quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Lonnie Holley – Keeping a Record of It (2013; Dust-to-Digital, EUA)

























Nem tudo o que se pode esperar dos artistas que estreiam depois dos 60 se restringe ao relato criativo de suas vivências. Para a maioria da crítica na época, o canto de Clementina de Jesus constituía o testemunho do cantos dos escravos, a preservação de um repertório que possivelmente sucumbiria ao esquecimento por uma série de fatores que não cabe descrever aqui. Boubacar Traoré e Cartola, dois artistas que estiveram em voga na juventude e amargaram o esquecimento, conseguiram, em contexos diferentes, refazer suas respectivas carreiras sobre os feitos do passado. Esta foi a tendência mais ou menos comum nas resenhas sobre Keeping a Record of It, segundo álbum de Lonnie Holley, contendo canções compostas em 2006, 2010 e 2011 (o álbum pode ser escutado aqui). Provavelmente em função da disponibilidade do artista em revisitar com pujança narrativa a morte de seus sobrinhos em um incêndio, a luta para manter seu quintal-galeria em Birmingham, o preconceito que enfrentou por sua aparência, profissão e estilo de vida. “Mas eu faço arte e fiz esse disco porque acho que é importante. É importante para mim manter um registro da minha vida”, escreve Holley no encarte.

Lonnie Bradley Holley, também conhecido como “The Sand Man”, nasceu há 64 anos em Birmingham, no Alabama. Estreou como cantor e compositor aos 62 anos no álbum Just Before Music, lancado pelo mesmo selo. Sétimo em uma linhagem de 27 filhos, Holley adquiriu experiência percorrendo o roteiro completo do preconceito racial norte-americano. Começou sua vida artística em 1979 esculpindo lápides em homenagem a dois sobrinhos que morreram em um incêndio. Em meados da década de 1980, passou a incluir pinturas e esculturas realizadas a partir de material encontrado em lixeiras e ferro velho, transformando seu quintal e arredores em um ambiente imersivo visitado por curadores e pesquisadores do mundo inteiro. No final de 1996, recebeu uma notificação de que sua propriedade se encontrava justamente na área de expansão do Aeroporto Internacional de Birmingham e que seria desapropriada. Um acordo possibilitou a Holley levar sua família e suas obras para uma propriedade maior em Harpersville. Mas a aparência do artista, suas obras e o caminhão feito de material reciclado (para alguns, “lixo”) que transportava seus pertences repercutiu negativamente na pequena cidade do Alabama.

Como na obra de Bispo do Rosário, cada palavra, som ou objeto que atravessa o cotidiano é submetido ao escrutínio de uma razão superior, que se transforma em matéria-prima para exprimir um universo próprio. Para além da imagem retórica, este “universo próprio” é reafirmado em cada uma de suas sete faixas, a partir do equilíbrio entre subjetividade, experiência e imaginação. Inspirado em uma viagem imaginária à África, “Six Space Shuttles And 144,000 Elephants” (gravada em 2006) abre com uma explosão primordial que nos introduz neste universo. Na sequência, o tecladinho ingênuo acompanhado por precários presets de bateria e um canto cuja procedência não se identifica imediatamente. Seria do Caribe? De Nova Orleans? Por todo o álbum, o canto de Holley será o fio de Ariadne com o qual o autor nos guiará por entre as vielas e paisagens desse universo pessoal. Pense em Horace Andy, em Paul St. Hilaire, em Louis Armstrong, em Aaron Neville, mas sobretudo, na totalidade do canto da diáspora, o canto proveniente do “Black Atlantic”, a intensidade da combinação de melismas e articulações silábicas que deram forma à instrumentação do jazz e à linhagem do gospel e dos spirituals que geraram o soul.



Em “The Start of a River’s Run (One Drop)” (2011), o cantor é acompanhado durante sete minutos apenas por timbres de kalimba impregnada por efeitos (delay?). O canto é extremamente emotivo e indica um ambiente de entrega e espontaneidade. Holley improvisa os versos e melismas com a kalimba digital, enquanto parece acompanhar batendo os pés no chão. Os versos são entoados como uma prece, mas possuem um viés filosófico inegável, metáfora da vida enquanto devir. O rio de Heráclito, revisitado por um indivíduo que parece habitar simultaneamente o passado e o futuro:

“River running
Old river running
River running
Been running so long
Had to run on down
From mountain high
To valley low
River kept running
Oh, let me tell you
It ran for your grandmother
It ran for your grandfather
It ran for your mother
And your father too
So let me tell you children
What the river gonna do
Gonna keep on running
Gonna run for you
See, one day I had to cross the river
I had to cross cross cross cross cross the river
I had to cross the river
Just for you.”



Na terceira faixa, o nocaute poético em “Mind On” (2010). Mais uma vez, Holley revela grande habilidade com a poesia, remodelando as palavras através do canto sinuoso e repetindo “mind on” como um mantra: “See, your mind can be on so many things.” (“Veja, sua mente pode ser tantas coisas.”). Nota-se também o deslocamento de sentido possibilitado pela utilização ambígua da palavra mind, que tanto pode se referir ao cuidado de si, quanto ao cultivo de nossas capacidades. Em relação ao aspecto sonoro, se acompanharmos o andamento em 2/4 podemos até mesmo intuir a batida do samba, com a marcação do bumbo e um som de lata que executa a parte do tamborim. Não se trata de uma referência de todo absurda, se a contextualizarmos na diáspora afro-americana.




Na sequência, uma vinheta na qual se pode ouvir Holley conversando com amigos, ambientando ainda mais o ouvinte no epicentro de suas vivências. Valendo-se do overdub como forma de duplicar a voz de Holley, “Sun & Water” (2011) conta com a participação da artista plástica Lillian Blades na composição e voz. “From the Other Side of the Pulpit” e “Keeping a Record of It” (2011), ambas com a participação de Bradford Cox (Deerhunter/Atlas Sound) e Cole Alexander (The Black Lips), são grandes jam sessions que acrecentam bateria e guitarra às kalimbas e à voz de Holley. Aos poucos percebe-se a estrutura básica de composição se desenrola continuamente, enquanto Holley projeta dejetos ruidosos sobre pre-sets de bateria. Poesia e sonoridade são combinadas de forma improvisada e transformadas incessantemente conforme o contexto, seja evento, concerto ou gravação. Não há influência claramente declarada, todas as composições pairam serenamente sobre gêneros e rótulos.






















Como na música de Clementina, Cartola e Traoré, o talento de Lonnie Holley não se esgota no testemunho e no registro de época, extrapolando o campo da vivência em direção a uma arte sem paralelos na música atual. Como afirma o título, Keeping a Record of It é um registro de suas vivências, mas que se dá através da síntese entre expressividade do canto negro norte-americano, a imponderabilidade do improviso e o aspecto cósmico das sonoridades digitais. O método, análogo ao das artes plásticas, é calcado na reciclagem e interconexão entre elementos díspares, como nas colagens de Romare Bearden e no expressionismo cotidiano de Horace Pippin e Jacob Lawrence. Ao fim do disco, a plena certeza de que Lonnie Holley é um artista capaz de endereçar sua arte a um futuro ainda mais distante.

Bernardo Oliveira