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quarta-feira, 22 de abril de 2015

Matana Roberts – Coin Coin Chapter Three: River Run Thee (2015; Constellation Records, EUA)






































1.
O tempo como problema filosófico e, por consequência, a memória enquanto algo mais que um repositório de impressões e experiências, foram temas centrais para a arte e o pensamento produzidos durante o século XX. As relações entre tempo e subjetividade foram desdobradas não somente pelos conceitos filosóficos de autores como Bergson, Heiddeger ou Deleuze, mas se originaram em contextos nos quais a arte tendia a fornecer respostas mais eficazes, seja através de problematização teórica (Boulez, Klee), seja através de obras de arte concretas, como o “Quarteto para o fim dos tempos” (Messiaen) e as pinturas de Malévitch. O tempo contado do relógio e das relações sociais, que fornece o parâmetro adequado para que os exércitos marchem e os trabalhadores cumpram seu turno, seria o tempo da representação, ao passo que o tempo afetivo, o tempo não-contável dos artistas, constituiria o tempo da expressão.


2.
Como afirma Deleuze, em A Lógica do Sentido: “(…) as representações sensíveis são designações, as representações racionais significações, mas somente os acontecimentos incorporais constituem o sentido expresso” (DELEUZE, p. 148, 2013). Assim, entre a representação e a expressão do tempo há uma diferença de natureza que os artistas souberam exprimir de forma mais concreta e múltipla daquela exposta pelos filósofos. Como os acontecimentos incorporais, a memória tende a se exprimir na sua própria atualização, o que implica em dizer que a memória é sempre criativa, e não representativa. A memória, portanto, não se resume a um dispositivo de rememoração e atualização, mas também de criação.


3.
Matana Roberts parece estar ciente desta distinção. Compositora, instrumentista, bricoleur, poeta dos sons e das palavras, Matana opera com o som, o tempo e a memória em uma direção singular. Sua música autoral visa a reelaboração do legado cultural diaspórico na América sob um ponto de vista “pós-racial”, isto é, um enfrentamento dos conflitos e das redefinições impostas pela América de Obama encarados de forma mais complexa daquela que separa raças e credos no espírito do capitalismo. Para realizar este projeto, Matana vem aos poucos concebendo uma panaceia sonora capaz de trazer à tona não somente este presente conflituoso e, quem sabe?, promissor, mas todo um apanhados de objetos sonoros e experiências reunidos sob uma técnica particular batizada inicialmente como “Panoramic Sound Quilting”: “Em suma, é uma linguagem que tenho desenvolvido desde 2005 — um sistema de linguagem de som chamado PSQ (Panoramic Sound Quilting), que usa a notação musical ocidental e trechos de idéias visuais, tudo reunido para representar um som ‘acolchoado’, coeso, que me intrigue e desafie como compositora e musicista, assim como ao ouvinte.” 


4.
Como escrevi em um artigo que antecipava seu primeiro show no Rio de Janeiro em 2013, o projeto COIN COIN “consiste em um panorama sonoro programado para doze capítulos voltados à exploração de temas como memória, imaginação e ancestralidade. (…) A intenção é ressignificar os traços dessa cultura em vistas de sua atualização e problematização, não como um balanço retrospectivo, mas como um dispositivo criativo endereçada ao futuro.” Ressignificar, bem entendido: recusar as representações disponíveis, sondar a memória enquanto provedora de imagens e afetos, amplificar a subjetividade, borrar as fronteiras da representação, remodelar a experiência presente. Se podemos afirmar hoje que o problema político se concentra em uma disputa pelo espaço da imaginação pública, é possível identificar no embaralhamento sonoro-afetivo proposto por Matana a marca indelével de uma artista capaz de vincular experimentação e política como poucos no panorama da música contemporânea. 


