terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Sobre um disco de gafieira que faz 10 anos: Thiago França – Malagueta, Perus e Bacanaço (2013; YB Music/Goma Gringa, Brasil)



Sobre um disco que faz 10 anos:

Thiago França – Malagueta, Perus e Bacanaço (2013; YB Music/Goma Gringa, Brasil)

 

1.

O termo “gafieira” se consolida por volta dos anos 40, quando as big bands norte-americanas são disseminadas mundo afora, transformando inclusive a dança de salão carioca. As grandes orquestras brasileiras, como a Tabajara de Severino Araújo, incorporaram criativamente os ritmos e formas de tocar das big bands, com a contribuição preeminente do samba e do choro. Observa-se também a inclusão de gêneros estrangeiros como o jazz, a rumba, a salsa e demais inflexões latinas, ao passo que ritmos como o lundu e o maxixe adquirem feições renovadas. No final da década de 70, a “gafieira universal” da Banda Black Rio adiciona o funk à combinação de ritmos, abalando a crença na suposta restrição do termo gafieira à prática do samba. Esta concepção abre o leque de possibilidades à incorporação de outros gêneros e estilos de tocar, arranjar, dançar, que não aqueles que marcaram a gafieira em seus primórdios. Assim, o termo pôde enfim ser compreendido como um espaço de sínteses culturais com o intuito exclusivo de conduzir à dança e à festa.

 

2.

Os cinquenta anos do conto “Malagueta, Perus e Bacanaço”, assinado pelo escritor paulistano João Antônio, serve de fio condutor para que o saxofonista mineiro Thiago França retome a noção de gafieira por caminhos em nada óbvios. Seguindo em direção oposta à gafieira um tanto quanto padronizada de álbuns como Zeca Pagodinho (Acústico MTV Vol. 2 – Gafieira) e Nei Lopes (Samba a Rigor), França recorreu a uma forma particular de interpretar o carnaval de gêneros da gafieira, recriando-a sob outras configurações. Não se trata, porém, de uma “atualização”, como se o samba de gafieira, o choro e o bolero precisassem se reafirmar através da mescla com gêneros mais “contemporâneos” como o funk ou o rap. Mais do que o repertório, é a forma de arranjá-lo e tocá-lo — pesada, direta, econômica —, mas também a forma de gravá-lo, que distingue Malagueta… no panorama da música instrumental brasileira.

 

3.

Neste sentido, é preciso lembrar que durante a década de 80, os processos de gravação comprometeram a sonoridade dos instrumentos de orquestra, principalmente os sopros, e o mercado foi invadido por uma concepção empobrecida do termo fusion. Só em meados dos anos 90, quando a gravação digital permitiu aos músicos fugirem dos esquemas de produção das grandes gravadoras, houve um aumento da pesquisa por outras forma de se captar, gravar e mixar. Malagueta… testemunha a consolidação de uma outra consciência do problema do timbre e da execução em gêneros considerados “tradicionais”, a julgar pelo timbre forte e pelo punch com que cada instrumento soa.

 

4.

Talvez a referência mais próxima a Malagueta… seja Confusão Urbana, Suburbana e Rural, álbum gravado por Paulo Moura em 1976, no qual o saxofonista promove o encontro entre a gafieira primordial e a “gafieira universal”, investindo na ampliação do espectro de estilos. São marcantes a presença da música do norte do Brasil (o carimbó) e de experimentos como “Bicho Papão/Tema do Zeca da Cuíca”, parceria climática de Moura com Martinho da Vila. Mais próximo do “samba no prato” de Edison Machado do que da bossa nova ou do samba de morro, Moura conseguiu obter efeitos sonoros que contemplavam e renovavam simultaneamente o legado da “dança de salão”. Reduzindo drasticamente o número de músicos do ensemble, consegue obter dinâmicas mais precisas de arranjo, algo próximo ao que realiza Thiago França no presente trabalho.

 

5.

Na interpretação sonora do conto de João Antônio, França embala os três personagens com sua releitura particular da gafieira, incluindo não só o samba, o choro, o bolero, mas também o sambalanço, o funk e o rap. Cabe também — e esta é a diferença digna de nota — uma dinâmica de interpretação calcada mais na força dos temas que na prática do improviso. São os temas, com suas características efusivas, melancólicas, caricatas, burlescas, os responsáveis por descrever o ambiente social e psicológico que envolve os personagens. Como afirmou o próprio França em entrevista recente: “Eu gosto muito de ter um disco contando uma história, e não é um disco de saxofone. O disco nem tem improviso. O de ‘Malagueta, Perus e Bacanaço’ [a faixa] está dentro da composição, tem ideia de ser uma parte da composição, não tem aquela coisa de chorus, é só tema.”

 

6.

