quinta-feira, 26 de junho de 2014

O Legado do Futuro: Entrevista com Kelan Phil Cohran

















A vida de Kelan Philip Cohran faz parte daquele rol de biografias em que altos e baixos se alternam de forma intensa e inexplicável. O artista, que se apresenta no sábado e domingo no SESC Belenzinho (28 e 29 de junho), representa uma espécie de elo perdido entre as manifestações mais radicais do jazz dos anos 60 e a luta política pelos direitos civis dos negros norte-americanos.

Nascido há 87 anos em Oxford, no Mississippi, Coran acumulou as funções de trumpetista, harpista, compositor, arranjador, inventor, estudioso, e “revolucionário” convicto. Na década de 50, quando morava em Kansas City, emprestou seu trumpete ao hard bop de Jay McShann e Big Mama Thornton. Mais tarde, integrou a Sun Ra Arkestra, do final da década de 50 até meados da década de 60, sendo responsável por muitas das concepções que marcariam o trabalho do pianista e band leader.

Apesar de ter lançado apenas quatro discos com a Artistic Heritage Ensemble — On the Beach, Spanish Suite, Armageddon e The Malcolm X Memorial, todos nos anos 60 — a importância de seu trabalho é hoje reconhecida pelos músicos contemporâneos. A discografia escassa contrasta com suas proezas. Cohran não é só um dos pontas de lança do que viria a ser chamado free jazz (ou fire music), ao misturar as formas do jazz contemporâneo à soul music, aos ritmos africanos e caribenhos e à improvisação livre. Cohran também é astrônomo reconhecido, estudioso que persegue o ideal renascentista do "homem universal", sendo também curioso pela matemática, a biologia e a filosofia.

No outono de 1967, deu inícios aos trabalhos do Affro-Arts Theatre, palco de uma série de manifestações e iniciativas identificadas com a luta pelos direitos civis dos negros norte-americanos. Ao abrigar uma apresentação do ativista Stokely Carmichael (1941–1998) Cohran foi obrigado a fechar o local, por ordem do prefeito Richard J. Daley, que interditou suas apresentações em Chicago durante mais de vinte anos.

Fundador da Association for the Advancement of Creative Musicians (AACM), fundamental para o desenvolvimento da rica cena de jazz de Chicago, do qual fazem parte Roscoe Mitchell, Rob Mazurek e Matana Roberts, Cohran criou diversos instrumentos musicais, entre os quais o Frankiphone, ou “Harpa Espacial”. Além de ser o pai de oito dos nove membros do Hypnotic Brass Ensemble. Seu último disco, African Skies, foi gravado em 1993, por ocasião da morte de Sun Ra, mas foi lançado somente em 2010. A entrevista abaixo foi realizada entre 15 e 19 de junho de 2014, por email.(Bernardo Oliveira)

--- 

O senhor esteve por trás dos movimentos avant-garde do jazz norte-americano dos anos 60 e 70. Ao mesmo tempo, sua música sempre teve um fundo político inegável, ao combater a desigualdade racial e social. Como o senhor avalia a relação entre música e política nos dias de hoje, especialmente na América de Obama?

Bem, eles estão apenas se utilizando de velhos ídolos do jazz. Defendem que eles tenham homenagens na Casa Branca. Mas o atual governo não é muito perspicaz no que diz respeito à música revolucionária. Eles não conhecem artistas revolucionários como eu, Oscar Brown Jr., Pharoah Sanders. Haviam muitos artistas revolucionários reconhecidos durante as décadas de sessenta e setenta que usaram sua música para falar em nome das necessidades do povo, o que a indústria do disco não permitia. Na verdade, houve um grande movimento para barrar essa música, cerceá-la. E eu sofri tudo isso porque fui desconhecido por quarenta e quatro anos, enquanto todos os outros artistas faziam seus shows pelos circuitos de jazz. Prefeito Daley [Richard J. Daley, prefeito de Chicago entre 1955 e 1976] interditou minha presença em Chicago por cerca de 22 anos [por abrigar uma apresentação do ativista negro Stokely Carmichael]. 