5.
Munida de um conceito (a expressão da América pós-Racial como um dispositivo criativo endereçado ao futuro) e de uma técnica de composição (Panoramic Sound Quilting), Matana vem construindo seu projeto COIN COIN. A cada volume, um desenvolvimento particular do conceito e da técnica. No terceiro volume da série (ouça aqui), uma surpresa: ela está sozinha. Não divide mais com os músicos a responsabilidade de mediar expressão sonora e conceitual. Ela é responsável por tudo: conceito, som, disposição dos elementos, apresentação em concerto. De início, percebe-se que o conteúdo provocador sobressai. No concerto realizado em 2013 no Rio de Janeiro, ela, negra, adentra o palco com um “Black Face”. No lançamento do álbum em janeiro deste ano em Nova Iorque, duas bandeiras, a norte-americana e a dos Confederados, a segunda operando uma função semelhante àquela desempenhada pelo "black face" no show do Rio. Sobre a bandeira norte-americana, dois objetos simbolizando a passagem do tempo: uma vela vermelha acesa (o tempo queimando, o tempo subjetivo) e uma ampulheta (o tempo contável), volta e meia revirada. Um livro de São José e um fichário sugerem as palavras, cantadas, sussurradas, gritadas, exorcizadas, expelidas. Saxofone, clarinete, samplers e eletrônicos construindo com sons um cenário pós-racial, mas ainda assim conflituoso, distópico.  



6.
No encarte da terceira parte de COIN COIN há uma frase que se encontra em íntima relação com o conteúdo do projeto: “Uma panacéia sonora para o que o que aflige a mim, a você... uma coleção de sons que assentam o tempo, assentam a memória naquele espaço para além lembrança…” A memória, situada para além da lembrança, constituiria então um espaço ambíguo entre a reconstituição fidedigna do tempo vivido, e aquela memória impressionista, composta por camadas e mais camadas de fragmentos  avulsos, sons e imagens que, como as fotos impressas no encarte do disco, foram manchadas e envelhecidas pela passagem do tempo. Trata-se portanto de uma atitude de descrédito perante o turbilhão da memória: reiterar os traços do presente e da representação ou reencená-los através de um espírito desafiador? “Come away, come away…” ela repete em uma das faixas de COIN COIN 3. Podemos encontrar uma atitude semelhante em uma canção do Funkadelic em que Clinton pergunta a seu brotha nigga: “Ain’t you deep in you semi first class seat? You picket this and protest that, and eat yourself fat!”


7.
Em comparação com os dois primeiros volumes, COIN COIN 3: River Run Thee é de longe o mais estranho e incomparável. O mais rico em contribuições e ideias. O volume capaz de exprimir o sentido geral do projeto de maneira mais contundente, difícil e, ao mesmo tempo, inebriante. A colagem é, sem dúvida, mais complexa que nos discos anteriores. Não se percebe imediatamente o papel de cada instrumento, eles estão justapostos e modulam com vozes, sons do cotidiano, ruídos de naturezas diversas, rumores. O amálgama impressionista sobressai à própria noção de “instrumentação”. Composto por uma miríade de elementos, River Run Thee ensaia tempos simultâneos através de gravações de campo extraídas de uma estadia temporária no inverno do Mississipi/Tennessee/Louisiana e da “caótica Nova Iorque do século XXI”; trechos de um discurso de Malcom X (“Confronting White Opression”, 1965); excertos dos escritos de Captain G.L. Sullivan e de W.M. Scott; canções de domínio público como “Star Spangled Banner” (Francis Scott Key), “Beautiful Dreamer” (Stephen Foster), entre outras. Matana canta, fala, toca seu saxofone alto, um piano vertical Archambault do início do século passado, sintetizadores. 


