benda Bilili. 

O estilo coral ao modo gospel dos Malawi Mouse Boys lembra a cultura musical jive da África do Sul. A relativa proximidade geográfica explicaria a afinidade? Talvez. Muito provavelmente o fator étnico não conte tanto se considerarmos que a religiosidade é o motor criativo dos músicos. Afinal, mais evangelizador que os títulos traduzidos de algumas das faixas de Dirt is Good, só mesmo o auge de uma pregação frenética: “Love Of Jesus”, To Be Saved”, “My Lord”, I Like That Jesus Loves” e “My Sins Are More”. Apesar das diferenças sonoras, a comparação do trabalho da banda com o das veteranas Lijadu Sisters, que retornam aos palcos este ano pelas mãos de Damon Albarn, do Blur, é inevitável. As irmãs gêmeas da Nigéria também usam a música como veículo para render louvor a Cristo, só que em composições de rítmica iorubá que não dispensam sintetizadores e agressivas guitarras ligadas em linha.



(Que se diga uma coisa: Dirt is Good é um álbum para ser ouvido sempre na íntegra. Sua coesão é nítida. Portanto, nesta resenha, preferi não tratar de cada faixa em particular.) 

Os Malawi Mouse Boys têm uma flagrante vocação pop que nem de longe flerta com a estética da world music (afinal, o que é este rótulo além da tentativa de pasteurizar toda música produzida na África desde os anos 1980, e cujo prazo de validade infelizmente ainda não expirou?). E essa vocação não abre mão do despojamento que é a condição do seu ambiente original. Muito pelo contrário: ao que tudo indica, a banda grava suas composições na própria comunidade (ou na fatal “aldeia”, como preferem os focloristas?). É preciso dizer que Ian Brenner tem seu mérito ao registrá-las tal como as ouviu pela primeira vez. Mas não se deixe enganar por aquilo que se poderia tomar por “primitivismo”. Artistas e comerciantes de estrada que são, os Malawi Mouse Boys parecem estar bem mais sintonizados com o largo espectro da indústria cultural do que se desconfia. Sua capacidade de diálogo é invulgar. Sem dúvida, é aí que reside a sua verve. E ela é descomunal.

Lucio Branco

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Kenya Special – Selected East African Recordings From The 1970’s & 80’s (2013; Soundway, Quênia/Reino Unido)


























A gravadora inglesa Soundway segue firme na missão de resgatar o “elo perdido” da música africana dos anos 1960, 70 e 80. Agora, a sua série Special, que já rendeu coletâneas dedicadas a Gana e Nigéria, desloca-se longitudinalmente no mapa: a bola da vez é a costa oriental do continente, mais precisamente o Quênia, no recém-lançado, nos formatos CD duplo e vinil triplo, Kenya Special – Selected East African Recordings From The 1970’s & 80’s. Logo na primeira audição, a impressão é a de que se está diante de uma cultura musical inesgotável. O contato prévio com os seis volumes da coleção Kenya Partout!, das compilações Kenya Hit-Parade e Kenya Dance Mania, dentre tantas, já confirmava este juízo. Até o momento, a África Oriental segue sendo menos prestigiada pelos selos – principalmente europeus – nessa tendência atual de resgate. Exceção feita à Etiópia, tendo como carro chefe o ethio jazz, rótulo criado por Mulatu Astatke para o seu estilo pessoal e muitas vezes erroneamente atribuído pela crítica à música feita no país no mesmo período. Um repertório que se pode ouvir reunido, em parte, numa série como a Éthiopiques, que, atualmente, já conta com quase 30 volumes.

A música de nações como as citadas Gana e Nigéria, mais Costa do Marfim, Benim, Mali, Senegal, Serra Leoa, Burkina Faso e Togo, tem sido mais contemplada pela prória Soundway, pela também inglesa Strut, pelas norte-americanas Daptone e Thrill Jockey, e pelos selos Analog Africa, da Alemanha, e o espanhol Vampisoul, por exemplo. Talvez signifique, segundo as projeções destas gravadoras, que na costa ocidental do continente haja uma sonoridade mais potencialmente consumível pelo seu público-alvo. Tanto que o afrobeat e as variantes étnicas do afro soul e do afro funk costumam ser a tônica das compilações que focam essa região, habitada pelos povos iorubá, fon e igbo, dentre tantos outros.

O gênero musical mais popular do Quênia, a benga, estilo peculiar de “guitarrada”, sempre acompanhada pela marcação nervosa do contratempo da bateria, e suas variantes, de uma forma ou de outra, amarram muitas das faixas do álbum, em sua grande maioria, originalmente gravadas como singles de 45 RPM. A benga é considerada parente da “rumba congolesa”, como também é conhecido o soukous, estilo de “guitarrada” do então Zaire (como se denominou o Congo sob o ditador Mobutu entre 1971 e 97). Ou, ainda, a derivação pop mais contemporânea deste, o ndombolo, com a mesma estrutura dividida entre a parte cantada em coro sobre as camadas de dedilhados nas cordas, e a outra, mais acelerada, com os vocais quase ausentes, e na qual o solo de guitarra passa ao comando rítmico. 

Cercado por Etiópia, Somália, Tanzânia Uganda e Sudão, o Quênia sinaliza nessa condição cartográfica a sua formação sonora. (O universo musical do Congo e da Zâmbia também têm a sua influência nesse processo.) De resto, é sabido o quanto é complexa a questão das fronteiras nacionais africanas; do quanto, historicamente, pouco ou nada significam do ponto de vista nativo. As trocas culturais entre etnias como kikuyu, suaíli, kamba, luo, ngoni ou gogo produziram ao longo do tempo uma variedade rítmica que acabaram por gerar a benga. É o que prova, por exemplo, uma coletânea como Before Benga, lançada nos anos 1980 e dividida em dois volumes (Kenya Dry e Nairobi Sound), que reflete a evolução da singular vocação para as cordas da música desenvolvida no Quênia. Uma tradição que, pelo intercâmbio espontâneo que marca o seu ambiente cultural, é fatalmente muito similar a dos países vizinhos, cujos artistas frequentemente gravavam na “cosmopolita” Nairobi, o multiétnico centro nervoso agregador e irradiador dessa produção. E é justamente esse o critério da seleção do repertório da presente compilação. Não é difícil concluir que, para fazer jus ao título de Kenya Special, levou-se em conta que a capital do país, principal sede dos estúdios de gravação do leste africano, concentra tanto os maiores talentos musicais locais como os das cidades e nações circundantes.




Kenya Special – Selected East African Recordings From The 1970’s & 80’s conta com 32 faixas, ao todo. Abre com um único “hit”: “Ware Wa”, da The Loi Toki Tok, de 1972, que foi regravado dois anos depois pela banda de afro rock Cobra, também do Quênia. Os Rift Valley Brothers são uma grata revelação tardia até mesmo para quem se julga familiarizado com a música africana (a rigor, nunca se é familiarizado o suficiente com tradição musical alguma). “Mu Africa”, um soulfunky contido, e “Tiga Kurira”, com sua linha de baixo ondulante e meio elíptica, são, realmente, dois achados. E esta último, se não se soubesse improvável o seu conhecimento por David Byrne antes de Kenya Special, poderia ter servido de referência para o som de guitarra e baixo que os Talking Heads passaram a perseguir a partir de Fear Of Music, de 1979, seu terceiro LP. (“Tiga Kurira” foi composta justamente por essa época: é de 1977 ou 78, como informa o encarte.)

“Mama Matotoya”, dos The Mombasa Vikings, é o único afrobeat em Kenya Special; singularidade que tanto ajuda a comprovar a autossuficiência da música queniana quanto não deixa de revelar que outras culturas de fora do círculo iorubá do oeste africano não ficaram alheias ao impacto do ritmo criado pelos nigerianos Fela Kuti e Tony Allen. “Ngwndeire Guita” e “Mutumia Muriu”, da The Lulus Band, e “Ndiri Ndanogio Niwe”, dos Mbiri Young Stars, têm na sua estrutura rítmica algo das composições da beninense Orchestre Poly-Rythmo de Cotonou. Uma possível afinidade musical entre os povos fon, da costa ocidental do continente, e os kikuyu, da costa oriental. (A Lulus Band também marca presença com a levemente funkeada “Nana”. Uma curiosidade: é o seu frontman, D.K. Mwai, quem ilustra a capa do álbum.)



















A benga, o ritmo mais consagrado do país, dá as caras em sua versão supostamente mais “pura” em algumas das faixas, como “Wendo Ti Mbia”, da Gatanga Boys Band, e “H.O. Ongili”, de D.O. 7 Band – esta última, ripada do primeiro volume da citada Kenya Partout!. D.O. são as iniciais do consagrado Daniel Owino Misiani, tanzaniano responsável pelo clássico formato da benga que fez história no Quênia, e que aqui canta em luo. Owino, falecido em 2006, deveria figurar em pelo mais de uma faixa, como sucede com tantos artistas e bandas do álbum.

Já a tradicionalíssima Orchestre Vévé Star – projeto do saxofonista Verckys –, em “Nitarudia”, de cadência mais lenta, traz no arranjo um piano meio jazzístico e o célebre timbre dos metais das orquestras de soukous do Zaire. Os congoleses descendem, em parte, do mesmo tronco étnico-linguístico bantu que os suaílis, e é neste idioma, e não em linguta, predominante no gênero, que cantam “Nitarudia”. Sem querer precisar onde se originou essa ou aquela forma de se cantar ou tocar, o rascante naipe de metais da tanzaniana Orchestre Super Volcano, em “Mngeni Mali Yare Yore”, trai a sonoridade das orquestras da Guiné e do Senegal em atividade na mesma época. “Sina Raha”, de Hafusa Abasi & Slim, acompanhada da The Yahoos Band, “Thoni Na Caki”, da New Gatanga Sound, e “Mwendwa”, dos The Famous Nyahururu Boys, são as que, no repertório, têm mais destacada a modulação islamizada no vocal, como se pode esperar, por exemplo, dos suaílis, por tradição, sincreticamente fiéis a Alá.

Sweet Sweet Mbombo”, da Orchestre Baba National, evoca o highlife de Gana e Nigéria, indicando os rumos heterogêneos da verve musical queniana para o espanto da fidelidade ao rigor das classificações. Efeito semelhante produz o canto que sugere a influência da cultura sul-africana da pennywhistle jive music (mais conhecida como kwela) em “Cha-Umheja”, de outra banda tanzaniana presente no álbum, a Afro 70 – assim batizada, como parece óbvio, em alusão à Africa 70, banda de Fela Kuti na fase mais criativa da sua carreira. (Curiosamente, o encarte afirma que a composição em questão é como uma versão afro pop da tradição rítmica dos wagogo, que ocupam a região central do país – o amigo antropólogo Robson Cruz me explica, entre outras revisões, que o “wagogo” é plural de “gogo”.) “Nzaumi”, dos Ndalani 77 Brothers, soa como uma benga em versão discofunky. 

Em suma: infelizmente, tudo o mais que se possa dizer aqui não consegue dar conta de que Kenya Special é das maiores coletâneas de música africana já lançadas. É preciso ouvi-la com a atenção devida a uma peça que carrega inegável valor arqueológico de pesquisa e, ao mesmo tempo, aponta para um amplo horizonte de potencial de renovação da música na atualidade.

Lucio Branco

PS: Esta resenha para a seção “Afrika Pedra 90”, do blog Matéria, foi finalizada na circunstância dos sabidos últimos dias de Nelson Mandela... A Eternidade nem precisará festejá-lo: – o monumental Madiba já é eterno desde 1918. 

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Ebo Taylor – Appia Kwa Bridge (2012; Strut, Gana/Alemanha)


























Já antes do seu lançamento, em abril de 2012, pela gravadora alemã Strut, Appia Kwa Bridge, do ganês Ebo Taylor, era um dos álbuns mais aguardados por quem tem real interesse pelo universo musical africano. Este trabalho é a prova cabal de que, finalmente, o maior guitarrista em atividade do highlife voltou a ocupar o centro da cena. E, mesmo sem exatamente surpreender quem o conhecia, ainda demonstra o quão é capaz de se superar.

Ebo talvez tenha surpreendido mesmo em 2010, com o seu Love And Death (também pela Strut), por ter atravessado um período de quase 30 anos afastado dos estúdios e, mesmo assim, gravar uma obra de rara qualidade para quem parecia ter abandonado definitivamente o ofício da composição. Um ano após, o mesmo selo lançaria a coletânea Life Stories (1973-1980), um belíssimo apanhado da sua carreira que pavimentaria o caminho para o passo seguinte.



Aproveitando fôlego, esse legítimo representante da etnia fanti que atualmente conta 77 anos, parece mais longe que nunca de perder a condição de sumo sacerdote do gênero que foi criado no seu país e, posteriormente, reelaborado dentro dele próprio e da Nigéria – os Oriental Brothers Internationals, de Lagos, por exemplo, são uma referência canônica da escola do dito “modern highlife”. Essa reelaboração, que uma quase unânime disfuncionalidade crítica segue rotulando de “modernização” nada mais é que a sua eletrificação, consequência de um diálogo inevitável com outros ritmos negros tidos como mais “urbanos” ou “cosmopolitas”, como o rock e o funk, por exemplo. Diz-se “mais urbanos ou cosmopolitas” pelo fato de integrarem os catálogos das grandes gravadoras através de artistas e bandas ocidentais com penetração garantida n’África – sem contar os seus emuladores locais, que não foram poucos, nos 1960 e 70. O soulfunky e o afrobeat (híbrido desde o berço) contribuíram para remodelar ainda mais o highlife, equivocadamente tomado por uma espécie de “jazz africano” cujo parentesco com a música negra caribenha é sempre apontado como resultante dela – em especial, o calipso de Trinidad e a sua popular derivação, a soca.

O naipe de cordas é mesmo o diferencial do highlife. Por mais que se baseie na polirritmia percussiva e na presença frequente dos metais, são sempre elas, as cordas, que conduzem o som. Existem variações dentro do gênero, como, por exemplo, a palm wine guitar, cujo maior expoente é o serra-leonense S. E. Rogie, que veio a influenciar o estilo de mestres ganeses como E. T. Mensah, Koo Nimo, Kwabena Nyama e de bandas como a T. O. Jazz International Band of Ghana. Logo, a versão eletrificada do highlife se disseminou pela costa ocidental africana e se fundiu com outras técnicas harmônicas de manuseio das cordas.

Ebo Taylor, figura de proa nessa longa tradição, reaparece com um registro do mesmo nível daqueles do auge da sua carreira. E cabe perguntar: quando ele não esteve no auge? Os 30 anos do seu hiato criativo (parte deles vivido no Canadá) teriam sido motivados pelos rumos artísticos e mercadológicos adotados em geral pela música ao longo desse período? Obviamente, a atual (re)descoberta do afrobeat e ritmos da mesma origem continental é um ensejo e tanto para esse retorno aos palcos e estúdios.



Appia Kwa Bridge abre com o vibrante lamento de guerra “Ayesama”, na sua tradicional estrutura vocal repetitiva de chamada e resposta, provando o talento da alemã Afrobeat Academy, no apoio a Ebo Taylor desde Love And Death. Oghene Kologbo, guitarrista nigeriano do Africa 70, de Fela Kuti, e membro da banda do seu compatriota Tony Allen – baterista inventor do beat do afrobeat que, também como seu companheiro, decidiu se desligar da trupe do Black President após o histórico show de 1978, em Berlim –, toca baixo nesta e em algumas outras faixas do álbum. (Kologbo também utiliza os serviços da Afrobeat Academy na sua carreira solo.) O acerto na escolha dos parceiros alemães de Ebo Taylor fica ainda mais claro com o belo backing vocal de “Nsu Na Kwan”, canção inspirada num provérbio fanti ancestral. Para tomar ainda mais distância da margem de erro, é nesta faixa do álbum que se dá pela segunda vez a participação especial do próprio Tony Allen (a primeira é na anterior, “Abonsam”). Remetendo às origens do highlife, “Yaa Amponsah” (um clássico ganês que já integrava o seu repertório, e também executado pela Ogyatanaa Show Band – conferir o volume 2 da compilação Ghana Soundz) e “Barrima”, únicas faixas acústicas do disco, revelam a perícia do maestro de cordas que é Ebo Taylor. “Assom Dwee”, com o ataque do naipe de metais e Mr. Allen mais uma vez nas baquetas, é a mais dançante de todas – e talvez a mais “caribenha”, para quem assim melhor entende. A nostálgica faixa-título – que trata de uma ponte frequentada pela gente de Saltpond, cidade natal de Ebo –, é a penúltima de um total de oito, e conta com metais melódicos, num swing mais cadenciado. É a faixa de maior potencial pop do álbum, mas, ao que tudo indica, não fará carreira no dial brasileiro.

Enfim, tratamos aqui de uma obra-prima concebida, executada e produzida em plena contemporaneidade, cuja medida de permanência para muito além desta está impregnada em cada fraseado de guitarra, em cada solução rítmica, em cada linha de baixo, em cada nota emitida pelos órgãos Farfisa ou Wurlitzer do conceituado Kwame Yeboah. É injusto acusar concessões ao mercado em Appia Kwa Brige. Ser acompanhado pela Afrobeat Academy é de uma coerência total de Ebo Taylor com a sua música. Que se diga: estamos diante de um trabalho que não é a reatualização do som do artista: – é o talento dele próprio em sua essência, o qual recusa fórmulas momentâneas. Os tempos que correm que se adaptem a ele, eis o claro espírito do registro. (Um termo como “essência” cabe muito bem no caso presente, e fora dos esquemas puristas que comumente o empregam. Fica a impressão de que o afastamento por três décadas da indústria preservou Ebo Taylor da submissão as suas regras.)

Causa estranheza que o lançamento de Appia Kwa Bridge não tenha ganho o destaque requisitado pela sua envergadura. E, pelo que se lê por aí, não vem sofrendo nenhuma revisão mais atenta – falha que esta resenha tardia está longe de compensar. Indiferente a isso, Ebo Taylor prosssegue com a sua agenda lotada de apresentações pela Europa, certo de novas adesões. Quem esteve no palco Julio Prestes, dedicado às atrações africanas da edição do ano passado da Virada Cultural de São Paulo, pôde constatar que, mesmo num show com problemas técnicos de exclusiva responsabilidade da produção do evento, esse veterano parece mais distante da aposentaria que qualquer novato que se diga seu discípulo.

Lucio Branco

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

(crítica - disco) Sorry Bamba – Volume One 1970-1979 (2011; Thrill Jockey, EUA [Mali])

O altissonante, uníssono e quase unânime “NÃÃÃÃÃÃOOOOOO!!!” que ecoou na gare da Leopoldina, no Rio de Janeiro, no segundo dia do festival Back2Black, à pergunta que Oumou Sangaré endereçou ao público presente: “Vocês conhecem o meu país?” (“conhecia” não na acepção turística estrita do termo, mas no que se refere mesmo a sua existência no mapa mundi), fornece a medida do grau de interesse em geral pela África, entre nós. Sangaré, responsável por um dos momentos mais elevados do festival, ao lado do “conterrâneo” Tinariwen (as aspas, aqui, lembram que seus membros nômades podem ter nascido em qualquer um dos países recortados pelo Saara, como determina o incerto e secular roteiro tuareg), pertence ao Mali, nação situada na costa ocidental africana composta, em grande parte, pela influência cultural do Islã.

Esta introdução serve para fazer as honras ao lançamento da compilação de um outro e referencial conterrâneo dessas duas atrações presentes à última edição do referido festival: Sorry Bamba.
A gravadora independente nova-iorquina Thrill Jockey – através da prospecção, produção e compilação realizada pelos dois guitarristas da banda Extra Golden (que funde rock com a benga queniana), os norte-americanos Alex Minoff e Ian Eagleson – lança o primeiro volume de um período específico da carreira de Sorry Bamba, Sorry Bamba: Kanaga Orchestra of Mopti, Regional Orchestra of Mopti (1970-79), cuja “Porry”, que integra a coletânea World Psychedelic Classics 3, Love’s a Real Thing: The Funky Fuzzy Sounds of West Africa, de 2005, decerto já não era novidade para quem realmente se interessa por música africana. Nascido em Mopti, a “Veneza do Mali”, situada na confluência fluvial e metafísica dos rios Niger e Bani, Sorry Bamba, a frente da sua L'Orchestre Kanaga De Mopti (para a Thrill Jockey, Kanaga Orchestre of Mopti), é um autêntico autor musical. Filho de um nobre fiel ao Império Mandinga de Samory Touré – o histórico líder e estrategista militar da resistência malinesa à colonização francesa –, Bamba se manteve inicialmente afastado do seu verdadeiro ofício para vê-lo praticado exclusivamente pelos griots, conforme o rigor da tradição local. Daí, só veio a abraçar finalmente o seu dom na adolescência, com a morte do pai. Em 1957, formou o Group Goumbé, logo renomeado de Bani Jazz, após a independência do Mali (ignoramos a possível relação entre ambos os eventos) e, mais tarde, ao final da década de 1960, rebatizada – até os dias atuais – de L'Orchestre Kanaga De Mopti. A trajetória de Sorry Bamba acabou por torná-lo um dos artistas mais célebres do seu país.

Mas tratemos propriamente de Sorry Bamba: Kanaga Orchestra of Mopti, Regional Orchestra of Mopti (1970-79)...

O órgão meio “mântrico” de “Yayoroba” abre o álbum apresentando a atmosfera geral das suas faixas. E atmosfera é mesmo o termo preciso, já que o repertório em geral de Sorry Bamba se apoia no prolongamento e na repetição que propiciam o transe – características de parte considerável da música elaborada e executada em território malinês. “Boro”, a faixa seguinte, além de apresentar o domínio de uma percussividade mais suave, própria a sua música, é aquela que traz mais ostensivamente o dedilhado da kora, instrumento de cordas original da costa oeste africana, muito utilizado pelos griots. “Astan Kelly”, a quarta faixa, destaca-se como a composição de maior sotaque afrocaribenho da coletânea. (Não há dúvida de que ela carregue as marcas das vias de ida e vinda do roteiro traçado pelo “Atlântico Negro”, como o “canônico” sociólogo Paul Gilroy cartografa a diáspora negra mundial. Precisamente onde e quando a sonoridade “afrocaribenha” despontou nesse roteiro é uma questão que condena, de antemão, todo e qualquer esforço de pesquisa a sondar o Mistério.) “Sekou Amadou”, que figura aqui como um registro supostamente ao vivo (tudo indica que os aplausos que ressoam em três momentos sejam enxertados), é mais abertamente afim à cultura musical muçulmana (seu canto é prova disso). Na faixa seguinte, “Sayouwe”, comparece a batida soulfunky mais ao modo de uma Orchestre Poly-Rythmo, de Benin, notória por fundi-la com o sato, ritmo usado nos rituais vodu. (É claro: esta impressão pode causar grande espanto e/ou contrariedade a um malinke.)

Mas há duas omissões imperdoáveis na coletânea. “N’Do N’Do”, do álbum de 1977 da orquestra (e cuja capa é uma peça de arte por si só), está incompreensivelmente ausente dela, com a sua síntese de guitarra funky e teclados hipnóticos com as estruturas rítmicas da etnia dogon, à qual pertence Bamba. É possível entreouvir nessas estruturas uma involuntária sugestão da sonoridade eletrônica contemporânea (e notemos o quanto as derivações do funk costumam ser pouco reconhecidas a sua fonte original), o que ajuda a desmontar as convicções de um tão acionado “darwinismo musical” que ainda teima em apontar avanços e atrasos segundo critérios culturais sempre parciais. De resto, nesta faixa em particular, há momentos (principalmente no diálogo meio falado, meio cantado do maestro com a sua orquestra) que não à toa lembram, e muito, outro conterrâneo de Sorry Bamba, mestre dessa forma específica de sincretismo musical afrodiaspórico que é – e não é – a tão recorrente aclimatação do funk às suas “origens”: o saxofonista Moussa Doumbia. (Entenda-se: é pelo ângulo panafricano, que estende a África a toda a presença negra no mundo; e não é pela sabida impossibilidade de se delimitar com exatidão as fronteiras em que se encerraria seu território cultural; afinal, alguém aí saberia precisar em que etnia o tronco familiar dos Brown da Carolina do Sul deita suas raízes? Quem o souber, favor informar...) Doumbia é, de fato, uma rara referência de visceralidade na tradição da fusão afrofunk (suas gravações dos anos 1970 fazem a agressividade rítmica do queniano Matata soar bem mais palatável, em comparação). A outra omissão, a autorreferente “Kanaga”, também do álbum de 1977, abusa da polirritmia num arranjo que inclui experimentações com ecos vocais e wah wahs que remetem, sem chance de erro, à estética psicodélica. (Evidentemente, o repertório da presente coletânea, também.)

Apesar das omissões apontadas, Sorry Bamba: Kanaga Orchestra of Mopti, Regional Orchestra of Mopti (1970-79) é uma obra-prima porque, coerentemente, compila material que faz jus a essa qualificação. Aguardamos por Sorry Bamba, no esplendor dos seus 73 anos, como a carta malinesa da vez na próxima edição do festival Back2Black. Assim desejamos...

Lucio Branco

Ouça a faixa "Astan Kelly"

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

(crítica – disco) VA - Nigeria 70 “Sweet Times”: Afro-Funk, Highlife & Juju From 1970’s Lagos (2011; Strut Records, Reino Unido [Nigéria])



Após Nigeria 70: The Definitive Story of 1970’s Funky Lagos e Nigeria 70: Lagos Jump: Original Heavyweight Afrobeat, Highlife & Afro Funk vol. 2, a Strut Records dá continuidade à série lançando, muito oportunamente, este ano, Nigeria 70 Sweet Times: Afro-Funk, Highlife & Juju From 1970’s Lagos, sempre sob a curadoria do colecionador inglês Duncan Brooker. Esta compilação, assim como as anteriores, dá prova de que o cenário musical nigeriano do período contava mesmo com uma produção muito calcada na profunda ruptura estética deflagrada pelo funk, marco divisor inquestionável da linguagem rítmica da música negra moderna. Imediatamente após o seu advento, em meados dos anos 1960, como fundo sonoro de parte do movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos, sua influência veio a ser sentida até mesmo no exterior do seu espectro original, como, por exemplo, na concepção da música eletrônica alemã e de outras escolas teoricamente insuspeitadas. O variado conjunto evolutivo representado por gêneros como kraut rock, fusion, afrobeat, rap, dancehall – e tantos outros que vem se acumulando até hoje –, talvez por uma massificação que se julgue excessiva, faz do funk um fenômeno de origens insuficientemente estudadas. Mas essa pesquisa mais aprofundada do impacto da sua emergência na cena musical de então, e os seus desdobramentos na vida cultural em geral (dança, comportamento, indumentária, gíria etc), não vai ser feita aqui. Apenas se deve partir do princípio de que essa derivação da tradição soul, baseada na agressividade do singular senso rítmico sincopado do seu criador, James Brown, deita raízes na experiência musical ancestral d’África.

Assim, a partir do final dos anos 1960, por praticamente toda a extensão do leque musical do – perdão pelo clichê – “continente negro”, a voga funk veio confirmar esse atavismo no seu código “genético”. Principalmente na costa oeste, o então novo compasso do Godfather of Soul encontrava solo amigo nas culturas rítmicas dos povos Iorubá, Ibó, Fon, Agouda, Haussá etc. Uma identificação mais que imediata gerou artistas e bandas como Geraldo Pino & The Heartbeats (Serra Leoa) – influência inicial confessa de Fela Kuti –, A TODA PODEROSA Orchestre Poly-Rythmo de Cotonou (Benin), Amadou Balaké (Burkina Faso), Moussa Doumbia (Mali), The Funkees (Nigéria), Rob (Gana) Ernesto Djedje (Costa do Marfim) etc. Fora do eixo ocidental africano, não se pode deixar de citar o Matata, grupo queniano despudoradamente emulador de James Brown e os J.B.’s, em todos os seus mínimos trejeitos e cacoetes. (Como registro da louvação panafricana ao Mr. Dynamite, recomenda-se Soul Power, documentário sobre o festival musical realizado para promover a luta que decidiu o título dos pesos pesados entre Muhammad Ali [seu vencedor] e George Foreman, no Zaire [atual República Democrática do Congo], em 1974, que o teve como principal atração.

Dito isto, conclui-se que, n’África, ancestralidade musical é vanguarda. Indiferente a qualquer paradigma ocidental relativo às suas manifestações culturais, os mais distintos ritmos e sonoridades seguem se reproduzindo incessantemente por lá desde o advento do Homem. Quando se trata d’África, o conceito imposto de folclore – sempre sob a vigilância para com a integridade de uma pretensa “autenticidade cultural” das suas formas de expressão ditas primitivas –, é uma balela etnocêntrica legitimada em praticamente todos os âmbitos da reflexão e da informação de que se pode dispor. Prevalece no inconsciente e/ou na má consciência dos – favor atentar para o negrito das aspas – “formadores de opinião”, uma muito deformada ideia de que a moderna música africana é uma etapa avançada, já superada do atraso das suas origens, por conta de uma evolução considerada “necessária” que teria incorporado a sofisticação do aparato tecnológico contemporâneo. (É evidente que se diz “moderna música africana”, aqui, exclusivamente com base em critérios cronológicos.) Dispensável dizer que uma perspectiva como essa não se dá ao trabalho de conceber as múltiplas visões africanas sobre o mesmo fenômeno, já que, a ela, parece bastar mesmo a sua autossuficiência. As afinidades entre a produção estrangeira afrodiaspórica e o legado ancestral africano dão prova de uma interação que o discurso quase consensual sobre – generalizemos, sem medo, agora – o que quer que seja relativo à África, possa supor. Melhor e finalmente dizendo: a ponte África-diáspora negra tem na (re) apropriação (auto) transformadora do funk um dos capítulos mais frutíferos da história da black music e, por tabela, da vida cultural do século XX.

O terceiro título da série Nigeria 70 traz um relato sonoro precioso desse intercâmbio. E é até interessante que não figure nas suas 13 faixas nenhum afrobeat, estritamente dentro dos termos do célebre formato moldado por Fela Anikulapo Kuti, seu inventor avant la lettre (auxiliado, na tarefa, pelo baterista Tony Allen, responsável direto pelo seu compasso sui generis). Duncan Brooker é feliz ao não explorar um filão tão na ordem do dia (musical biográfico de Fela na Broadway, orquestras contemporâneas do gênero a granel por todas as latitudes do globo, pauta anacrônica cada vez mais assídua na mídia etc) para ceder espaço a outros ritmos do panorama musical da época. (Mas, reparar que o termo funk – um dos ingredientes do afrobeat – subintitula todos os álbuns da série.) Pode-se dizer que as variações “modernas” do highlife são o carro chefe da coletânea, tanto na sua versão mais guitarrada – caso das duas primeiras faixas: “Life”, de Moneyman and The Super 5 International, que soa como um soukous congolês, e “Henrietta”, de Ali Chukwumah & His Peace Makers International –, quanto na pegada soulfunky de “Ire”, de Don Isaac Ezekiel Combination, ou D.I.E (composto por três ex-Koola Lobitos, banda de Fela imediatamente anterior ao Afrika 70: Don Kemoah, Issac lasugba e Ezekiel Hart), que já compunha o repertório de Afro Baby: The Evolution of the Afro-Sound in Nigeria 1970-79, outra compilação, lançada em 2004 pela Soundway Records. Também segue essa vertente funkeada “Kinringjingbin”, dos versáteis Dr. Victor Olaiya’s International All-Stars (Olaiya, o “Gênio do Mal do Highlife”, para quem Fela e Tony Allen já tocaram, numa formação anterior da sua banda de apoio). E, claro, para compor o quadro estético do período, certas tonalidades psicodélicas contaminam a maioria dessas ramificações do highlife – em contraste, “Ama Mbre Ewa”, do mestre Etubom Rex Williams, pode ser considerada sua expressão mais “pura. A faixa mais impregnada pela batida do black norte-americano é mesmo a panafricanista “Unity Africa”, de Eji Oyewole, mas sem abrir mão da vasta gramática rítmica nigeriana. Em Sweet Times, as únicas composições representativas da juju music são “It’s Time For Juju Music”, de Admiral Dele Abiodun & His Top Hitters International – que demonstra o quão oportuno podiam ser sintetizadores e bateria eletrônica quando não caíam nos vícios típicos dos arranjos de desde a segunda metade dos anos 1970 aos 1980 (estes, seu auge) – e “Ajoyio”, a última faixa, de autoria de Chief Commander Obenezer Obey & His International Brothers, que apresenta uma sonoridade mais crua, cadenciada, contida – atmosférica, até. Nesta, as guitarras soando na distância, e a sessão percussiva, no seu momento solo de praxe, estão lá para referendar a cartilha do estilo que o consagrou. De Dele Abiodun, pode-se dizer que é próprio mesmo dele associar a um gênero pop tão elíptico, sinuoso e fragmentado nas camadas percussivas e nas guitarras (por sinal, aquela que faz a base em “It’s Time For Juju Music” tem uma levada funky já filtrada pelo afrobeat), o aparato identificado com a cerebralidade da eletrônica. Abiodun e Ebenezer Obey formam o triunvirato nigeriano da juju com King Sunny Ade, que talvez se encontre ausente por conta dos 15minutos e 11 segundos de “It’s Time For Juju Music”, de longe, a mais extensa do álbum. Já a instrumental “Viva Disco”, de Tunde Mabadu, é um afrodisco muito bom, porém, um tanto estranho à seleção do repertório, mas que não deixa de dar testemunho, mais uma vez, do influxo funk sobre toda essa geração. O referencial Bola Johnson, em “E Ma S’eka”, tem um registro vocal similar ao de outro gigante nigeriano, Sir Victor Waifo, que, infelizmente, também não consta na presente coletânea. O domínio das cordas, nesta faixa, é absoluto, daí, mais outra aproximação com o “Guitar Boy Superstar” (outro nobre qualificativo do auto-intitulado “Sir”). 

Sweet Times mantém a coerência e a qualidade da série Nigeria 70. Que ela prossiga a partir desse manancial longe de se esgotar que é a discoteca de Duncan Brooker...

Lucio Branco

terça-feira, 6 de setembro de 2011

(crítica - disco) Tinariwen – Tassili (2011; V2, Reino Unido [Mali])




















 








Para manter a escrita, compareceu à apresentação do Tinariwen, grupo tuareg do Saara, dentro do festival Back2Black, na Estação Leopoldina, no último 26 de agosto, o paraquedismo vocacional que parece definir em muito o perfil da audiência de shows de artistas estrangeiros – relativa ou inteiramente – desconhecidos que aportam no Rio de Janeiro. A julgar pelo comportamento de parte expressiva do público que compareceu ao show que fez parte da agenda carioca do grupo liderado pelo enigmático Ibrahim Ag Alhabib, o que não era claro e ofensivo desprezo pelo que se passava sobre o palco (gritos de “Macy Gray! Macy Gray!” – artista a se apresentar na sequência – ouviam-se incomodamente), soava apenas como curiosa expectativa por um exotismo kitsch de terceira ao qual, nossos homens em Bamako, em nenhum momento, quiseram corresponder. Queríamos crer que São Paulo os recepcionaria diferentemente, até sabermos que o grosso do público presente a sua apresentação no Bourbon Street Music Club, meio que repetindo o Rio, estava mesmo lá pela atração que fecharia a noite: o soulman contemporâneo Aloe Blacc. Só ignoramos se as manifestações de impaciência e rancor foram no mesmo diapasão que as registradas entre o público carioca...

Porém, no Rio, os músicos nômades do Saara multifronteiriço, e por isto, sem nacionalidade formal definida (eles tanto podem ser originais do Mali, Níger, Argélia etc), comprovaram pairar acima de tudo isso. Bastou adentrarem o palco para provocarem um semi transe de por volta de uma hora, mestres que são na arte da Distância e do Alheio. Sorte dos que se deixaram hipnotizar. No seu palco, tudo compõe a cena visual-sonora do Sahel: a clássica indumentária de turbantes que praticamente só deixam os olhos à vista, danças hipnóticas, dedilhados que davam a partida em todas as músicas etc. Mas talvez apenas os iniciados no grupo tenham dado pela falta das backing vocals e seus trêmulos trinados.

Por que evocar tudo isso no início de um texto destinado a analisar criticamente Tassili, o último álbum do Tinariwen? Mais do que recriminar certos equívocos da recepção em geral ao tipo de música do grupo, entre nós, busca-se, aqui, compreender a surpresa que Tassili consegue provocar no seu público ouvinte, por mais atento e seleto que este possa – ou se julgue – ser.  

Em Tassili, o flerte com a atualidade pop/rock é avalizado por algumas parcerias interessantes. (A veterana Orchestre Poly-Rythmo, de Benin, ano passado, talvez tenha lançado a tendência desse encontro geracional/intercontinental ao convidar Paul Thomson e Nick McCarthy, do Franz Ferdinand, para uma grata participação em “Lion is Burning”, última faixa do seu último disco de estúdio, Cotonou Club.) A primeira parceria, em Tassili, é em “Imidiwan Ma Tennam”, que abre o disco trazendo Neils Cline, guitarrista do Wilco. A terceira faixa, “Tenere Taqqim Tossam”, conta com o vocalista Tunde Adebimpe e o guitarrista Kyp Malone, do nova iorquino TV On the Radio. Sem pudor – e por que deveria tê-lo, se mencionaremos, agora, uma referência fundamental? – Adebimpe pastichiza o vocal de Damon Albarn (Blur, Gorillaz, The Good, the Bad and the Queen), não coincidentemente idealizador de Mali Music, projeto de 2002 em que se pôs ao lado de músicos provavelmente conterrâneos da maioria do line-up do Tinariwen. Demérito algum nisso, afinal, tal aproximação demonstra que Adebimpe é capaz de um registro que foge ao inusitado do timbre e das inflexões soul que caracterizam o vocal à frente da massa instrumental do TV On the Radio. Além de dar prova de versatilidade, também sugere que dispõe de uma discoteca digna de consulta. Na quarta faixa, “Ya Messinagh”, os convidados do Dirty Dozen Brass Band, de Nova Orleans, sopram na medida. Não é mesmo à toa que o Tinariwen venha sendo saudado por medalhões tais como Santana, Robert Plant, Bono e o próprio Damon Albarn. Em tempo: a delicadíssima “Walla Illa” não tocará na sua estação predileta. Azar o seu.

O material promocional do lançamento de Tassili traz um depoimento de Albarn que diz não ser necessário dominar o tamashek, o idioma tuareg, para perceber a densidade do seu conteúdo sonoro. (Impossível não concordar. A saber: a maioria das letras versa sobre a resistência da cultura tuareg, e a desolação poética que o Saara inspira – há tradução para o inglês, no encarte do CD.) Mas também se diz, no release de Tassili, que o grupo volta a abraçar as raízes da sua cultura musical por se tratar de um trabalho predominantemente acústico, ao contrário dos álbuns anteriores, em que, supostamente, as guitarras e os arranjos mais para o rock assomam. Que se diga: não é isso. Por antítese, lembremos mais uma vez das parcerias, neste álbum, com artistas que compõem o que há de mais contemporâneo dentro da cena contemporânea (talvez mais no sentido estético que cronológico). No caso do “blues do deserto”, gênero assim batizado para definir a sonoridade do Tinariwen e congêneres, tais como Group Bombino, Group Doueh, Group Inerane etc, a tradição está sempre lá. Tal é a singularidade desta tradição musical de tão árida paisagem – com um padrão rítmico e uma estrutura marcada por pausas abruptas e a retomada da linha melódica, sempre na mesma toada –, que fica invalidado, por gasto, o argumento do regresso às origens. A guitarra é um instrumento fundante dessa cultura musical, não importando qual o rótulo que esta receba. Que ela seja produto da modernidade, não se questiona, por razões lógicas (o Tinariwen foi formado em 1979), mas o que é curioso é que ainda se fique insinuado, em comentários assim, mesmo que involuntariamente (e, claro, é este o caso), que ainda possa haver, por aí, uma essência musical impermeável à “má influência” deste artefato ocidental, cuja permissão – ou não – de uso, já foi tema de tanto debate rasante e inútil, nos 1960, em cenas como a da dita MPB, ou do folk norte-americano. Naturalmente, a opção pelos arranjos acústicos em Tassili explica a suavidade do momento atual do Tinariwen (seu líder trocou o violão pela guitarra no último quarto do show, no Rio), mas onde o folclore entra nisso é questão para se deixar mesmo aos raciocínios mais à mão. Portanto, quanto a essa questão de que, do ponto de vista formal, as raízes do Tinariwen estariam mais preservadas neste álbum, só podemos mesmo dizer, delas, que são tão fugidias ao nosso conhecimento quanto o itinerário dos seus supostos “guardiões” pelas infindáveis dunas do Sahel. O que, queremos crer, só confere mais interesse ao material que ouvimos.

Os vocais do grupo estão mais brandos e afinados que nunca em Tassili – a contenção de Alhabib ao microfone revela controle total sobre tudo o que paira ao seu redor. Os fraseados invariavelmente rotulados como “mântricos” pela crítica, o tempo peculiar da percussão enxuta, reduzida ao essencial, e a referida disposição em não corresponder ao anseio por exotismo por parte do mercado musical no qual cada vez mais o grupo vem ingressando, dentre outras particularidades, estão todos no álbum, a comprovar a fidelidade de sempre à sonoridade do Tinariwen. Um dado curioso: as sessões de gravação de Tassili foram realizadas numa região do Saara dentro da fronteiras da Argélia, e não no Mali, como se pretendia originalmente, por uma questão de segurança para com os músicos convidados.

Mas eis o que queríamos dizer desde a primeira linha do texto, e talvez não tenha ficado tão claro: baixem ou comprem Tassili. É mais que fundamental.

Lucio Branco