A música é a única voz que as massas escutam. Se você não expressa ideias revolucionárias em sua música, as pessoas não desenvolverão uma consciência revolucionária. E essa consciência é necessária porque viemos da escravidão. Fomos seqüestrados de nossas famílias, assassinados, estuprados, e ainda não nos recuperamos. Nós ainda sofreremos os danos da escravidão por muitas gerações. Ela está incutida em toda nossa vida cotidiana. Somos vítimas da escravidão. Ainda não vejo ninguém que esteja apto a superar isso.

"A música é a única voz que as massas escutam. Se você não expressa ideias revolucionárias em sua música, as pessoas não desenvolverão uma consciência revolucionária. E essa consciência é necessária porque viemos da escravidão."

Sun Ra Arkestra, década de 50.



























Fale-me um pouco sobre sua breve experiência com Sun Ra. Quais as características principais da troca musical que ocorreu entre o senhor, Sun Ra e o grupo?

Quando saí do exército, eu estudava musicologia desde 1953. Até 1955, entre idas e vindas, saía de St. Louis para visitar Chicago. Quando pude ficar por mais um tempo, voltei a estudar musicologia com seriedade. Estudei música irlandesa e escocesa, música grega, lituana. Entre 55 e 57, participei de algumas excursões pesquisando música popular, o que me deu uma visão da música praticada ao redor do mundo. Cunhei o termo “música africana”, porque antes chamavam-lhe “música tribal”, “música shona”, identificando-a com os diferentes grupos étnicos. Mas concebo a música africana como a raiz de toda a música. E foi com esse espírito que participei dos discos com Sun Ra.

Sun Ra estava lidando com o cosmos. Ele tentava ensinar às pessoas como envelhecer de forma criativa, para não se deixar levar por seus problemas. A maioria das pessoas são doutrinadas a tal ponto que não podem resolver seus problemas. Sun Ra resolveu todos os meus problemas. Aprendi com ele que tudo o que você deve fazer é trabalhar. Se você trabalha duro o suficiente, você alcançará seus objetivos. Foi essa a atitude que desenvolvi a partir do convívio com Sun Ra.

Por outro lado, a AACM [Advancement of Creative Musicians] contava com uma porção de músicos criativos, mas que tentavam imitar Sun Ra. Seus esforços não passavam de paródias do sistema de Sun Ra. Mas eu já estava ligado a folk music, e isso me estimulou a criar minha própria música, ao invés de copiá-lo. Criei meu próprio sistema modal, com base nas relações do som e da matemática com o cosmos.

Eu já conhecia as cores do arco-íris e os chakras, todos os sete dias da semana, os sete corpos primários nos céus. Tudo é baseado em sete. Essa ideia me deu uma base para o modo como trabalho, pois um monte de minhas canções estão em compasso de sete tempos, que considero mais agradável. 

O slogan do AACM era: Great Black Music: Ancient to the Future [“Grande Música Negra: Ancestrais para o futuro”]. Olhando hoje a cena jazz/improviso norte-americana, especialmente a cena de Chicago, o senhor percebe a influência dos paradigmas criados pela AACM nas manifestações musicais contemporâneas?

Não vejo muito da parte política sendo cultivada no futuro, mas acho que estão copiando a parte musical que apresentei em meus discos. Ouço agora muitos músicos tocando em sistema modal, o mesmo que diziam que não era a música em 1965. Mas quando abri o AACM, me apresentei com um programa inteiramente modal usando meu frankiephone, harpa e buscando fazer uma música consciente politicamente. Na cerimônia de abertura fiz uma canção sobre os motins pelos direitos civis, acho que alguma das peças do álbum sobre Malcolm X [The Malcolm X Memorial (A Tribute In Music), gravado em 1968]. Todas as minhas setecentas composições se referem à condição do nosso povo, hoje e no passado.  