8.
A impressão de caos sonoro da primeira audição vai se transformando em uma torrente de acontecimentos e impressões com caráter indefinido. E no entanto, ainda assim, a impressão de um rio correndo em fluxo desenfreado não cessa. COIN COIN 3 não é um disco de “faixas”, mas de afetos que atravessam a experiência da audição. Em favor da expressão, Matana recusa a representação, isto é: para exprimir uma arte alienígena e endereçada ao futuro, prefere abrir mão dos significados disponíveis e leva o problema político-racial da América para o campo perigoso e inapreensível da expressão. Durante as audições, me lembrei do conto de Guimarães Rosa, “A terceira margem do rio”, as margens psico-metafísicas mais ou menos detectáveis no peito de cada um. Lembro de Riverão Sussuarana de Glauber Rocha,  “renovela”, “recordel” que combina narrativa, teatro, poesia e jornalismo em um estilo absolutamente original e sem seguidores. Mas referências não explicam a magnitude do trabalho. Talvez seja o caso de, pelo menos aqui, seguir os conselhos da autora: “Melhor ouvi-lo em um quarto escuro, alto, em uma sessão ininterrupta, com alguém que você ama, que talvez também te ame?”.

Bernardo Oliveira

quinta-feira, 19 de março de 2015

Aphex Twin – Computer Controlled Acoustic Instruments Pt2 EP (2015; Warp, Reino Unido)

























Em agosto do ano passado, um dirigível verde neon cruzava os céus de Londres. A inscrição não poderia deixar dúvidas, mas as perguntas se multiplicaram, assim como as infindáveis camadas de especulações. Mais tarde, a confirmação: a reaparição de Richard D. James através de seu mais célebre pseudônimo, Aphex Twin. James produziu durante esse período — os Analords, The Tuss, alguns remix como AFX —, mas como Aphex Twin seu último lançamento foi o controverso Drukqs. A primeira dica teria sido o crowdfunding para reeditar o álbum perdido do Caustic Window, um de seus muitos projetos simultâneos. Teria ele produzido durante um extenso período de silêncio e, agora, tratava de descarregar esse material? Ou a reaparição traria uma nova abordagem para sua música? O que foi deixado para trás? O que viria adiante? 

Quando Syro foi editado em 2014, as opiniões se dividiram. E com razão. De um lado, aqueles que se decepcionaram, pois esperavam uma ruptura, um rompante de novidade que justificaria seu passado de glórias. De outro lado, aqueles que, como eu, se deleitaram com a retomada quase inalterável de uma gramática singular, uma coleção de faixas perfeitamente integradas a uma parte significativa de seu legado. Sobretudo aquele editado nos álbuns …I Care Because You Do (1995) e Richard D. James Album (1996), isto é, uma variedade justaposta de beats anômalos, melodias singelas e timbres estranhos, geralmente associados a rótulos como IDM, com pitadas de breakbeat, drill’n’bass ou ambient (uma ambient absolutamente particular, diga-se de passagem). Álbuns como Drukqs e os Analords, por exemplo, constituiriam outras vertentes possíveis, mas que foram descartadas em favor de um caminho mais seguro, através de beats bem construídos e extensa variedade de sons sintéticos e vozes processadas.    

Situado na grade de timbres e ideias do Aphex anos 90, Syro, no entanto, se apresentava como um disco a meio passo da pesquisa e do rascunho. James, em entrevista, confirmou que o lançamento do disco representava para ele um “encerramento”, uma liberação para novas experiências. Semelhantes aos rótulos classificatórios com os quais nomeamos arquivos de computador, os títulos das faixas traziam também os nomes de equipamentos clássicos como o Korg Mini Pops e o Sequentix Cirklon, ambos utilizados no disco. Esses títulos pareciam indicar uma qualidade provisória, o resultado parcial e concentrado das inúmeras experiências de um workaholic insone. Na verdade, tratava-se de uma série de faixas desenvolvidas durante três anos, enquanto o artista construía um estúdio de gravação. Vítima do excesso de notícias que exploravam a mera reaparição de James, esperou-se uma coisa e o disco era outra. Quando em meados de janeiro deste ano, o artista editou o misterioso Computer Controlled Acoustic Instruments Pt2 EP, a impressão foi inversa: apesar de portar a mesma aparência de rascunho de Syro, CCAI Pt. 2 trouxe à tona nuances pouco conhecidas na enorme paleta de sons de Richard D. James. E isso não é pouca coisa. 

