segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Tom Zé – Tropicália Lixo Lógico (2012; Passarinho, Brasil)


























Aumenta a disposição para a concordância.
Começa-se a pensar em camadas paralelas.
Certas abstrações ocorrem com naturalidade.
Max Bense, Inteligência Brasileira, 3


“pensar é pão”

De seu reaparecimento triunfal até Tropicália Lixo Lógico, a música de Tom Zé vem se constituindo a partir de teorias saborosamente anômalas a respeito da mulher (Estudando o Pagode, 2005), do “defeito de fabricação” da mentalidade terceiro-mundista (Com Defeito de Fabricação, 1998), do efeito liberador da Bossa Nova na cultura brasileira (Estudando a Bossa, 2008), além de um trabalho instrumental-onomatopaico sobre a “pós-canção”, batizado como Danç-Êh-Sá, 2006. (É bem verdade que, em relação a The Hips of Tradition, não se sabe bem ao certo se há um centro gravitacional, mas teimo em acreditar que trata-se de uma avaliação implacável dos fluxos e refluxos da Terceira Revolução Industrial, do ponto de vista de um brasileiro).    

Nesses discos, o artista estabeleceu relações francas, abertas e muitas vezes incômodas (no melhor dos sentidos) entre uma teorização sobre a formação de aspectos da cultura brasileira e um conjunto de canções que, ao contrário de explicar a tese, jogava ainda mais fogo na lenha da provocação. Acerca da abordagem original deste procedimento, ou mesmo de seu êxito propriamente artístico, é possível uma conclusão parcial: que não há na atualidade esforço similar, qual seja, o de articular ímpeto teórico, citações eruditas, relevância na poesia, na música e no pensamento através de canções estritamente acessíveis.

Tom Zé vem aproximando, justapondo, confundindo esferas separadas por conveniência política e cultural, sejam elas acadêmicas, estéticas, psicológicas, filosóficas, etc. Sendo assim, não é de se estranhar que o único artista brasileiro a introduzir elementos teóricos em sua dinâmica criativa desminta a “morte da canção” preconizada por Chico Buarque há cerca de seis anos. Principalmente porque seus exercícios teóricos não se constituem segundo a prerrogativa acadêmica, ciosa da consistência lógico-formal que fornece sentido à progressão das pesquisas, e , em última instância, afiança sua autonomia perante os órgãos institucionais — questão de poder, portanto.

Com Tom Zé, aprende-se de saída que a teoria não é privilégio da academia. Arrancando desabusadamente o exercício teórico da pesquisa universitária, Tom Zé fomentou sua convergência com a poesia e a música como forma de promover uma dupla emancipação: a canção deixa de ser prisioneira dos temas fáceis e recorrentes, ao passo que a teoria pode galgar outras perspectivas, sem necessariamente prestar contas aos afiançadores do saber. A canção é, neste sentido, a catalisadora desta inversão de valores. Com seus procedimentos anárquicos, Tom Zé nos mostra que se a canção de fato morreu, foi de tanto rir.

Poiésis, pois entre poesia e teoria, não existe aporia. 


“guaraná vai pisar no calo da coca-cola”

Um dos caminhos adotados para abordar Tropicália Lixo Lógico corresponde à separação da teoria e da produção estética. Seguindo este caminho, alguns julgaram tratar-se de uma defesa de tese sob a forma de canções. Ao passo que para José Miguel Wisnik, Tom Zé desenvolve uma “argumentação cancional” (em seu excelente artigo a respeito do disco). Não discordo propriamente destas intepretações, mas faço uma ressalva: antes de separar teoria e poesia, antes mesmo de separar a crítica da poesia, parece mais proveitoso traçar conexões entre duas dinâmicas complementares no trabalho de Tom Zé: uma lúdico-teórica e uma outra, crítico-poética.

No balaio lúdico-teórico o tempo é espectral, imenso; autores, artistas e ideias soam ao mesmo tempo no grande palco do pensamento de todas as eras e continentes, tudo é jogo, como no teatro. Já do lado crítico-poético, é a malícia, a graça, a carpintaria do texto e da melodia, a funcionalidade da ideia que ditam as regras: “vontade de forma”, Apolo incorporado. No trabalho de Tom Zé, a teoria é confeccionada com desmesura, ao passo que as rigorosas construções formais reiteram a ciência implacável da canção popular. 

Ora, estamos diante de uma obra paradoxal, que nos conduz em direção a uma espécie de dobra: não seria o paradoxo, em detrimento da dialética, o ambiente próprio da chamada cultura brasileira? Em outras palavras, não seria justamente esta capacidade de apropriar-se de modo carnavalizante da cultura ocidental, diversificando as configurações culturais, o conteúdo inominável do “lixo lógico”? Do suposto conflito entre teoria e estética, nos resta salvaguardar o fato concreto de que em Tropicália Lixo Lógico a teoria já foi ruminada, e a canção popular, sublimada.

Como se dá essa reviravolta? Primeiramente, Tom Zé afirma que entramos na era da Segunda Revolução Industrial quando “um gatilho disparador (…) provoca em Caetano e Gil o vazamento do lixo lógico do hipotálamo para o córtex.” Para além da confluência de muitas perspectivas (culturais, fisiológicas, sociais), a Tropicália foi uma explosão criativa e de consciência, em relação a qual pudemos liberar, manipular o "lixo lógico", isto é, a cultura ocidental, "aristotélica", refundada sobre o solo trágico do colonialismo.

Mais abaixo, no texto do encarte, outra possibilidade interpretativa: sobre a placa mental “virgem e faminta” da primeira infância, marcada no córtex cerebral, o lixo lógico eclode, quando a cultura ocidental dá de encontro com as potencialidades e vicissitudes da “creche tropical”. E ainda há uma terceira hipótese, segundo a qual os brasileiros foram formados pela junção do “saber de Aristóteles com a cultura do mouro”. Aqui a imprecisão conceitual é criativa e criadora, assim como o paradoxo é manipulado enquanto valor, retrabalhado a partir da confluência com o “lixo-lógico”. O paradoxo em Tom Zé não se deflagra em oposição frontal aos ditames da instância avaliadora da lógica europeia, mas como uma reapropriação antropofágica do termo técnico, através do grande sismógrafo da cultura brasileira, a canção. 


“catci garra gafum”

Tropicália Lixo Lógico traz um conjunto de faixas em nada convencionais, mas que exalam o travo amistoso da canção popular brasileira, voltada em sua maioria para a festa, o bar e a zona. A forma aparente corresponde à dinâmica estrofe-refrão, mas as articulações poéticas, antes de contrastar, reforçam o amplo espectro de sons que caracteriza a roupagem instrumental e os arranjos — elaborados por Tom Zé, Daniel Maia e Felipe Alves, respectivamente guitarrista e baixista da banda.

O corpo de canções indica a malandragem e o engenho do poeta, artifícios que testemunham, para além do aspecto anárquico, a concepção rigorosa, precisa. Uma profusão de neologismos (“tropicalisura”, “analfatotes”, “Caegitano”), aliterações, transliterações, revolvem múltiplas referências à literatura e à música. Trechos de melodias e letras da canção tropicalista reescritos com ironia, ritmados pela prosódia com balanço de samba, frevo, rock e marcha. Recortando a última sílaba de alguns versos, Tom Zé começa o verso seguinte, ora fazendo humor (“com Juliana-vengando contra o vento”), ora aglutinando significados com alto teor sugestivo (“Universi-dadal-dadal…”, “da cun unha, unha, unha”). 

Vale enaltecer o canto e a interpretação do compositor por todo o disco. Sua voz consegue obter variações imprevisíveis, exibindo um tom mais declamatório e arriscando-se em melodias improváveis e jogos de interpretação. Como em “Amarração do Amor”, quando nos fala daquele ódio similar ao de “Odeio você”, canção de Caetano Veloso: o ódio do amante. A interpretação hilária de Tom Zé, ao forçar o sotaque para extrair o efeito cômico da frase “desse tamaninho”, adere perfeitamente ao conteúdo meio trágico, meio irônico, dos versos:

“A mãe-de-santo já me deu
Miniatura de você
Des’tamanhinh
É de palha costurada com agulha de crochê
Vou te derreter
Numa panela de dendê”

Tomemos a canção que, não à toa, dá nome ao disco. “Tropicália Lixo Lógico” se inicia com a sequência melódica com tinturas românticas de “Coração Materno”; os primeiros versos afirmam que o lobo (bobo?) não comeu ninguém. Alusão à bossa nova? Apesar da forte sugestão nessa direção, o verso diz respeito ao processo de colonização: a pureza de Chapeuzinho é invadida por Seu Lobo, que no entanto “não come ninguém”. Em ritmo de Jovem Guarda, tomamos conhecimento do processo constitutivo do lixo lógico: o “pacote de pensar” de seu Aristote (corruptela de Aristóteles), ao entrar em contato com “nossa moçárabe estrutura de pensar”, gera, por um processo psico-fisiológico, o subproduto do lixo lógico. Tom Zé concentra sua teoria diretamente sobre a canção-título, liberando espaço para uma sequência de canções que tangem o conceito indiretamente. Tal procedimento, ao contrário de enfraquecer, ampliou e enriqueceu o panorama da obra.

Arrisco-me em algumas interpretações, por exemplo, “Capitais e tais” sugere a pregnância da ponte cultural do nordeste para São Paulo; “O Motoboi e Maria Clara” expõe com singela ironia as agruras da vida paulistana; “Não tenha ódio do verão” é um libelo contra o decantado ódio que alguns brasileiros sentem pelo Brasil, realçando a positividade do lixo lógico em detrimento da cultura ocidental. “NYC Subway Poetry Department” representa simultaneamente a internacionalização de Tom Zé e da Tropicália, enquanto “Amarração do amor” busca dar conta do aspecto passional do lixo lógico. E tantas outras, tão cativantes quanto as anteriores: “Debaixo da Marquise do Banco Central”, “De-de-dei Xá-Xá-Xá” e a curiosa “Jucaju”, que aparentemente sugere à inserção de Juca Chaves no contexto da Tropicália, como eminência parda a respeito do qual poucos falam. Acrescente-se os versos comoventes de “A terra, meus filhos”, a cantilena “Navegador de Canções” e “Aviso aos Passageiros”, rock’n’roll crítico às palavras de ordem institucionais.

Sobre este conjunto de canções indiretamente ligadas ao tema, reside sua riqueza, o que há de mais forte em Tropicália Lixo Lógico. Se a ideia moderna da palavra “teoria” se consolidou como o recanto da objetividade, especialmente atrelada ao amanhã, (e por vezes ao “depois-de-amanhã”), a teoria lúdico-cancioneira de Tom Zé, por sua vez, estabelece que o “lixo lógico” só pode ser compreendido sob a forma de como é vivido, isto é: no bole-bole do movimento, no xique-xique do agora, no fricote do assovio, no refrão do cotidiano. Trabalho de invenção, como o próprio autor frisa, não se furta a atravessar fronteiras, fazendo contrabando com todos os lugares, com todas as eras, mas fornecendo suas conclusões sob o aqui e o agora da canção. Sendo assim, eis a maior virtude de Tropicália Lixo Lógico: afirmar de forma contundente e performática sua tese central, qual seja, a peculiar agilidade crítico-criativa proveniente do lixo lógico.

Bernardo Oliveira

Ps.: Em tempo: os “defeitos” que permeam todo o disco, justificados por Tom Zé como “invenção”, constituem intervenções do lixo lógico sobre a lógica linear e limitante da grande indústria fonográfica. 

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Chelpa Ferro – Chelpa Ferro 3 (2012; Mul.ti.plo, Brasil)























Conhecido pelas instalações e intervenções que desenvolve no território da sound art, o Chelpa Ferro chega ao terceiro disco invertendo uma das premissas centrais de seu trabalho. Até então os limites do som e dos materiais empregados foram tematizados através de instalações, performances e demais circuitos intersemióticos — como “Autobang” (2002), no qual o trio destruía "percussivamente" um Maverick 74', com o auxílio de Laufer, Dado Villa-Lobos, Domenico, Bacalhau e Leo Monteiro. Desta vez, estes mesmos circuitos fornecem subsídios para que o som ocupe um espaço central. Chelpa Ferro 3 privilegia a construção de um discurso elaborado a partir do aspecto sonoro das obras, valendo-se de sua interação com o improviso de instrumentistas afinados com a proposta do coletivo.

Por exemplo, na primeira faixa, “Mesa de samba” (2009), o som é gerado por um aparelho montado com máquina de costura, arame, molinete de pesca, mesa de madeira, caixa de bateria e dímer. Quando o circuito é acionado, agita o fio de arame de forma a percutir sobre a caixa, gerando um batuque aleatório, realçado pelo zumbido da máquina. Por cerca de doze minutos, as guitarras de Arto Lindsay e Pedro Sá redobram a irregularidade das configurações rítmicas, conduzindo a tensão do improviso através da utilização de microfonias, acordes soltos e ruídos.

As faixas seguintes seguem a mesma construção conceitual, explorando a interação entre o aspecto sonoro das instalações e o improviso dos músicos. Em “Microfônico” (2009), com a participação do violoncelista Jaques Morelembaum, a máquina é composta por motor, trilho, microfone, amplificadores e vasos; à medida que os microfones pairam sobre a boca dos vasos, captam as reverberações internas e geram microfonias. Percebe-se que a estratégia de improvisação do instrumentista responde às microfonias e reverberações provenientes da instalação, gerando justaposições harmônicas e frequências incomuns.

Percutindo trinta sacolas plásticas contra a parede, comandadas por motores, cabos e um circuito eletrônico apelidado como “cabeção”, “Jungle Jam” (2008) é dos momentos mais instigantes dos cinquenta e um minutos do trabalho. E isso graças não só à sonoridade gerada pelo engenho conceitual da máquina, mas ao diálogo entre Kassin e Berna Ceppas. Munido por seu contrabaixo, Kassin imprime uma dinâmica marcial sobre à percussão frenética das sacolas plásticas, ao passo que Ceppas recorre aos sintetizadores e à lap steel guitar para explorar as mudanças de clima no transcorrer do improviso. Em relação às cinco faixas do álbum, esta é a que equilibra de forma mais perceptível e eficiente o conteúdo sonoro da instalação e a intervenção do improviso.

Por seu turno, “On – Off Poltergeist” (2008), com a participação de Chico Neves, se inscreve de forma contundente no aparente revigoramento das experiências sonoras limítrofes que marcam a música hoje — por exemplo, através da reabilitação do interesse pela otoacústica, a espacialização do som e de nomes como Maryanne Amacher e Eliane Radigue. A instalação consiste em sete auto-falantes extraídos de sete aparelhos de televisão, separados e dispostos em cada um dos extremos de uma sala, com a intenção de desvincular som e imagem. Neves manipula um Simmons SDS-V, recortando padrões rítmicos a partir dos sons emitidos pelos aparelhos. A aparência espectral — ou fantasmagórica, como indica o título — não compromete a preponderância do ritmo sobre os outros elementos. Dupla tendência reafirmada na última faixa, “Acusma” (2008), que conta com o baterista Stephane San Juan interagindo com trinta vasos de cerâmica em treze formatos e tamanhos diferentes, cada um contendo um auto-falante que reproduzem o solfejo editado e processado de cinco cantores. Os cantores entoam números ao invés de notas, com a intenção de estimular no ouvinte uma sensação “acusmática” — termo explicado no encarte, que designa uma “alucinação auditiva pela qual se julga ouvir vozes humanas ou instrumentos musicais”.

Não parece despropositada, ou mesmo casual, a referência à fantasmagoria inerente ao trabalho do Chelpa Ferro. E isto na medida em que ela remete tanto à efetividade material quanto à presença espectral da obra. Basta observar que entre a experiência de se presenciar as instalações, com todo o aparato audiovisual e sinestésico, e de escutá-las como um instrumento entre outros, é possível detectar diferenças relevantes. Esta característica indica que a instabilidade nas peças elaboradas pelo Chelpa Ferro não é meramente estilística, mas constitutiva e essencialmente criativa. Atribuindo o mesmo nome das obras às sessões de improviso, o grupo converte todo o seu trabalho em jogo aberto, sujeito a mudança de regras e mutações imprevistas. Além de uma audição fascinante pela riqueza de procedimentos e ideias, Chelpa Ferro 3 abriga uma perspectiva entrópica segundo a qual tudo opera por deslocamento e descontrole. Constitui-se, assim, não no isolamento ou reaproveitamento de aspectos das instalações, mas na desintegração da própria obra, sua fragmentação necessária e regeneração particular. 

Bernardo Oliveira