A fundação da Artistic Heritage Ensemble não se restringiu ao diálogo com o jazz, superando as fronteiras entre gêneros e ritmos antes mesmo do “fusion” de Miles Davis. O senhor contou com membros da Motown, do Earth Wind & Fire, etc, e misturou ritmos africanos, batidas funk, naipes de metais. Qual era a intenção central do projeto? E como o senhor o vê hoje em dia?

Tive uma iluminação em 1961, a respeito de quem eu era, de quem eu sou, e a partir daí busquei meu destino. Tento viver isso da melhor maneira possível, o que me trouxe aqui, aos 87 anos. Todos se foram, então eu tenho que pensar que alguém me pegou pelas mãos e me trouxe até aqui. Eu vivo no presente. E espero que eu e minha geração possamos deixar um legado de esclarecimento para as gerações futuras. Porque o único verdadeiro problema para elas será a falta de conhecimento. Elas não saberão onde obter o conhecimento adequado para resolver seus problemas. Então, parte do meu legado é servir o conhecimento na mesa da música. Ele não estava lá antes. Nós o utilizamos para escrever canções sobre todas as coisas. Agora as pessoas escrevem músicas sobre seu descontentamento.

"... os escravos foram trazidos aqui para mudar o mundo, mesmo que nem eles, nem o mundo saibam. (...) viemos aqui, para dar ao mundo uma nova forma de viver."


Recentemente, o baterista do The Roots, Questlove, escreveu um polêmico artigo, afirmando que “Hip-hop has taken over black music.” Segundo ele não existem hoje artistas negros nas paradas americanas que não sejam ligados ao hip hop, e o gênero se torna hoje uma espécie de representante da música negra norte-americana. Como o senhor avalia essa situação?

Bem, como a maioria dos jovens, é apenas falta de clareza. Eles pensam que sabem mais, mas à medida que envelhecem, eles descobrem o quanto eles não sabem. Esse é o padrão dos jovens em todo o mundo. Mas, quando você se dedica diariamente, com toda energia que você tem, você vai estar sempre no lugar certo. Não importa onde, pois tudo que você tem que fazer para cumprir o seu destino é trabalhar duro.

O rap nunca vingou aqui em Chicago. Porém, mesmo tendo sido rejeitados pela audiência, o rádio apostou na comercialização dele como uma solução para seus negócios. A salvação do business de gravação de discos. E por isso eu digo que hoje, rap não é música, é poesia. E eles são apenas jovens que jogam fora o seu descontentamento em uma forma rítmica.

Há duas doutrinas que me impressionam um pouco. Um delas é a de Confúcio: “O sábio procura por música para fortalecer as fraquezas de sua alma. E o tolo a utiliza para sufocar seus medos.” Isso é uma das coisas que eu ensino às pessoas. Outra é o Cohung de Ne Ping, que viveu em 325 DC, e ele disse: “Não é difícil desfrutar a plenitude da vida, a dificuldade está em descobrir o processo divino. Não é difícil descobrir o processo divino, a dificuldade reside em sua realização. Não é difícil de realizar o processo divino, a dificuldade reside em persistir até o fim.” Acho que estão em perfeita harmonia com a minha vida, então eu as adotei como um código.

A última coisa sobre a cultura: qualquer definição de cultura ajudaria a iluminar as pessoas, pois eles não entendem sua função. E assim, eles abusam da cultura, e, assim, de si mesmos. 

Sua trajetória demonstra que o senhor buscou uma formação humanista, ligada a certa uma percepção do Renascimento. O senhor se tornou um educador, um estudioso da história, das ciências, da matemática, das artes em geral. O ideal humanista se perdeu em um mundo super-especializado e cientificizado?

Eu não acho que os homens que estão no poder saibam sequer o que é humanismo. Acredito que são pagãos, que ganharam seus cargos usando pólvora, não o conhecimento. É por isso que eu procuro criar e ensinar alternativas para as formas de vida que estão ai. E a minha crença é a de que os escravos foram trazidos aqui para mudar o mundo. Mesmo que nem eles, nem o mundo saibam. Mas é por isso que viemos aqui, para dar ao mundo uma nova forma de viver.