A batida funky, lenta e bem marcada de “Diskhat All Prepared1mixed 13”, dá início ao trabalho. Chama a atenção logo nos primeiros minutos o clima sombrio, contrário à abordagem quase pop de muitas das faixas de Syro. A mestiçagem de sons híbridos, acústicos e eletrônicos, se deve à presença de equipamentos MIDI e dispositivos como Disklavier, piano controlado por computador, além de outros dispositivos que acabaram por batizar o álbum (“computer-controlled percussion”). E de fato, sons de piano e percussões vigorosas atravessam todo o disco, sobretudo em “Disk Prep Calrec2 Barn Dance [Slo]”, a vinheta funk “Diskhat2” e a faixa de encerramento. Das faixas que contam apenas com o piano “sintético”, destaco sobretudo “Diskprept4”, vinheta que remete aos rococó clássicos com os quais se produzem as trilhas frenéticas dos desenhos animados.

Em CCAI Pt. 2, James escancara ainda mais a aparência de rascunho, de processo, de obra aberta em andamento. Além dos títulos, que se mantiveram com a aparência classificatória e impessoal dos rótulos de arquivo digital, vinhetas como “Snar2” (vinte segundos de um rufo de caixa), “Piano Un1 Arpej” (cinquenta segundos de harpejos de piano) ou “0035 1-Audio” (apenas um beat) parecem sugerir uma dupla designação: uma certa ironia alcançada através da redundância, mas também um sample de pesquisa, uma amostragem de timbre, um resultado parcial ao invés de uma “track” consolidada. A ironia também está presente no título do álbum, pois não se sabe por onde anda a "parte 1". Em termos de organização, ocorre algo semelhante: o ambiente não é propriamente o de um “álbum” em sentido clássico, mas o de uma coexistência pacífica entre o jogo da criação e uma espécie de relatório fragmentário contendo resultados parciais, aludindo não à interioridade subjetiva do álbum, mas à exterioridade difusa de um cotidiano movido por pesquisas contínuas.

Parece que no caminho para reinventar-se, James optou por recorrer a uma dissolução ambígua do formato. Em CCAI Pt. 2, as músicas permanecem fixadas no suporte (como era de se esperar), mas a experiência da audição sugere uma abertura à contingência. Com isso, James permitiu que a dinâmica de erro-e-acerto que caracteriza a experiência cotidiana contaminasse toda a estrutura. A exigência industrial de acabamento e consolidação da “faixa” foi substituída por um formato vibrante que inclui outras modalidades de resultado sonoro. Imagino que parte desta empreitada seguirá através do Soundcloud aberto pelo artista no início de fevereiro de 2015, sobre o qual ele descarregou toneladas de materiais antigos, além da previsão de lançamentos futuros ainda este ano.


Bernardo Oliveira 

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

2014: cuidado com o fetiche, por Bernardo Oliveira





















Situação já centenária que se aprofunda a cada renovação tecnológica: o volume da produção extrapola nossa capacidade de armazenar, fruir e compreender o conjunto da expressão artística da época. Mesmo a simples relação com a música em geral passa por uma mutação cuja característica central é a de se modificar constante e ininterruptamente. Uma mutação sem futuro nem destino, mutação no e do presente, que tanto pode abarcar uma curiosidade contínua como sedimentar gostos e opções.

O frenético, o instável, o redundante e o desafiador dão forma a uma profusão de fluxos e tonalidades que afetam os diversos contextos de produção sonora (inclusive manifestações híbridas como as gravações de campo, a arte sonora, p ex.). A invenção se manifesta por uma qualidade perspectiva, uma assinatura, uma mirada singular, o esforço individual/coletivo para produzir  algo diferente, não somente em relação ao panorama — como se esperaria de uma "vanguarda" — mas em relação a si mesmo, ao seu próprio trabalho.

