segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Sobre "A Zona de Interesse"














Ritualizar o cotidiano mais ordinário muro-a-muro com a mais insana ignomínia — pontuando essa narrativa austera com telas vermelhas e estranhíssimos recursos a imagens em negativo, sublinhando e intensificando a experiência sonora, a caldeira, os gritos, os jatos e tiros. Não há como não notar as prodigiosas proporções e enquadramentos — sobretudo no terceiro ato — que tendem a espelhar vidas regradas por códigos sombrios, edificadas com o claro propósito de garantir alguma normalidade em meio à industrialização do extermínio. Há alguma razão aparente para vislumbrar a banalidade do mal através dessas coreografias absurdas — gente cuidando da casa, limpando os móveis e educando as crianças enquanto a fumaça e um rumor ininterrupto parecem cair como um manto sobre todas as coisas. Antes do mal, porém, há outros registros da banalidade. O que poderia dar errado em um filme tão cioso e ciente de suas premissas e estratégias? Afora a possibilidade de levantarmos a hipótese do "holoexploitation" — cuja tragédia teria ocorrido em "Schindler's List", e a farsa em "Jojo Rabbit" — há que se cogitar em paralelo a hipótese de uma mão artesanal tão pesada que é incapaz de delirar, que vai se tornando mais pesada conforme se vê revestida de responsabilidades com os limites do tolerável, conforme demonstra, com transparência, que fora absorvida por algo que escapa da imagem e invade a moral com a força que só o medo é capaz. O nó é cristalino. E o medo quebra a quarta parede nas últimas sequências, quando o filme se converte em uma experiência de atualização, invadindo e sendo invadido pela realidade.

terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

"O carnaval é..."























Há apenas uma aparência de consenso em torno do problema do carnaval (ou do carnaval enquanto um problema) — aparência provisória, aparência de classe, aparência-espetáculo, aparência-fim-de-férias, aparência meramente laudatória ou jornalística.

O que o carnaval é — isto é, o que significa ou "torna individual" — pouco importa. O que não impede que façamos um mergulho na busca pela sua essência. Como essência e existência se confundem nos diversos regimes de causalidade que atravessam o carnaval, trata-se aqui de reconhecer a impossibilidade de uma totalidade homogênea. Toda resposta, portanto, deve manter uma certa compostura, pisar "com o devagar" e assumir-se necessariamente provisória, perigosamente fragmentária.

O que é o carnaval? 

Para o técnico de barracão que trabalha em alguma agremiação, ele pode dizer que o carnaval lhe constitui. Sob esse ponto de vista, o carnaval implica no espaço de uma prática de sobrevivência e expressão: arte, técnica e muito trabalho, em geral mal remunerado definem a sua atividade. Sua prática ocupa um espaço-tempo dilatado, se prolonga durante quase todo o ano — "são escultores, são pintores, bordadeiras. São carpinteiros, vidraceiros, costureiras. Figurinista, desenhista e artesão. Gente empenhada em construir a ilusão..." Para este folião, que tem sonhos como a velha baiana, sustento e sustância decorrem de uma prática, de uma cultura, de uma imaginação.

Já para o folião sazonal, o carnaval basicamente representa um período de festa que corresponde justamente àquilo que a grande maioria dos historiadores e teóricos do carnaval apregoam como se não houvesse amanhã: a eclosão de um tempo — o tríduo de Momo — regido pela lógica dionisíaca, a suspensão e a inversão dos papéis correntes que, assumindo o caos da ordem social, por si só já desafiaria o poder e o estado das coisas. A cidade se transforma em uma "festa política" pelo seu suposto caráter transgressor: rasgamos nossa fantasia social diante de um paraíso selvagem onde todos os frutos são saborosamente proibidos e todos os caminhos levam ao êxtase. É muito evidente os limites dessa visão que vem sendo corroborada por dentro dos fluxos do desejo das classes médias — e no caso carioca, o plural se aplica.

Não vou entrar em detalhes no que diz respeito às preocupações dos homens que sustentam as estruturas de poder que regem o carnaval, tanto na Sapucaí, quanto na distribuição territorial dos recursos e permissões do carnaval de rua. Não menciono também o gari, o camelô, o diretor de ala, o jurado branco julgando o samba negro, o músico, o componente de outra cidade e de outro país, os blocos abastados e os blocos deserdados pelas associações e pelo poder público.

A moral da história , sempre provisória: ao enunciar três ou quatro perspectivas sobre a experiência vivida do carnaval podemos perceber o quanto essa festa grita na nossa cara a forma como não há qualquer consenso ou conciliação acerca de sua realidade. Qualquer tentativa de fazê-lo recairá necessariamente no oportunismo e na falácia explícita no mito da inversão.

A política, a cultura, a informação e, sobretudo, o que se costuma chamar de "estética" — no caso do carnaval, talvez uma "tecnoestética" onde o "saber fazer" se torna fundamental — constituem o espetáculo, na rua e na avenida, onde a coisa se complica: há a preparação real, há as interpretações teóricas, há o jornalismo e toda uma cadeia de poderosos e privilegiados que ostentam seus crachás, mas, em todos os cenários, é o povão mais pobre que concebe e orienta o que a gente costuma chamar de produção: a dança, a música, a organização do espetáculo, a percussão e as cordas, a plasticidade das fantasias e dos carros, nada disso foi criado pela classe média purpurinada, tampouco pelos donos do poder. 