Como educador, como o senhor avalia as relações entre educação e espiritualidade num mundo onde boa parte das guerras são religiosas?

Bem, o problema é que eles estão matando uns aos outros devido a uma disputa para decidir quem é Deus. E as religiões não foram capazes de oferecer uma maneira de sair desta confusão. Não temos espiritualidade. Como músico, é preciso estimular as pessoas através de seu espírito, de modo que, se o músico não tem nenhum espírito, nada vai mudar. Mas nós e os atletas somos os únicos que expressam a nossa espiritualidade ao máximo, porque nós temos o poder de esclarecer o nosso público.

O senhor foi responsável pela criação de instrumentos, como o Frankiphone (kalimba eletrificada), Violin Uke, entre outros. Fale-me um pouco sobre a criacão de instrumentos. Continua exercendo essa prática?

Sim, eu gostaria de ter tempo para construir uma frankiephone melhor, mas estou tão ocupado... Gostaria de criar alguns instrumentos melhores. Ofereceram-me todo o tipo de dinheiro para fabricá-los, mas eu nunca fiz. Quando fui à China, me ofereceram uma chance. Os chineses ficaram impressionados quando toquei o Frankiephone. Toquei em Pequim na escola tradicional de música e em Shiyan. E os mestres das várias providências me deram instrumentos de presente, como um gesto de reconhecimento. Tenho um monte de instrumentos que dei a meus filhos como herança.

"... rap não é música, é poesia. E a poesia não é tão completa como a música. A música é a poesia divina."

Hypnotic Brass Ensemble























Oito de seus filhos formaram o Hypnotic Brass Ensemble, com o qual o senhor gravou um álbum. Um grupo que dá prazer de assistir ao vivo, graças a energia e à espontaneidade no palco. Como educador, como o senhor vê o horizonte futuro dos novos artistas ligados ao legado do jazz norte-americano?

Em primeiro lugar, eles precisam mudar o nome, porque foi inspirado pelo bairro de prostituição de Nova Orleans. E os escritores e jornalistas que passavam por lá em busca de prostituição, notaram a música e, é claro, a forma peculiar de tocar piano. Voltavam para suas casas e escreviam sobre esta música, identificando-a como a música das “casas de jazz”. Era assim que eles chamavam as casas de prostituição. Então, o nome tem uma conotação negativa que o acompanha até os dias de hoje. Não somos “músicos de jazz”. Sou um músico sério, não toco para ganhar dinheiro ou algo que o valha. Eu toco porque minha música é a expressão da vontade de meus ancestrais.

Por outro lado, essa fixação com o rap me parece fora de contexto. Porque rap não é música, é poesia. E a poesia não é tão completa como a música. A música é a poesia divina. Os antigos griots usavam a poesia e a música, e eles tiveram que aprender essas dinâmicas, o que levava cerca de quarenta anos até eles se tornarem qualificados para isso. O velho sistema se foi, de modo que estamos levando adiante o velho sistema a partir de novos termos. 

terça-feira, 10 de junho de 2014

Pensar na abundância. Ou “a poética da catástrofe é um pessimismo?”

Inserções em Circuitos Ideológicos: Projeto Coca-Cola, Cildo Meireles, 1970

Otimismo e pessimismo no Brasil contemporâneo compartilham premissas, seja uma percepção subjetiva que alça a si mesma à universalidade, uma projeção ilusória desta subjetividade sobre movimentos radicalmente heterogêneos, ou uma expectativa urgente de concretização. Por outro lado, otimismo e pessimismo operam uma forma de amarrar os fios desencapados que são nossas “faltas”, mazelas e fracassos. O pensamento brasileiro até então se orientou para conceber otimismo e pessimismo à contra luz de uma abundância importada que há muito já não esconde suas lacunas e imperfeições. Essas tendências pressupõem, de um lado, a manutenção do discurso identitário, capaz de regular essa monumentalidade chamada Brasil, fictícia, polissêmica; e, de outro, a tendência a colocar todos os problemas como uma questão de “política pública”, de solução final, de ruptura. Otimismo ou pessimismo, portanto, são afetos, tendências que, ao ditarem o tom do discurso, amarram os fiapos da realidade complexa em um todo coerente, fornecem ao seu portador um sentido em relação ao qual se pode produzir um diagnóstico geral contra “tudo o que está ai”.