Muitos foram os discos escutados e até mesmo amados em 2014, inclusive alguns que não estão na lista abaixo. Isto porque optei mais uma vez por combinar dois critérios de forma mais ou menos equilibrada: reunindo o conjunto das audições, a cada dia mais incompletas, captar os artistas que se diferenciaram tanto em relação ao seu próprio trabalho, como também em relação ao contexto no qual estão inseridos. Toda lista é subjetiva, produto de experiências pessoais e diz mais do autor do que dos artistas escolhidos.    

Dito isto, selecionei aqueles artistas que foram capazes de surpreender com uma expressão de seu trabalho que eu não conhecia (Juçara Marçal, Cadu Tenório, Yersiniose); reformularam e levaram adiante sua forma de fazer música (Racionais, Kasai Allstars, Untold); desafiaram pela complexidade do conceito (Tyshawn Sorey, Hecker, Schmickler & Rohrhuber, Pisaro); promoveram uma guinada estratégica (Sun Araw, Tricoli, Jaworzyn, Sei Miguel); ou, ainda,  reafirmaram e aprofundaram suas particularidades (Prostitutes, Aphex Twin, D/P/I). Incluí também a coletânea de footwork em homenagem a DJ Rashad editada pela Hyperdub e Metal Shake, quebra-quebra promovido por Peter Brötzmann, Jason Adasiewicz, John Edwards e Steve Noble, preenchido por escalas turcas e dinâmicas imprevistas.  

2014 em 20 discos, 60 faixas, cassetes, mixtapes, relançamentos e alguns shows. Não há uma ordem, mas os sete, oito primeiros discos merecem destaque. Entre as faixas, um fato curiosamente acidental: entre as quinze primeiras, a maioria das indicadas são nacionais. Por motivos óbvios, me guardei de indicar discos e faixas que produzi esse ano, a sua maioria ligados ao Quintavant (evento que ocorre na Audio Rebel, Botafogo/RJ) e ao selo QTV. Alguns shows foram inevitáveis, como o do Coletivo Abaetetuba e o concerto que derivou Bota Fogo, parceria de Paal Nillsen-Love com Eduardo Manso, Arthur Lacerda e Felipe Zenícola lançado pelo QTV (mas gostaria de deixar registrado que admiro muito o primeiro disco do Baby Hilter, Rainha, primeiro disco do DEDO e as canções violíricas de Negro Leo). (B.O.)

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DAS GALÁXIAS

Juçara Marçal – Encarnado (s/g)




















Encarnado é um mapa que descreve rotas aéreas, congruentes e paralelas ao sacrossanto corpo cancional brasileiro. Uma ode à capacidade de resistir aos trancos e barrancos, uma ode ao corpo que perece, ao corpo que existe. Uma cantora que domina a voz, o som, o conceito. Uma consciência para além de tudo o que conhecemos hoje através da palavra "cantora". Uma cantora que mistura sua voz aos ruídos, que produz ruídos, que expõe seu canto em contraste com um trabalho de guitarra dos mais inovadores de que se tem notícia. Não é à toa que Encarnado reúne grandes outsiders da canção das últimas cinco décadas: Tom Zé (a anti-tropicália), Itamar Assumpção (a anti-lira), Siba (o anti-manguebit), o sambista Douglas Germano e toda uma geração da canção paulistana recente: Kiko Dinucci, Rodrigo Campos, Romulo Fróes, Alice Coutinho, Régis Damasceno, Gui Amabis e Thiago França. Um arrasa-quarteirão.


Ouça Encarnado.


Kasai Allstars – Beware the Fetish (Crammed)


O termo "congotronics" é puramente marketeiro, pois as kalimbas são electrificadas. O fetiche que conecta o universo minimalista da música africana com as pistas de dança da velha Europa estão na base do termo. