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quinta-feira, 19 de março de 2015

Aphex Twin – Computer Controlled Acoustic Instruments Pt2 EP (2015; Warp, Reino Unido)

























Em agosto do ano passado, um dirigível verde neon cruzava os céus de Londres. A inscrição não poderia deixar dúvidas, mas as perguntas se multiplicaram, assim como as infindáveis camadas de especulações. Mais tarde, a confirmação: a reaparição de Richard D. James através de seu mais célebre pseudônimo, Aphex Twin. James produziu durante esse período — os Analords, The Tuss, alguns remix como AFX —, mas como Aphex Twin seu último lançamento foi o controverso Drukqs. A primeira dica teria sido o crowdfunding para reeditar o álbum perdido do Caustic Window, um de seus muitos projetos simultâneos. Teria ele produzido durante um extenso período de silêncio e, agora, tratava de descarregar esse material? Ou a reaparição traria uma nova abordagem para sua música? O que foi deixado para trás? O que viria adiante? 

Quando Syro foi editado em 2014, as opiniões se dividiram. E com razão. De um lado, aqueles que se decepcionaram, pois esperavam uma ruptura, um rompante de novidade que justificaria seu passado de glórias. De outro lado, aqueles que, como eu, se deleitaram com a retomada quase inalterável de uma gramática singular, uma coleção de faixas perfeitamente integradas a uma parte significativa de seu legado. Sobretudo aquele editado nos álbuns …I Care Because You Do (1995) e Richard D. James Album (1996), isto é, uma variedade justaposta de beats anômalos, melodias singelas e timbres estranhos, geralmente associados a rótulos como IDM, com pitadas de breakbeat, drill’n’bass ou ambient (uma ambient absolutamente particular, diga-se de passagem). Álbuns como Drukqs e os Analords, por exemplo, constituiriam outras vertentes possíveis, mas que foram descartadas em favor de um caminho mais seguro, através de beats bem construídos e extensa variedade de sons sintéticos e vozes processadas.    

Situado na grade de timbres e ideias do Aphex anos 90, Syro, no entanto, se apresentava como um disco a meio passo da pesquisa e do rascunho. James, em entrevista, confirmou que o lançamento do disco representava para ele um “encerramento”, uma liberação para novas experiências. Semelhantes aos rótulos classificatórios com os quais nomeamos arquivos de computador, os títulos das faixas traziam também os nomes de equipamentos clássicos como o Korg Mini Pops e o Sequentix Cirklon, ambos utilizados no disco. Esses títulos pareciam indicar uma qualidade provisória, o resultado parcial e concentrado das inúmeras experiências de um workaholic insone. Na verdade, tratava-se de uma série de faixas desenvolvidas durante três anos, enquanto o artista construía um estúdio de gravação. Vítima do excesso de notícias que exploravam a mera reaparição de James, esperou-se uma coisa e o disco era outra. Quando em meados de janeiro deste ano, o artista editou o misterioso Computer Controlled Acoustic Instruments Pt2 EP, a impressão foi inversa: apesar de portar a mesma aparência de rascunho de Syro, CCAI Pt. 2 trouxe à tona nuances pouco conhecidas na enorme paleta de sons de Richard D. James. E isso não é pouca coisa. 

A batida funky, lenta e bem marcada de “Diskhat All Prepared1mixed 13”, dá início ao trabalho. Chama a atenção logo nos primeiros minutos o clima sombrio, contrário à abordagem quase pop de muitas das faixas de Syro. A mestiçagem de sons híbridos, acústicos e eletrônicos, se deve à presença de equipamentos MIDI e dispositivos como Disklavier, piano controlado por computador, além de outros dispositivos que acabaram por batizar o álbum (“computer-controlled percussion”). E de fato, sons de piano e percussões vigorosas atravessam todo o disco, sobretudo em “Disk Prep Calrec2 Barn Dance [Slo]”, a vinheta funk “Diskhat2” e a faixa de encerramento. Das faixas que contam apenas com o piano “sintético”, destaco sobretudo “Diskprept4”, vinheta que remete aos rococó clássicos com os quais se produzem as trilhas frenéticas dos desenhos animados.

Em CCAI Pt. 2, James escancara ainda mais a aparência de rascunho, de processo, de obra aberta em andamento. Além dos títulos, que se mantiveram com a aparência classificatória e impessoal dos rótulos de arquivo digital, vinhetas como “Snar2” (vinte segundos de um rufo de caixa), “Piano Un1 Arpej” (cinquenta segundos de harpejos de piano) ou “0035 1-Audio” (apenas um beat) parecem sugerir uma dupla designação: uma certa ironia alcançada através da redundância, mas também um sample de pesquisa, uma amostragem de timbre, um resultado parcial ao invés de uma “track” consolidada. A ironia também está presente no título do álbum, pois não se sabe por onde anda a "parte 1". Em termos de organização, ocorre algo semelhante: o ambiente não é propriamente o de um “álbum” em sentido clássico, mas o de uma coexistência pacífica entre o jogo da criação e uma espécie de relatório fragmentário contendo resultados parciais, aludindo não à interioridade subjetiva do álbum, mas à exterioridade difusa de um cotidiano movido por pesquisas contínuas.