Para construir a narrativa musical do conto de João Antônio, França contou com a contribuição dos parceiros do conjunto Gafieira Nacional, que nos idos de 2011 se apresentava no bar Ó do Borogodó em São Paulo: Rodrigo Campos (voz, cavaquinho, violão e guitarra), Marcelo Cabral (baixo), Welington “Pimpa” Moreira (bateria e percussão), Amilcar Rodrigues (trompete e flughelhorn) e Didi Machado (trombone). O sexteto foi incrementado com a presença de Anderson Quevedo (sax barítono), Kiko Dinucci (voz, guitarra, violão e percussão) e Daniel Ganjaman (hammond, em duas faixas), além das participações especiais da cantora Juçara Marçal, do rapper Rodrigo Ogí e das “locuções” de Romulo Fróes e Maurício Pereira. Ao lado desse time, França conseguiu extrair não somente uma atualização autêntica do termo gafieira, como também um tipo de arranjo mais solto e permeável a pequenas experimentações, que apresentam uma outra possibilidade até mesmo para o próprio “samba de gafieira”.

 

7.

Quatro são os temas instrumentais que dialogam com o passado e o futuro do “samba de gafieira” e demais ritmos de festa. O sambalanço sincopado “Malagueta, Perus e Bacanaço” abre o disco, ressaltando esse gênero que se desenvolve nos anos 60 com fortes influências da gafieira. O cavaquinho serpenteando o ritmo, a seção de metais anunciando maliciosamente o tema, a percussão impassível, introduzem o ouvinte no clima de malandragem. “São Paulo de Noite” é daqueles sambas com forte sotaque paulistano, lembrando as melodias em tom menor de Paulo Vanzolini, mas também aquele tipo de samba oratório de Baden e Vinícius. “Tema do Carne Frita”, homenagem ao artista do pano verde, segue em compasso semelhante: samba sincopado que, ao invés de soar com o peso da orquestra, aposta na sutileza do tema e do ritmo. O pastiche romântico “Bolero de Marly” introduz a prostituta Marly, namorada de Bacanaço, seu cafetão. A repetição da entrada em virtude de um erro de execução, situa o ouvinte no contexto esfumaçado dos prostíbulos e seus músicos da noite. Os ruídos que introduzem a ellingtoniana faixa de encerramento, “De Volta à Lapa”, foram produzidos pelas chaves do saxofone de França. O músico enuncia o tema melancólico, entrecortado pela intervenção dos metais, enquanto Maurício Pereira recita um trecho do conto no qual Malagueta, Perus e Bacanaço se despedem do leitor pedindo um café fiado no bar.

 

8.

Dentre as canções, destaco o sambalanço “Na Multidão (Kiko Dinucci e Romulo Fróes), cantada por Juçara Marçal. Da introdução com os metais dissonantes, à levada de violão indefectível de Kiko Dinucci até o interlúdio (“lá vai mais um pro caixão, sem cortejo e sem perdão”), violão e o saxofone estruturam o ritmo. Outro exemplo nesse sentido, é o “Caso do Bacalau”, escrita e cantada por Dinucci e pelo rapper Rodrigo Ogí, o violão dialogando com os rufares discretos da caixa de bateria, e o flow de Ogí costurando rimas sobre o sambalanço funkeado. Em “Vila Alpina”, belo samba composto e interpretado Rodrigo Campos, vale notar que Dinucci reforça o tamborim com uma sonoridade aguda produzida pela percussão de moedas. Uma das características mais interessantes da música produzida por essa turma de São Paulo é a prática de valorizar o ritmo, e elaborar os arranjos usando os instrumentos harmônicos e melódicos com funções rítmicas de primeira ordem. Quando esse procedimento encontra a canção, o resultado é quase sempre certeiro.

 

9.

Das três vinhetas que apresentam os personagens do conto, duas delas destoam do restante do disco. “Nostalgia (Perus)” se inicia com um fraseado de saxofone que lembra “Lonely Woman” de Ornette Coleman. O tema é sombrio, embora Dinucci, logo nos primeiros segundos, nos situe no território da memória: “é, o joguinho na Vila Alpina…” Já “Fome (Malagueta)”, cuja locução inicial é feita por Romulo Froés (“Fome, a vontade de comer o outro por dentro”), é daqueles free rocks esporrentos, guitarra distorcida aos berros, que introduz o gênio intempestivo de Malagueta. Já “Picardia (Bacanaço)” é um sambão de terreiro com ares de estádio lotado em tarde de domingo. Repleto de síncopes características deste estilo, a cuíca roncando alto, a faixa tem o intuito de apresentar o temperamento festeiro de Bacanaço.

 

10.

Em Malagueta, Perus e Bacanaço, os temas musicais são costurados de forma a narrar a história descrita no conto, na qual três personagens perambulam pela noite em busca de jogo, bebida e mulher. Vale problematizar essa ideia, pois me parece impossível depreender dos temas e arranjos que trata-se da leitura sonora de um conto, isto sendo possível mediante a apresentação da ligação do autor com a estória. Nesse sentido, a própria capa, repleta de informações, é responsável por inserir o ouvinte no ambiente da marginália paulistana dos anos 50. França, porém, não se restringiu aos ritmos daquele tempo, mas apostou em uma interpretação livre, traduzindo sua leitura pessoal através de sonoridades contemporâneas. Estamos, portanto, situados em um contexto narrativo, no qual passado, presente e futuro da cidade (e também da música) se encontram embaralhados.

 

11.

O termo Gafieira é, de certa forma, sucedâneo de contradições e polêmicas que marcaram os termos Pagode e Funk. Como estes, não se resume a uma definição unívoca e identitária, mas articula instâncias aparentemente separadas: uma síntese musical (na qual o “samba de gafieira” é apenas uma das possibilidades); uma dança (na realidade, uma pluralidade de danças, do “coladinho” ao “cruzado” ao “passinho”); e um encontro de músicos e dançarinos com intenções festivas. Malagueta, Perus e Bacanaço é um disco que remete ao passado da gafieira sem recair em nostalgia, a música, mais uma vez, operando este meio de transporte capaz de nos conduzir para uma viagem atemporal. Ao lado de um grupo seleto de grandes músicos, Thiago França transporta a vivacidade da gafieira carioca para o ambiente desvairado da pauliceia dos cinquenta, mas também àquilo que dela ainda sobrevive na urgência da vida contemporânea.


Bernardo Oliveira (em algum momento de 2013)

sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

NÃO SOU NEGRO, SOU KANYE — Kanye West quer liberdade – liberdade branca, por Ta-Nehisi Coates

 




Eu só poderia ter visto isso ali, no chão de madeira encerado do auditório do ensino fundamental, porque era jovem na época, tinha apenas 7 anos e a TV a cabo ainda não havia chegado à cidade e, se tivesse, meu pai não teria acreditado. Sim, tinha que ter acontecido assim, como a sabedoria popular, porque quando penso naquela época, não penso na MTV, mas na tentativa fútil de ficar acordado e navegar pela brancura escancarada dos vídeos de sexta à noite, e lembro que não havia videocassetes entre nós naquela época, então deve ter sido lá que eu vi, no auditório adjacente ao refeitório, onde, após a porção diária de bolinhos de batata e um copo de leite com chocolate, uma divisória de cortina foi puxada para trás e todas as crianças invadiram o palco. E eu estaria lá entre elas, balançando desajeitadamente, ou rastejando sem sair do lugar, ou serpenteando rigidamente, ou girando para trás como um rotor quebrado, e eu teria olhado para cima e visto uma criança, um pouco mais velha, de frente para mim, sorrindo para si mesma. Em seguida, movendo-se pelo chão pulando em saltos alternados, deslizando para trás, andando na lua.

Nada mais acontece assim. Nada pode acontecer assim. Mas isso foi em 1982, e Michael Jackson era Deus, mas não apenas Deus em alcance e poder, embora isso certamente existisse, mas Deus em seu grande mistério; Deus, na maneira como uma criança ouvia falar dele, Deus em como ele vivia entre lendas e tradições, Deus, porque o Walkman ainda era incomum, e eu era jovem e não podia contar com o rádio do carro, porque meus pais moravam perto das emissoras NPR e WTOP. Então as lendas eram tudo o que eu tinha, histórias de feitos notáveis e fantásticos: Michael Jackson mediou guerras de gangues; Michael Jackson era o rei zumbi: Michael Jackson bateu o pé e as pedras viraram luz. Até mesmo seus apetrechos pareciam além de mim, a jaqueta com tachas, a luva cintilante, a calça de couro — vestimenta do divino, intocável para mim, uma criança mortal que semicerrou os olhos para ver o sábado passado, que nem veria a Motown 25 até passar dos 30 anos, que não teria sequer um exemplar de Thriller até que fosse um homem adulto, que já não acreditava em milagres, e sabia, no meu coração, que se o Deus do homem negro não estava morto, certamente estava morrendo.

E ele sempre esteve morrendo de vontade de ser branco. Foi o que minha mãe disse, que dava para ver a morte em todo o seu rosto, a decomposição, o afinamento, que ele estava desaparecendo em algo branco, ressecando em algo branco, apagando-se, para que esquecêssemos que ele um dia foi a linda África e a África marrom, e esqueceríamos seu nariz de faraó, esqueceríamos seus olhos vastos, seu sorriso deslumbrante, e Michael Jackson foi apenas o extremo do que parecia ser uma tendência naqueles anos pós-disco. Porque quando penso naquela época, penso em homens negros nas capas de álbuns sorrindo para mim com cachos Jheri e lentes de contato azuis e penso em mulheres negras que pareciam, por algum decreto místico, serem todas da cor de pastas de papel pardo. Michael Jackson poderia estar morrendo de vontade de ser branco, mas não estava morrendo sozinho. Estávamos todos lá fora, nascidos, como ele, na lama deste país, nascidos n'O Fundo [N. do T.: the sunken place?]. Sabíamos que estávamos ligados a ele, que a sua destruição física era a nossa destruição física, porque se o Deus negro, que fez dançar os zumbis, que negociou grandes guerras, que transformou a pedra em luz, se ele não pudesse ser bonito à sua maneira, então, que esperança tínhamos nós — mortais, crianças — de algum dia escaparmos do que eles nos ensinaram, de algum dia escaparmos do que disseram sobre nossas bocas, sobre nossos cabelos e nossa pele, que esperança tivemos de escapar da sujeira? E ele foi destruído. Aconteceu bem antes de nós. Deus foi destruído e não pudemos deter sua destruição, embora o amássemos, porque quem pode realmente impedir um deus negro que morre de vontade de ser branco?


