domingo, 24 de agosto de 2014

Sobre "Her", de Spike Jonze



















Em meados dos anos 90, quando intensifica-se a convergência entre equipamentos digitais e analógicos, cineastas como Spike Jonze e Michel Gondry obtiveram resultados visualmente expressivos, justificando para alguns o prenúncio de uma nova era do audiovisual. Se encararmos especificamente o trabalho de Jonze do ponto de vista da valorização do "truque" visual", este movimento indicou a retomada de uma dimensão artesanal da produção audiovisual, em parentesco com a "mágica" de Mélies e o virtuosismo de Jan Svankmajer, turbinada mais tarde pelo advento dos computadores super velozes.

Porém, cada lançamento tornava evidente o fato de que, face às tendências críticas manifestadas pelos filmes, faltava-lhes a densidade na abordagem de temas contemporâneos como a solidão e a incomunicabilidade. A maioria dos filmes falhavam no modo como os autores buscaram equilibrar a tendência à ironia ultrareferencial dos memes (Quero ser John Malkovich) e a criatividade delirante (e, por vezes, gratuita) à moda dos filmes de Jodorowski, como se pode observar em Adaptação.  

Perceptível nos videoclipes, essas características persistem em seus filmes. Em Her não parece ser diferente. É notável o modo como o autor conduz a interação do personagem "humano" com o "sistema operacional" (à esta altura, ambos cautelosamente entre aspas). A forma como ele representa a gradual construção de uma consciência artificial, que se constitui pelo acúmulo de informações e experiências. A abordagem arrojada dos regimes de consciência, indicando rimbaudianamente que "o eu é sempre um outro".

Porém, quando se trata de produzir uma meditação sobre o amor, a morte e a tecnologia, temas com os quais costuma trabalhar, Jonze investe em uma abordagem pueril da existência e das relações interpessoais. Sob seu ponto de vista, a humanidade se vê ameaçada por uma sombra constante, sucumbindo em virtude de uma comunicação frágil, débil, vulnerável. Segundo uma leitura possível do filme de Jonze, a sombra é produzida pela solidão, a potência da "incomunicabilidade" esmaga os urbanoides; a presença terrivelmente próxima do "outro" constrange a liberdade individual; a vacuidade afetiva dos bate-papos implica na companhia regular dos gadgets eletrônicos, seres frios e silenciosos.

Mais eis que surge o sistema operacional que conversa, que aprende, que troca e, assim, participa da cultura. Em uma palestra recente, o cosmólogo Luiz Alberto Oliveira afirma que um dos acontecimentos mais intrigantes e decisivos dos próximos séculos será o encontro entre o registro do humano ao qual estamos habituados e o homem biodigitalizado (ou algum dispositivo artificial dotado de inteligência, cada vez mais desenvolvidos e capacitados). Ao invés de explorar o potencial futuro desta interação, Jonze preferiu seguir o caminho do drama e da expiação dos humanos pelo excesso de conhecimento. Her é uma ode não ao futuro (im)possível, mas aos humanos deserdados por uma hiperinteligência que, no entanto, fora criada e desenvolvida por eles mesmos.  

Por esta perspectiva ambígua, o capital possibilitando e constrangendo o "truque", torna-se inevitável sublinhar a reificação da postura resignada do personagem principal, que por falta de uma experiência maior, mantém-se encastelado em sua vida de pequenas satisfações. A experiência maior, entretanto, vem a ser representada por um encontro amoroso. Mas não o amor que move os grandes feitos, o amor captado pelos rostos de Dreyer, pelas cores saturadas de "Elogio do Amor"  de Godard. Que amor é esse, se não o bom e velho "amor romântico"? A isonomia arrojada entre a consciência artificial e a consciência biopsicológica destoa do modo como a afetividade é reduzida a uma teleologia do amor familial, heterossexual, papai-e-mamãe.

No conflito entre o capital que constrói e o que destrói coisas belas, o humor de Jonze não deixa de fazer graça. Ao optar pela via da melancolia, desprezando o potencial histriônico do ridículo (como em Cronenberg, Carax e Korine), Her escorrega no moralismo bittersweet, ao invés de surfar sobre a complexa experiência contemporânea. Determina que existem culpados: é o mundo, a tecnologia e, em última instância, o próprio homem quem produz a sombra que o ameaça. Não deixa de ter alguma razão, mas como em toda discussão conjugal, "às vezes é melhor perder, do que ganhar, você vai ver…"


Bernardo Oliveira

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

reverência e transgressão

Chinese Cookie Poets























I
A reconfiguração geopolítica da música brasileira não ocorreria sem conflitos e ampla manifestação de preconceito, ausência de curiosidade e defesa injustificável de privilégios. 

De 30 anos pra cá, dois movimentos aparentemente contrários e complementares foram determinantes: de um lado, ampliação, ainda que conflituosa, da informação, da renda, dos direitos etc.. De outro, fragmentação econômica, cultural e social que reconfigura os termos através dos quais se afirmaram os grandes jet sets da cultura no país.

Inevitável os questionamentos acerca da qualidade deste porvir: será "positivo"? Estará à altura da gloriosa história de nossa música popular? O equívoco não reside no questionamento em si, mas nos critérios através dos quais estes questionamentos são encaminhados.



Crê-se na chamada "qualidade" musical como valor absoluto, e não como valor relativo. Crê-se na canção como a única expressão sonora possível no âmbito da música popular. Exclui-se a dimensão propriamente sonora da "música". Crê-se ainda na grande unidade nacional ("música brasileira"), que apesar de se referir diretamente ao país como um todo, toma como parâmetro os autores consagrados pela indústria, pela produção e pelo jornalismo culturais do sudeste.  

A única hierarquia possível é determinada pela invenção, e a invenção não é privilégio de um grupo social ou econômico.


Baby Hitler - Tivoli Park from Quintavant / QTV on Vimeo.

II
Interpretar é disputar. E essa disputa não cessa, não se conclui, não chega a um fim bem acabado e perene. João Gilberto, Radamés e Pixinguinha podem ser reavaliados e repensados à luz dos estudos do som (sound studies), da filosofia, da técnica e da tecnologia, etc, e não somente através do primado culturalista, de viés histórico. De um viés histórico sufocante, diga-se de passagem.

Quando esteve no Brasil, David Toop classificou João Gilberto como "noise music". Concorde-se ou não, trata-se de outra perspectiva de interpretação e avaliação. (v. aqui)



Por isso esse papo redutor e totalizante de MPB ou de "MPB em crise" não cola mais. E explica em parte a reação negativa à entrevista da cantora Mônica Salmaso. Ainda somos um "país sem memória"?  Talvez. Mas no âmbito do pensamento cultural, somos constrangidos pela memória.

Isto porque uma intuição mais ou menos geral se impõe a cada dia: a de que a profusão de artistas da era do disco e das gravações no Brasil (de 1914 até os dias de hoje) configuram um território de expressões sonoras e musicais extremamente complexo e irredutível a qualquer interpretação de cunho geral — a "MPB", o "regional"...



Que artistas como Catulo, Radamés, Mautner, Zé Menezes, Edison Machado, Pixinguinha, Pedro Santos, Vzyadoq Moe, Ratos de Porão, Akira S, Reginaldo Rossi, Mestre Vieira, Nelson Freire, e outros nem sempre situados no campo heróico da MPB, são parte desse imenso território que se desterritorializa e se atualiza a cada experiência individual e coletiva.

Um mar de diferenca e singularidade, constrangido por forças "nacionais", por forças geopolíticas, etno-linguísticas, pelas forças da "lógica" (Khan Khanne, a carta que Godard enviou a Cannes este ano, sugere as relações entre o poder despótico e a lógica…).


Letter in motion by Jean-Luc GODARD to Gilles JACOB and Thierry FREMAUX (Legenda pt-br) from Khan Khanne on Vimeo.

III
Já não falo do preconceito dos artistas, mas dos pensadores. A historiografia brasileira precisa se livrar da... história, ou de um certo tipo de história de influência franco-germânica que constrange qualquer possibilidade de se pensar a fragmentação, a (des)identidade, a multiplicidade. É a  opinião de classe, de uma classe universitária em mutação, que é sedimentada através do ensino e da pesquisa.

Quando se trata de pensar a música produzida em território nacional ainda estamos presos às categorizações gerais, de influência weberiana, que fornecem o modelo conceitual das análises musicais. Pois apesar de falarem português, esses artistas abordam assuntos, personagens e paisagens completamente distintos, em sotaques  diferentes.

"O que é não histórico se parece com uma atmosfera ambiente, onde só a vida pode engendrar-se, para desaparecer de novo com o aniquilamento dessa atmosfera..." (Nietzsche, Segunda Intempestiva).



Um célebre historiador-jornalista costuma lotar suas palestras sobre música popular e carnaval. Presenciei um desses encontros, no qual o autor afirmou, sob aplausos, que "o carnaval é rito de inversão" de papéis, valores, classes sociais. Ora, uma apreciação mais ou menos atenta revelará que há muito o carnaval perdeu sua força enquanto espaço de experiência da "inversão" (ou da transgressão). Uma interpretação corriqueira e defasada, mas que permanece válida aos olhos da maioria. 

Por uma tendência canônica ao pensamento histórico e às categorias gerais, insistimos em um tipo de interpretação que embota as perspectivas de futuro. A tendência que Nietzsche chama de "história antiquária", através da qual o vivente adota uma postura de preservação e veneração diante do passado. A atmosfera muda sempre que mudamos nossas práticas e formas de vida, mas o pensamento, como se sabe, leva um tempo para digerir aquilo que a multidão inventa.



IV
A música brasileira tem sido feita  nos últimos 30 anos contra sua história oficial, que é uma história marcada pelo que Tom Zé chama "Complexo de harmonia". Pelo menos essa história identificada pela sigla MPB. Parece que os artistas estão mais preocupados hoje em substituir a linearidade progressiva do discurso harmônico ligado ao sistema tonal, por uma qualidade imersiva composta por matérias, intensidades e velocidades as mais variadas.

É digno de nota o fato de que a música mais interessante feita hoje no Brasil se faça não somente "contra" a harmonia, mas também num processo de esgarçamento e reconfiguração harmônica, seja atraves do ruído, dos sons eletrônicos, ou da decomposição por improviso ou formas alternativas de tocar os instrumentos ou conceber arranjos.



O dedilhado da guitarrada paraense, que mantém parentesco com a rumba congolesa e influencia o trabalho de Rodrigo Caçapa, do guitarrista Rafa Barreto, dos arranjos elaborados para o Encarnado de Juçara Marçal. As modulações da guitarrada pelo brega, mas também sua reinterpretacão eletrônica pelos "bregueiros" de Recife. A música eletrônica por todo o país, seja o funk carioca (RD da Nova Holanda) e paulista (MC Bin Laden), como o tecnobrega e as ramificações que ainda não chegaram aqui no "sul maravilha". O improviso livre, prática hoje disseminada, antes levada a cabo por poucos pioneiros como Antonio Panda Gianfratti. O panorama apresentado pela série de coletâneas Hy Brazil, dirigida pelo Chico Dub. A música multidirecional, multilinear de SP, a música dos artistas que tocam no Quintavant, que apesar de se apresentarem na Audio Rebel, em Botafogo, em são oriundos em sua maioria da zona norte do Rio. A música do Youtube, as bandas de rua, a música das ocupações, das feiras, das áreas rurais…



Comparem a operação que o Breno Ruiz faz sobre a "valsa jobiniana" e dos Caymmi — os filhos — e o que o Kiko Dinucci tem feito com os afrosambas e a música de Itamar Assumpção. Ou Siba com as formas musicas da Zona da Mata. A linha tênue entre a reverência e a transgressão.

De um ponto de vista das categorias gerais, reverência e transgressão são perceptíveis por toda a história da música no Brasil. Mas somente do ponto de vista das categorias gerais. Quando se aplica o microscópio sobre os exemplos, percebe-se que "reverência" e "transgressão" podem indicar inclusive nuances imprevisíveis, como transgressão reverente protagonizada pela Bossa Nova e pelo Tropicalismo, ou uma reverência transgressora, como se percebe em Paulinho da Viola e no samba do Cacique de Ramos.

(continua)

Bernardo Oliveira