Parece que no caminho para reinventar-se, James optou por recorrer a uma dissolução ambígua do formato. Em CCAI Pt. 2, as músicas permanecem fixadas no suporte (como era de se esperar), mas a experiência da audição sugere uma abertura à contingência. Com isso, James permitiu que a dinâmica de erro-e-acerto que caracteriza a experiência cotidiana contaminasse toda a estrutura. A exigência industrial de acabamento e consolidação da “faixa” foi substituída por um formato vibrante que inclui outras modalidades de resultado sonoro. Imagino que parte desta empreitada seguirá através do Soundcloud aberto pelo artista no início de fevereiro de 2015, sobre o qual ele descarregou toneladas de materiais antigos, além da previsão de lançamentos futuros ainda este ano.


Bernardo Oliveira 

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Grizzly Bear – Shields (2012; Warp, EUA)

























Em seu último trabalho, o Grizzly Bear recorre mais uma vez a uma concepção que sintetiza de forma particular instrumentos acústicos e eletrônicos, aspectos da música psicodélica em sua tendência folk (vide o “baroque pop” de Van Dyke Parks ou o Scott Walker dos anos 60), experimentações pontuais, seja na estrutura do arranjo (a reviravolta em “Lullaby”, o canto de trabalho em “Plans”), seja através da inclusão de compassos compostos (como em “Sleeping Ute”) e ruídos (como em “I Live With You”). Aliada a essa sonoridade simultaneamente evocativa e original, imagens poéticas tingidas por uma psicodelia controversa, que delira nos recantos mais acinzentados da imaginação — como se pode comprovar na representação imagética traçada nos videoclipes de “Two Weeks” e no recém-lançado “Gun-Shy”. Em Shields todo esse arcabouço conceitual não se altera de forma significativa, o que nos levaria a crer que trata-se da repetição de uma fórmula que, parece, vem dando certo. Mas uma audição mais atenta revela que, para além das evidências, o Grizzly Bear ainda tem muita estória para contar.

Há um ponto de convergência no cerne do trabalho da banda que não pode ser desprezado: a densidade pop da composição de Edward Droste e, particularmente, de Daniel Rossen, se adequa perfeitamente aos arranjos repletos de detalhes de Chris Taylor, responsável por organizar de forma coesa e criativa uma parafernália que inclui, além da trinca baixo-guitarra-bateria e do violão folk, cordas, sopros, sintetizadores e demais apetrechos eletrônicos — Taylor também produziu e mixou In Ear Park do Department of Eagles de Daniel Rossen e Fred Nicolaus. É perceptível a exploração das potencialidades formais desta convergência no trabalho do grupo, expressa sobremaneira através da pletora de detalhes e dinâmicas. Mesmo cercados por um arsenal de instrumentos e referências, a riqueza dos detalhes e das dinâmicas confere identidade ao grupo, em um cenário tomado pela “retromania” estéril e a nostalgia travestida de “estilo”.

A título de exemplo, observem os diversos momentos de “Half Gate”, uma provável composição de Droste: a introdução solene do cello, o exemplar domínio das dinâmicas de volume da caixa de bateria e da guitarra, o crescendo na segunda parte, a explosão do refrão, o breve interlúdio orquestral antes de retornar à estrofe e o final apoteótico. Ou as diversas partes e camadas de “Speak In Rounds”, sobretudo o arranjo de sopros no final, a proeminência da levada de violão, a junção estratégica com a vinheta “Adelma”, composta no mesmo tom. E a entrada de “Sleeping Ute”, com a guitarra executando um riff em 6/8: a bateria poderia simplesmente acompanhá-la, mas ao contrário, recorta o andamento interpondo a caixa e o bumbo em posições em nada evidentes, com o auxílio de percussão, hammond, violões e… “explosões” (sim, elas estão lá!). 

O fato de que, pela primeira vez, todas as composições foram assinadas pelos quatro membros reforça a tese da convergência fluente entre o setor cancioneiro e o setor da concepção sonora. Mesmo que a tendência seja atribuir ao vocalista a autoria da canção — o que se confirma relativamente com “Sleeping Ute” e “A Simple Answer”, cantada por Rossen, ou “Yet Again” e “The Hunt”, cantada por Droste — o que temos em Shields é, mais uma vez, um brilhante desempenho de conjunto. Vale notar que o Grizzly Bear é uma das poucas bandas hoje em dia capazes de se expressar desta forma em disco e em show. Se o caro leitor estiver ciente do concerto que eles farão no Rio de Janeiro amanhã... é preciso dizer mais alguma coisa?

Bernardo Oliveira