“Nós precisamos criar um Brasil — e não ensiná-lo”, escreveu Décio Pignatari há quarenta anos. Antes de criar alguma coisa, otimismo e pessimismo operam inadvertidamente a manutenção daquilo que está em voga. Por este motivo, não se deve perder de vista o poder transfigurador, essencialmente criador, do delírio, o que torna a equação ainda mais complexa. A arte, a ciência e a filosofia deliram, assim como na religião, mas em sentidos diversos. Elas libertam do presente, libertam a criação da noção de produção e sublinham o fundamento da existência, o poder de criação, poder poiético. O delírio emancipa da ciranda de valores consolidados e permite entrever outras possibilidades.

Não há cultura a ser preservada, toda cultura é “complexo de cultura” (Nietzsche). Quais os sentidos em que se produzirá um pensamento rico de ideias e absolutamente delirante sobre o que acontece por essas bandas? Um encaminhamento para a questão das tensões da atualidade pode ser encontrado na pergunta: como evitar que o afeto pessimista ou otimista interdite interpretações potentes e efetivamente transformadoras?

---

Pull (detalhe)Mary Mattingly, 2013
































Por outro lado, atentemos para uma característica da relação entre o tempo e o afeto. A medida da história e da experiência nos é fornecida pelos efeitos que ecoam do passado sobre nossos sentimentos, daquilo que é repassado de forma esquadrinhada e excessivamente refletida aos regimes de consciência, mas escoado através dos afetos de falta, melancolia e espera. Se há a possibilidade de se pensar, com Hume e Kant, o caráter transcendente da “natureza humana”, seu desdobrar é essencialmente metafísico pois considera o tempo polarizado, abstrato, do ser e do nada. Por outro lado, não consideram a “condição de possibilidade” do pensamento sobre o ser e o nada, que vem a ser as durações, tonalidades, e uma infinidade de frequências, “pluralidade de ritmos de duração” que rebatem na dinâmica transindividual da coletividade. No plano do ser e do tempo, o plano redobrado da interioridade, somente a melancolia (o medo, a seriedade!) e a esperança provocam o pensamento. O que pode o pensamento desvencilhado dos atributos melancólicos do ser e do tempo, e desdobrado pela noção de duração? A partir de uma leitura da distinção entre tempo e da duração no filósofo francês Henri Bergson, podemos criar uma simpatia renovada pela existência, mesmo diante das condições mais perigosas e nefastas.

“A duração bergsoniana não faz desaparecer nada… (…) Pensar a passagem do tempo, simpatizar com essa passagem, é justamente livrar-se daquilo que é, daquilo que nos prende aos seres e aos nadas. Correlativamente, é a razão pela qual buscaríamos em vão, em Bergson, uma definição do passado como aquilo que não é mais, ou do futuro como aquilo que ainda não é, embora, às vezes, ele se expresse assim. Ser e nada não permitem pensar adequadamente o tempo. Todo o problema vem de que o pensamento se apegou aos seres — e não aos movimentos dos seres. Não é esse o caso dos melancólicos que permanecem apegados ao passado ou ao futuro?” (David Lapoujade, Potências do Tempo, p. 24)

É preciso, portanto, que o pensamento se apegue não mais aos seres, mas ao movimento dos seres. Aquilo que o francês Gilbert Simondon chamou de “modo de existência” das coisas não as fixa em uma escala absoluta do tempo. O seres, as coisas, são dinâmicas e geradas a todo instante; sua gênese não é análoga à gênese judaico-cristã, a gêneses das coisas uma-vez-por-todas. “O índio assassinado”, “o negro discriminado”, “o povo explorado”, “o país subjugado” e outras imagens-dispositivo caras à crítica e à política contemporâneas, exprimem um apego incontornável à fixação histórica dos seres e dos gêneros, sem que se possa determinar nem sequer do que estamos falando. Este índio, esse negro, quem são? Seus respectivos modos de existência exprimem uma pluralidade afetiva mais ampla do que os termos jogados pela academia, pela ciência, pelos governos. Não que não haja racismo, exploração, miséria e desespero, mas se de fato não bastam "reformas" para alterar esse estado, muito menos no que diz respeito ao poder abstrato da linguagem. Assim, até mesmo as "evidências" catastróficas trazidas pela consolidação do antropoceno são também uma interpretação, não um fato. 

Mais uma vez é o delírio subjetivo, que habita a pluralidade de complexo de cultura, o alimento que nos reconecta com uma duração tensionada pela multiplicidade. Mas a multiplicidade não quer “voz”, não quer ser evocada e vocalizada. A multiplicidade é a própria voz, a força ontogenética, o clangor total do mundo que soa dentro de cada um e de todos nós, mas que é subssumida pelo discurso abstrato, pela subjetividade que reclama universalidade.

---

Verme, Nuno Ramos, 2010






















A descentralização da produção e dos centros de legitimação da informação, mesmo que pequena em relação ao poderio material e espiritual das instituições e da grande indústria, pode trazer aberturas imprevisíveis para a criação e a experimentação, seja na ordem das obras de arte, seja nas formas de vida. E mesmo a política de consolidação de uma renda mínima para a população, também pode afiançar a criação dessas aberturas, exprimindo-se em todas as esferas da vida. Esses dois elementos de ordem material reduzem o impacto da desigualdade, ampliando o espaço para a diferença, mas, em contrapartida, gerando conflitos de ordem social, política, ambiental e, por que não, estética.

E, no entanto, muitos de nossos artistas e intelectuais, sobretudo aqueles consolidados no mercado, nos editais, nas vitrines e universidades, continuam a produzir um discurso que oscila estranhamente entre o pessimismo distante e a conciliação arbitrária, respectivamente as formas mais comuns do pessimismo e do otimismo contemporâneos.

Em relação ao pessimismo distante, o pensamento se reveste por uma verniz de seriedade melancólica que legitima a reflexão e se apresenta de forma irresistível ao nosso espírito bacharelesco. Entre a dúvida cartesiana e o spleen, o tom de manifesto de nossos escritos, de vontade de totalização, de enunciação imperativa reveste a grande maioria do pensamento contemporâneo. Como se ainda tivessemos de prestar contas com os dilemas nacionalistas dos anos 30, como se estivessemos fincados não na atualização dos conflitos, mas na manutenção das perspectivas de classe. O “estamos fodidos” constitui apenas mais um reflexo desta tendência, e vem somar-se à “crise da cultura”, a “hora da despedida”, “o fim da cultura”, a radicalidade vazia da militância “nômade”, o mito do “mundo natural”, arcaico, subjacente à antropologia simétrica e sua “arca de noé”, e outros diagnósticos recentes: carregados de um afeto apocalíptico, combinam restrições morais (as muitas formas da culpa e da piedade) com o sentimento multifário do “paraíso perdido” — ou o sentimento residual de que “algo se quebrou” (Caetano via Frederico Coelho). É o nosso velho e atualíssimo sebastianismo de cada dia, à espera de uma solução ou amargando a descrença de que ela, de fato, venha. “Somos os culpados pela nossa derrocada”, mas uma derrocada sem data nem hora para acabar, pois fundamente enterrada em hábitos e perspectivas. Um “estado”, não um estágio (Bergson via Paulo Emílio). Mesmo a comprovada e gradual conscientização de que o modelo sócio-político no qual estamos inseridos esgota pouco a pouco o meio ambiente e a própria política, o caminho a ser tomado seria necessariamente o do niilismo amargo ou o denuncismo desesperado? Dilacerar-se? A arrogância do conhecimento nada pode ou pode pouco contra... a arrogância do conhecimento.

Da conciliação arbitrária, a qual se pode atribuir alguns traços do que costumamos entender como “otimismo”, em parte responsável pela constituição de outras narrativas otimistas, como por exemplo “a geração pós-rancor”, a reificação do presente, subjacente, por exemplo, ao neopentecostalismo, encontra uma certa leitura do agenciamento em Deleuze, positivando os conflitos a qualquer custo — quando, me parece, Deleuze chama a atenção mais para a capacidade de resistência e criação, do que para a conciliação forçada. Estão identificados com estas prerrogativas o tropicalismo crítico (ou pós-tropicalismo), os bioativismos (não só o ativismo ambiental, mas as militâncias por outras formas de vida), as “dobras” da internet, os conflitos e novas individuações geradas pela distribuição de renda e de rede, de grana e de informação. Me encontro em uma posição mais próxima da conciliação arbitrária do que do pessimismo distante. Mas também de toda uma aparelhagem estatal que visa o bem-estar da maioria, condenável por sua comprovada ineficácia, mas que, parece, por aqui, ainda precisa se tornar consistente para ser adequadamente avaliada. Ao afirmar isso, pretendo demarcar uma diferenciação entre o otimismo que deposita esperanças no “vai dar certo”, num acabamento, na realização de uma “nova civilização”, um otimismo teleológico; e um outro otimismo relativo ao “vamos fazer a qualquer custo”, “vamos amar o estranho”, o estrangeiro, vamos cultivar o estrangeiro que há em nós. O primeiro otimismo se resume a uma crença, o segundo afirma, em uma perspectiva possível, a capacidade de ação, mudança e disposição para a mestiçagem radical.

---

Navio negreiro. Foto Marc Ferrez.






















A foto acima permite traçar uma linha de interpretação que leva da miséria ao poder transfigurador da ação criadora: o samba, o funk, a comida, as palavras, a disposição à mestiçagem, a cultura. Por outro lado, não se sabe ainda o que os indivíduos podem a partir de uma situação material mais densa e estável. É possível, então, um pensamento sobre o Brasil que abra mão do pessimismo distante e da conciliação arbitrária em favor do imprevisível, do indeterminado, do imponderável? E o que seria esse “indeterminado”, esse alienígena?



Na música, por exemplo, o funk do MC Bin Laden e de MC Carol, o mapeamento que Chico Dub faz com os volumes de Hy Brazil, a reaparição de Krishnanda, os “antiregistros folclóricos” da caixa de CDs Música do Brasil (dirigida por Hermano), a música de Leiteres Leite, a torção dos cânones emepebísticos empreendida pelos paulistas (Metá Metá, Passo Torto, Juçara Marçal), a organização sócio-econômica do tecnobrega, as viradas de bateria eletrônica enlouquecidas do brega de Pernambuco, a “música de ruídos” de Cadu Tenório e Jhones Silva, que faz barulho na Baixada Fluminense…



Nas chamadas “artes plásticas”, destaco “O Globo da Morte de Tudo” ou “Fruto Estranho”, obras de Nuno Ramos que operam mais sobre a transfiguração da ruína do que sobre a sua problematização, obras capazes de colocar um ponto de interrogação ativo, para além da “dúvida” cartesiana, que obriga a optar por um método, e portanto, profundamente comprometida com uma forma de intelecção completamente inadequada para os dias de hoje. As peças de Ramos são capazes de abalar crenças e percepções, convidando o espectador à uma atitude interpretativa, e não para a melancolia sisuda. Para além do pessimismo, mas sem abrir mão da estranheza, do conflito, da agressão.