UM "irmão", um companheiro portador da "energia do dragão", contrariado com aqueles que se opuseram enquanto supressores de "questões impopulares", "polícia do pensamento" cujas táticas eram "baseadas no medo". Foi Trump, argumentou West, e não Obama, quem deu-lhe esperança de que um garoto negro da zona sul de Chicago pudesse ser presidente. "Lembra quando eu disse que iria concorrer à presidência?", disse Kanye em entrevista ao apresentador de rádio Charlamagne Tha God. "Eu tinha pessoas próximas a ele, amigos meus, fazendo piadas, fazendo memes, falando merda. Agora é tipo, ah, foi provado que isso poderia ter acontecido."

Há uma lógica inegável aqui. Tal como Trump, West é um persistente irradiador de luzes intensas e fracas — mas principalmente fracas. (Jay-Z, Beyoncé, Barack Obama e Nike vieram para uma arenga.) Assim como Trump, West é narcisista, “o maior artista de todos os tempos”, afirmou ele, dirigindo o que em breve seria “a maior empresa de vestuário da história humana." E, tal como Trump, West é surpreendentemente ignorante. Chicago era “a capital mundial dos assassinatos”, afirmou West, quando na verdade Chicago nem sequer é a capital dos assassinatos da América. A ignorância de West não é apenas profunda, mas também perigosa. Pois se Chicago é realmente “a capital mundial do assassinato”, então talvez precise da ocupação federal ameaçada por Trump.

É tão difícil discutir honestamente a ameaça sem esquecê-la. É difícil porque o que aconteceu na América em 2016 já acontece há muito tempo na América, antes de existir uma América, quando o primeiro Caribe foi atacado com baioneta e o primeiro africano foi entregue acorrentado. É difícil expressar a profundidade da emergência sem curvar-se ao mito da unidade americana do passado, quando na verdade a unidade americana sempre foi a unidade de conquistadores e colonizadores — unidade baseada na matança de índios, apropriação de terras, funerais nobres e galantes General Lee. Aqui está um país que se especializou em definir o seu próprio desvio para que o criminoso, o imoral e o absurdo se tornassem a base, para que mesmo agora, no meio da longa tragédia e deste desastre recente, os guardiões da verdade se unam à bandeira do mentiroso.

Nada é novo aqui. A tragédia é tão antiga, mas mesmo dentro dela existem atores — alguns que escolheram a resistência, e alguns, como West, que, por mais alegremente que sejam, escolheram a colaboração.

West pode alegar ignorância — “Não tenho todas as respostas que uma celebridade deveria ter”, disse ele a Charlamagne. Mas nenhum cidadão que reivindique uma parcela tão grande da praça pública como West pode obter indulto. As tábuas do Trumpismo são claras — o reforço na proibição dos muçulmanos, o aprimoramento dos bodes expiatórios dos latinos, o endosso da conspiração racista, a negação da ciência, a torcida dos charlatões econômicos, a insistência dos policiais bárbaros e dos chefes bárbaros, a torcida dos torturadores e a condenação de países inteiros. A dor destas políticas não é distribuída igualmente. Na verdade, o governo de Donald Trump baseia-se na imposição da miséria máxima aos paroquianos mais fervorosos de West, as porções da América, a sujeira, que tornaram o deus Kanye possível.

E ele é um deus, embora nascido em uma época diferente e em uma necessidade diferente. Jackson ressuscitou nos últimos dias de enigma e admiração; West, numa era acessível, em que cada trepada é um tweet e cada defecação é uma atualização de status. E talvez, dessa forma, West tenha feito algo mais notável, mais surpreendente do que Jackson, porque ele é um homem sem mistério, superexposto, que prende a atenção do mundo simplesmente pela qualidade consistente, surpreendente e quase incomparável de seu trabalho.

Ele chegou até nós com Bin Laden, em 11 de setembro de 2001 — a vida emergindo da morte em massa — e acho que é mais correto dizer que ele chegou até mim naquele dia, porque West já vinha produzindo pelo menos cinco anos antes. Tudo o que sei é que quando ouvi a produção dele em The Blueprint, senti que era aquela que eu estava esperando. Eu ainda era então um conservador estético, um mochileiro vulgar que acreditava verdadeira e absurdamente que ternos brilhantes haviam quebrado a cifra, arranhado o disco e matado meu amado hip-hop. Minha música tema alternava entre “I Used to Love H.E.R.” do Common, “What They Do” do The Roots e “Time’s Up” do O.C. A triste advertência de Slick Rick — “O tempo deles é limitado, hard-rocks também” — era meu mantra, de modo que naquele dia do assassinato em massa, quando Kanye West me cumprimentou, cortando o Jackson 5, tirando de Bobby “Blue” Bland, vindo de David Ruffin, chegou com Jay-Z, um MC que remonta à Idade de Ouro, eu não parecia estar simplesmente na presença de um grande álbum, mas testemunhando o cumprimento da profecia. Isso foi uma loucura, e foi a grande bênção da minha vida que o Twitter não existisse naquela época, para atingir a maioridade nos últimos dias de mistério, porque Deus sabe quantas vezes eu teria dito que o hip-hop estava morto, e Deus sabe quantas vezes eu teria dito que “Incarcerated Scarfaces” [N. do T.: de Raekwon] era o auge da civilização. Perdoe-me, mas eu era assim, um velho antes do meu tempo, e tudo o que posso dizer é que quando ouvi Kanye, senti-me novamente em comunhão com algo que sentia ter sido perdido, um sentimento de ancestralidade em cada sample, um som que voltava ao separado e desigual, que voltava ao escravo. 

Isso foi há quase 20 anos. É fácil esquecer há quanto tempo West está nisso, que ele tem sido excelente há tanto tempo, que há adultos por aí, agora, que nunca viram o pôr do sol no império de Kanye West. E ele fez música para eles, para os jovens e futuristas, não para os velhos e conservadores como eu, e assim evitou a tentação da nostalgia, dos samples de soul e das visões do que o hip-hop tinha sido. E assim, para aqueles que eram crianças na era de The Blueprint, ele se tornou um deus, vindo daquela geração criada na era de ouro do hip-hop, e ainda assim nunca sendo algemado por ela. (Mesmo depois dos acontecimentos da semana, não chocaria ninguém se o iminente álbum de West fosse o melhor do ano.) 

West tem 40 anos, um produto da era do Crack e dos anos Reaganomic, um homem que se lembra da queda da Challenger e do The Cosby Show antes da sindicalização. Mas ele nunca caiu na amargura de seus pares. Ele não podia ser encontrado perseguindo fantasmas, latindo para Soulja Boy, intimidando Lil Yachty e, de outra forma, gritando com as nuvens. Em seu favor, West parecia se lembrar dos rappers tendo que defender sua música como música, contra o fogo fulminante dos mais velhos. E assim, embora hoje você encontre alguns desses mesmos artistas, outrora alvos, adotando a pose hipócrita dos jazzistas com artrite que eles venceram, você não encontrará Yeezy entre eles, porque Yeezy nunca envelheceu.

Talvez este tenha sido o problema.

Tudo está mais sombrio agora e somos forçados a concluir que um ethos de “garotas de pele clara e algumas Kelly Rowlands”, de “vira-latas” e “trinta cadelas brancas”, merecia mais escrutínio, que a adoção da bandeira de um proprietário de escravos justificava mais investigação, que um analfabetismo violento deveria ter dado uma pausa, que a maratona não nasceu inteiramente de uma visão aguçada, e que a disputa vagabunda com Taylor Swift não foi apenas uma raiva justificada, mas foi algo mais intermitente e preocupante, evidência de um tema emergente — uma escassez de sabedoria e, mais ainda, uma escassez de entes queridos poderosos o suficiente para desempenhar a função mais essencial do próprio amor, protegendo o amado da destruição. 


QUERO contar a vocês uma história sobre uma época, ainda em andamento no momento em que escrevo, quando quase perdi a cabeça. No verão de 2015, publiquei um livro e, ao fazê-lo, tornei-me o destinatário improvável de uma mera fração do tipo de celebridade que Kanye West desfruta. Foi uma pequena fama literária, não o tipo de fama que acompanha os Grammys e os Óscares, e pode não ter havido pior candidato para isso. Eu era o segundo mais novo de sete filhos. Minha vida tinha sido inconsequente, embora um pouco divertida. Nunca me destaquei por nenhum motivo específico, exceto pela altura, e mesmo isso foi desperdiçado pela falta de habilidade na quadra de basquete. Mas aprendi a usar essa normalidade a meu favor. Eu era jornalista. Havia algo suave e nada ameaçador em mim que fazia as pessoas quererem conversar. E eu tinha a capacidade de desaparecer nos acontecimentos e assim, dessa forma, relatar uma cena. Em casa, construí-me em torno de coisas comuns — família, amigos e comunidade. Talvez eu nunca seja um escritor célebre. Mas eu era um bom pai, um bom parceiro, um amigo decente.

A fama fodeu com tudo isso. Eu apareceria para fazer meu trabalho, para reportar e me tornaria, se não a cena, então parte dela. Eu levava minha esposa para almoçar para discutir algum assunto importante em nossas vidas e voltava para casa, apenas para descobrir que o casal ao nosso lado havia tirado uma foto secretamente e twittado. O sonho da família de comprar uma casa, finalmente concretizado, tornou-se notícia. A conta do Instagram do meu filho foi vasculhada em busca de citações relevantes. E quando eu decidisse me retirar, para restringir o acesso, isso apenas ampliaria a história.

Foi a coisa mais estranha. Eu me sentia como sempre fui, mas tudo ao meu redor estava deformado. Minha percepção de que fazia parte de uma comunidade de escritores negros se desintegrou diante de mim. Escritores, que eu amava, que foram mentores, alegavam simbolismo e traição. Escritores, que eu conhecia pessoalmente, que considerava companheiros de luta, recorreram ao Facebook e ao Twitter para anunciar a minha mais recente heresia. Ninguém gosta de críticas, mas a essa altura eu já havia aceitado a minha parte. A novidade foram as críticas que senti terem origem tanto no que escrevi como na forma como foram recebidas. Um dos meus melhores amigos, que trabalhava no rádio, teve a ideia de fazer um quadro engraçado e autodepreciativo sobre mim e meu estranho esnobismo. Mas quando foi ao ar, a peça se preocupava principalmente com essa fama recém-descoberta, como isso me mudou e como tudo isso o fez se sentir. Eu não estava preparado. O trabalho de escrever sempre foi, para mim, o trabalho de um fracasso duradouro. Nunca me ocorreu que também seria necessário trabalhar para suportar o sucesso. 

Os incentivos para um grande ego estiveram sempre presentes. Pediram-me para falar sobre assuntos dos quais meu trabalho não evidenciava conhecimento. Fui convidado para fazer um tour de palestras em um jato particular. Me pediram para dirigir um videoclipe. Comecei a entender como e por que escritores famosos vacilam, porque escrever é difícil e há “escritores” que só fazem esse trabalho porque precisam. Mas agora estava claro que havia outro caminho: uma vida de palestras, apresentações de escritores visitantes, galas, comitês de premiação. Havia expectativas sombrias. Lembro-me de ir com um amigo visitar um escritor negro mais velho, um estadista mais velho. Ele me avaliou e a primeira coisa que me disse foi: “Você agora deve estar comendo geral!”

O que senti, em tudo isto, foi uma profunda sensação de isolamento social. Eu entrava em uma sala, sabendo que alguma cópia minha, alguma mistura de entrevistas, clubes do livro e avaliações particulares havia me precedido. A perda de amigos, de camaradas, de comunidade, foi angustiante. Fiquei cético e distante. Evitei jantares em grupo. Na conversa, avaliei todos, convencido de que estavam tentando extrair algo de mim. E foi aí que começou a paranóia, porque a grande maioria das pessoas era gentil e normal. Mas eu nunca soube quando isso deixaria de ser o caso.

Além dos incentivos distorcidos, das amizades destruídas, da paranóia, da ruína da comunidade, havia uma parte de mim que tive de enfrentar. Eu estava mais o solitário possível que já me senti na vida — e parte de mim adorou isso, adorou o jeito que eu entrava em um restaurante em Nova York e fazia a espera desaparecer, adorava os brindes aleatórios, os Air Force Ones verdes, os corredores azuis. Adorei as estrelas de cinema, rappers e jogadores que citaram meu trabalho, e havia muito mais por aí esperando para ser amado. Eu adorava minha pequena fama porque, embora tivesse negociado a paz com toda a minha banalidade em Baltimore, com a forma como desapareci na multidão, com o quão normal eu realmente era — e embora tenha decidido cultivar, como diz Emerson, meu próprio terreno, outros hectares inteiros apareceram diante de mim. Quase não importava se eu reivindicasse aqueles acres ou não, porque quem é você se, mesmo fazendo o bem, sente o desejo de fazer o mal? O terrível daquela pequena fama foi como ela me despiu, me despiu da auto-ilusão e mostrou como eu poderia ser facilmente arrebatado, como parte de mim queria ser arrebatada, e mesmo que ninguém jamais percebesse, mesmo se nunca agi de acordo com isso, agora eu sabia disso, sabia que poderia amar aquela pequena fama da mesma forma terrível com que quero viver para sempre, dessa forma, parafraseando Walcott, que os marinheiros afogados amavam o mar. 

Mas eu não me afoguei. Senti a gravidade daquela pequena fama, sinto a sua gravidade ainda hoje, e ela revelou seguranças tão certas quanto inseguranças, razões para preservar a paz. Eu realmente adorava escrever — a emoção insubstituível de transformar uma página em branco, a busca pela palavra certa, como peças de um quebra-cabeça, a cirurgia de costurar parágrafos ímpares. Adorei como isso pertencia a mim, um ato privado de criação, um fato que se dissipou no momento em que pisei na frente de uma multidão. Então, realmente fui eu. Mas o mais importante, penso eu, eram as coisas que estavam além de mim, a rede de conexões pré-fama ao meu redor – filho, cônjuge, irmãos, irmãs, amigos — a maioria dos quais se manteve firme e permaneceu.

O que eu seria sem essa teia e com uma fama maior e mais ameaçadora? Penso em Michael Jackson, cujo pai batia nele e o chamava de “narigão”. Penso na triste história do suposto laptop roubado de West. (“And as far as real friends, tell my cousins I love ‘em / Even the one that stole the laptop, you dirty motherfucker.”) Penso em West confessando um vício em opióides, que teve origem em sua decisão de conseguir lipoaspiração por medo de ser visto como gordo. E eu me pergunto que dor particular levaria um homem a recorrer ao mesmo procedimento que acabou levando à morte de sua mãe.

Não há nada de original nesta história e há amplas evidências, além de West, de que os humanos não foram construídos para suportar o peso da celebridade. Mas para os artistas negros que chegam às alturas de Jackson e West, o peso é maior, porque vêm de comunidades que precisam desesperadamente de campeões. A morte de Kurt Cobain foi uma grande tragédia para sua legião de fãs. A de Tupac foi uma tragédia para todo um povo. Quando artistas negros brilhantes caem no palco, eles não caem sozinhos. A história de West “drogado”, como ele disse, reduzido pelo brilho da mídia à lipoaspiração, não é apenas sobre como ele se sente em relação ao seu corpo. Foi esse Ocidente drogado que apareceu naquele lobby espalhafatoso, com olhos mortos e cabelos loiros, e com a sua própria presença endossou a agenda de Donald Trump.


FINALMENTE vi Michael Jackson fazer o "moonwalk" em 2001, finalmente assisti o mito se transformar em realidade, embora eventualmente exagere no assunto. A essa altura, é claro, eu já tinha visto a fita lendária de sua apresentação na Motown 25, mas de alguma forma ainda não era real para mim, porque eu não havia compartilhado o momento real, naquele momento, porque ainda, depois de todos aqueles anos, lembrou-me da saudade de ter perdido um grande evento, e de tê-lo vivenciado de segunda mão. Mas desta vez eu realmente estava lá, ao vivo enquanto estava no ar — o 30º aniversário da entrada de Jackson no mundo da música pop — e estou grato por isso ter acontecido naquela época, no final daquela era de mitos e lendas, quando a internet era ainda embrionária, e os DVRs não eram onipresentes, o mundo ainda não havia sido acessado no YouTube e os reality shows estavam apenas começando a aparecer no horizonte. Este era um mundo ainda cheio de mistérios, segredos e teorias excêntricas da minha infância, onde a Klan fabricava tênis e engarrafava chá gelado e enviava tudo para o gueto. O que estou dizendo é que esta ainda era uma época, como na minha infância, em que a maior parte das vezes era preciso ver as coisas como elas aconteciam, e se você não as visse dessa maneira, ainda havia uma descrença torturante sobre se elas haviam acontecido de alguma forma.

Acho que isso explica, em parte, os gritos e os desmaios. Jackson estimulou “Billie Jean” e eu senti isso também. Pois quando vi Michael Jackson deslizar pelo palco naquela noite no Madison Square Garden, poucos dias antes da queda das Torres Gêmeas, não o imaginei andando na lua, mas sim andando sobre a água. E o "moonwalk" era a menor das coisas. Ele chicoteou o cabelo e, algemando o microfone, pisoteou a bateria, girou e agarrou o ar. Fiquei surpreso. Havia a questão do rosto dele, que me levou de volta ao ódio por mim mesmo dos anos 80, mas isso parecia não importar porque eu estava assistindo a um milagre — um homem nasceu em um povo que não controlava absolutamente nada, e ainda assim havia alcançado controle absoluto sobre o que sempre importou mais: seu corpo.

E então a música atingiu o clímax. Ele gritou e toda a música desapareceu, exceto um tambor solitário, e o desossado Michael pareceu se separar, até que era só ele e aquela batida de “Billie Jean”, carnal, ancestral. Ele girou os ombros, caiu no chão e depois recuou, travado, parecendo desacelerar o próprio tempo, e eu o vi se afastar de seu corpo, do rosto arrebatado, que queria ser branco, e de tudo o que restava era a alma dele, o presente que lhe foi dado, levado no tambor.

Gosto de pensar que pensei em Zora enquanto assistia Jackson. Mas se não, estou pensando nela agora:

Foi dito, “Ele nos servirá melhor se o trouxermos da África nu e sem nada”. Assim raciocinou o bukra. Eles rasgaram suas roupas para que Cuffy não pudesse levar nada embora, mas Cuffy agarrou seu tambor e o escondeu em sua pele, sob os ossos do crânio. As canelas ele exibia abertamente, pois pensava: “Quem me roubará as canelas quando não vê nenhum tambor?” Então ele riu com astúcia e disse: “Eu, que fui levado para ficar órfão, carrego meus pais comigo. Pois o ritmo não é minha mãe, e Drama é seu homem?" Então ele gemeu alto nos navios e escondeu seu tambor e riu."

Não há como separar o riso dos gemidos, o tambor dos navios negreiros, o rasgar das roupas, o ser levado, da necessidade astuta de esconder tudo o que o tornou humano. E é por isso que o dom da música negra, da arte negra, é diferente de qualquer outro na América, porque não é simplesmente uma questão de talento singular, ou mesmo de tradição, ou linhagem, mas de algo mais grandioso e monstruoso. Quando Jackson cantou e dançou, quando West fez samples ou rimas, eles estão explorando um poder formado sob todas as matanças, todos os espancamentos, todos os estupros e saques que fizeram a América. A dádiva nunca pode pertencer inteiramente a um artista singular, livre de expectativas e escrutínio, porque a dádiva não é mais exclusiva dele do que o sofrimento que a produziu. Michael Jackson não inventou o "moonwalk". Quando West canta: “And I basically know now, we get racially profiled / Cuffed up and hosed down, pimped up and ho’d  down”, o nós é instrutivo.