Uma ironia insuportável: a ideia de que se trata de um espetáculo popular, alegre e político, contrasta e esconde o manancial de apropriações e "doces ilusões" de integração e função ética. O "ethos" positivista do discurso hegemônico sobre o carnaval esconde o "pathos" (a distância, a injustiça) que marca sua realidade.

E mais uma vez a questão se complica: regido por uma lógica onde o oprimido deseja se tornar o opressor, a produção acaba se confundindo com a reprodução das relações de poder. O carnaval como algo cotidiano e o carnaval como experiência pontual não se confundem, até porque estão separados pelo trabalho manual e artesanal, esse crivo que desde o século XVIII opera um limite a demarcar o estrato social e os conflitos por títulos de nobreza.

O entrudo do XIX e seu desdobramento, o bloco carnavalesco dos anos 30 aos 60 no Rio, Recife e Salvador, que servem de modelo para o "bloquinho" de São Paulo e Zona Sul do Rio, era a festa do trabalhador, do operário, dos deserdados da ordem social. Trata-se mais do que "apropriação", estamos nos perguntando sobre quem de fato produz trabalho e imaginação. Dizer que o carnaval é revolucionário é relativamente simples, basta escamotear a forma como seus aspectos revolucionários são cooptados e amortizados pelos interesses econômicos.

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

Go West! Notas sobre autoconsciência e aceleração















Autoconsciência: essa bravata hegeliana que rima com autodestruição. O "para si" de uma autoconsciência corresponde a sua duplicação interior, reconhecimento, "pura forma vazia: o 'eu sou eu'" (Sartre). Trata-se uma aposta arriscada através da qual o distanciamento pode vir a implicar em prepotência — e "o ser" resta afrontado por espelhamento, comparação, excesso de si. O reconhecimento do igual para que haja representação e, portanto, duplicação.

O rap e suas técnicas africanas, jamaicanas e norte-americanas de enunciação ritmada, que também manifestam uma autoconsciência, produzida porém pelo jogo/fluxo das sílabas e vogais, entonações e quebras, aceleração e ralentação, timbres e melodias. Qual a função do ritmo na fonação do enunciado se não produzir algum grau de sintonia e arrastamento entre quem fala e quem ouve, entre o espaço-tempo do flow, o território e suas ocupações?

Autoconsciência em Hegel: o espaço de uma duplicação que deglute a si mesma (tautologia); o rap como técnica de enunciação: a duplicação como o efeito de um movimento exterior que produz sintonia rítmica e vibratória. É evidente que no segundo exemplo a história se torna algo mais problemático do que o caráter interno de uma percepção que se reconhece a si mesma — e nesse sentido talvez não exista nada mais revolucionário na passagem do XX para o XXI do que os Racionais MC's e a forma como produziram uma autoconsciência coletiva que percorreu todas as perifas do país — concretizando a profecia de Candeia: "e o samba que criei tão divino ficou, agora sei quem sou". 

E, recentemente, nada mais perturbador do que tudo o que se relaciona ao nome de Kanye West.

West assumiu que seu personagem, sua música, suas opiniões, sua "imagem" se tornariam o vetor capaz de concentrar todas as encruzilhadas e conflitos do nosso tempo: a "saúde mental", a dissolução da política, o neoliberalismo de causas, a estética nervosa e misteriosa, as cintilâncias do fim do mundo, o problema do valor, da máquina e do corpo-máquina, a forma como a questão racial vem sendo empacotada para pronta entrega (Amazon), o empreendedorismo, o absurdo efervescente, a forma como os negócios podem se transformar em motivo de uma cegueira, o fantasma do fascismo, o meme...

Hegel quer prolongar uma ficção, seu solipsismo PRECISA ignorar o levante haitiano, sob pena de manifestar a contradição colonial em praça pública.

O rap dos Racionais é a autoconsciência que delira uma coletividade, cujo caráter fraternal nasce das "experiências vividas do negro". 

Já Kanye é a autoconsciência duplicada pela impossibilidade de uma coletividade, de uma fraternidade: é o movimento patológico de uma autoconsciência que não se duplica nem interna, nem externamente, provocando curto-circuito em todos os mecanismos de representatividade. Alteridade suspensa. O recurso a si mesmo — sujeito ou boneco ou andróide — foi interrompido, não funciona. Se Michael foi o corpo biônico, prêt-à-porter, farmacobiomaquínico, concebido a partir de uma artesania complexa, jogando de toda forma com os ritmos da rua e da roda de malandragem, posteriormente esquadrinhado até a morte para render na lógica da indústria cultural, Kanye é o proprietário irresponsável, o experimento inconsequente, a impossibilidade de render qualquer tipo de homenagem a tudo o que de mais abstrato o capitalismo do século XX logrou realizar. É desconcertante que ele dispute o tênis e a marca do tênis. É a reterritorialização paródica da autoconsciência que falha em se duplicar para dentro (do eu) ou para fora (nos braços da multidão). Mais do que um reflexo do "estágio final do capitalismo", West parece acelerar seu destino de forma mais eficaz que aqueles filósofos do aceleracionismo... Ritmo e aceleração transbordam da música para travar a máquina.

Go West, quer dizer, prejudique tudo o que produz falso bem estar e "consciência limpa", pois daqui em diante de nada te servirão.