Fruto Estranho, Nuno Ramos, 2010
































Vejo uma margem de indeterminação no dispositivo-obra de arte, que ao invés de afirmar o “culto da personalidade”, desindividualiza e transindividualiza a obra. Não somente a noção de justaposição entre arte e vida, através de procedimentos que atocham trejeitos “artísticos” a situações cotidianas. Ou entre uma “estética da existência”, na qual a arte serviria de modelo para afirmar a existência. Mas a pregnância cultural e biopolítica de uma técnica nova, de um procedimento imprevisível, de um movimento surpreendente, rico de possibilidades interpretativas e de um deleite particular. A crítica assim não se exerce somente ao nível negativo da crítica política e econômica, da crítica analítica, da crítica hermenêutica ou cultural. Ela pode ser exercida sob a forma de um dispositivo artístico, cuja constituição pode até estar comprometida com a ciranda do curadores, das instituições e dos colecionadores milinonários. Mas seu poder, aquilo que ela pode, não se esgota nessa ciranda.



Não se trata de perguntar qual o dispositivo que possui mais poder de existir e resistir ao capital, como se pudessemos situar problema em uma escala absoluta. Dependendo de uma conjunção de fatores, os Black Blocks podem ser algo bem menos radical do que uma obra do Matthew Barney exposta em Inhotim. Quem pode medir o "impacto social", se a dimensão do "social" se tornou um tipo de grandeza abstrata que mais nivela os termos do problema do que os explica? Podemos encontrar a nós mesmos revestidos por uma consciência luminosa, clarividente, pela moral mais complexa, imbuídos pela força que nos dá a consciência dos limites. Mas seria a nossa capacidade mais fundamental a de detectar e anunciar o desastre? O desastre não seria inevitável? Nossa capacidade fundamental não seria a capacidade de transfigurar e remodelar a cultura? Ou nossas tendências mais radicais clamam por reformas? Se há caminho, este se constituirá a partir do delírio, da subjetividade, da leveza de uma posição singular, criativa e transindividual, de uma duração própria que pode se ramificar em outras atitudes e pensamentos. Não de uma ciência redentora, muito menos de uma ira santa apoiada na certeza das evidências. Ainda falamos de uma "gaia ciência".

Hoist (frame), Matthew Barney, 2006







































A despeito de seus suportes e formas de apresentação, o que diferencia, por exemplo, “Hoist” de Matthew Barney de “Fruto Estranho”, duas obras que problematizam o acontecimento, que conectam e redimensionam objetos cotidianos e heterogêneos, que produzem uma torção que implica na catástrofe? Me parece que é justamente o seguinte: enquanto Barney chora o fracasso do projeto moderno, do capitalismo e seus centauros, Ramos os enxerga sob um horizonte de possibilidade no qual a catástrofe, a tragédia, é matéria-prima para a superação e a afirmação da subjetividade. Como nos sambas de Nelson Cavaquinho, nos quais o autor descreve as maiores atrocidades, os gestos mais vexatórios, mas que são plasmados sobre uma bela forma, capaz de transfigurar a passionalidade em uma força imperativa, criadora. Nossa abundância é biopolítica, não se resume, portanto, às implicações do crescimento econômico, muito menos da "participação política", mas às formas de vida.    

Diante das obras inegociáveis de Nuno Ramos, a última coisa que eu penso é: “estamos fodidos”. E a primeira é “vamos nessa”, “vamoquevamo”, e outras expressões que nascem de um pessimismo sublimado, como uma gíria fresca, nova. São obras que versam sobre a abundância, não sobre a falta, problematizam o futuro como algo indeterminado, independente de otimismo ou pessimismo. Se será bom ou ruim, habitável ou respirável, pouco importa: há que ser novo, radicalmente novo. Não seria o grande desafio para o pensamento brasileiro das próximas décadas dar corpo a esse sentimento alienígena, não somente nas artes, mas também nas formas de vida, buscando problematizar constantemente a pergunta: como pensar o Brasil na abundância?

Bernardo Oliveira