O que Kanye West busca é o que Michael Jackson buscava: a libertação dos ditames daquele nós. Em sua visita a West, o rapper T.I. ficou surpreso ao descobrir que West, apesar de apoiar Trump, nunca tinha ouvido falar da proibição de viagens. “Ele não sabe as coisas que sabemos porque se afastou da sociedade a tal ponto que isso não o alcança”, T.I. disse. West chama a sua luta de direito a ser um “pensador livre”, e ele está, de fato, a defender um tipo de liberdade — uma liberdade branca, liberdade sem consequências, liberdade sem crítica, liberdade para ser orgulhoso e ignorante; liberdade para lucrar com um povo num momento e abandoná-lo no momento seguinte; uma liberdade Manter-se Firme em seu Território, liberdade sem responsabilidade, sem memória difícil; um Monticello sem escravidão, uma liberdade confederada, a liberdade de John C. Calhoun, não a liberdade de Harriet Tubman, que convoca você a arriscar a sua; não a liberdade de Nat Turner, que te chama a dar ainda mais, mas a liberdade de um conquistador, a liberdade dos fortes construída na antipatia ou indiferença para com os fracos, dos botões de liberdade para o estupro, dos agarradores de buceta, e foda-se, vadia; liberdade do petróleo e das guerras invisíveis, a liberdade dos subúrbios desenhados com linhas vermelhas, a liberdade branca de Calabasas.

Seria bom se aqueles que procuram usar os seus talentos como entrada para outro reino o fizessem com o mesmo cuidado que tiveram no seu ofício. Mas os Deuses são inconstantes e a história desta expectativa é confusa. Stevie Wonder lutou contra o apartheid. James Brown apoiou um Nixon racista. Existe um Ray Lewis para cada Colin Kaepernick, um O.J. Simpson para cada Jim Brown, ou, o que é mais pungente, apenas outro Jim Brown. E sofremos por isso, porque estamos conectados. Michael Jackson não apenas destruiu seu próprio rosto, mas endossou a destruição de todos aqueles feitos de maneira semelhante.

As consequências da visão analfabeta de Kanye West sobre a América e sua história são, no mínimo, mais diretas. Para seus fãs, o que importa é a qualidade de sua arte, e não seus pronunciamentos. Se o seu próximo álbum for ótimo, o namoro com Trump será o prólogo. Se for ruim, será um prenúncio. Em qualquer caso, o que restará é o Ocidente emprestando o seu aval, bem como a sua plataforma Twitter de cerca de 28 milhões de pessoas, à retórica racista do movimento conservador. Os pensamentos de West não são originais — a citação apócrifa de Harriet Tubman e a noção de que a escravatura era uma “escolha” ecoam o antigo tropo de que a escravatura não era assim tão má; o mito de que os negros não protestam contra o crime na sua comunidade é puro giulianismo; e o desejo de West de “ir a Charlottesville e falar com pessoas de ambos os lados” é uma extensão da resposta de Trump à catástrofe. Estes não são pensamentos perdidos. São a propaganda que justifica a supressão dos eleitores e os alimenta com brutalidade policial e minimiza o assassinato de Heather Heyer. E Kanye West agora é porta-voz disso.

Serão os jovens das classes desprezadas da América que pagarão um preço por isso, as crianças separadas dos pais na fronteira, as mulheres que lutam para controlar os órgãos reprodutivos dos seus próprios corpos, o soldado transgênero que luta pelo seu emprego, os estudantes que não ousam voltar para casa por medo de uma “proibição de viagens”, da qual West nunca ouviu falar. West, à sua maneira, provavelmente pagará também pela sua definição tênue de liberdade, em oposição a uma que encara a história, as tradições e a luta não como um fardo, mas como uma âncora num mundo caótico.

Muitas vezes é mais fácil escolher o caminho da autodestruição quando você não considera quem está levando consigo, morrer bêbado na rua se você vivencia a privação como se fosse sua, e não a privação da família, dos amigos e comunidade. E talvez isso também seja ingênuo, mas me pergunto o quão diferente sua vida poderia ter sido se Michael Jackson soubesse o quanto seu rosto verdadeiramente negro estava ligado a todos os nossos rostos negros, se ele soubesse que quando ele se destruiu, ele estava destruindo parte de nós também. Eu me pergunto se a vida dele teria sido diferente, teria sido mais longa. E então, para Kanye West, eu me pergunto o que ele poderia ser, se pudesse se encontrar de volta à conexão, de volta àquele lugar onde ele buscava não uma liberdade desconectada do “eu”, mas uma liberdade negra que o chamasse de volta ao osso e tambor, de volta a Chicago, de volta a casa.


The Atlantic 07/05/2018
Tradução instrumental: Bernardo Oliveira + IA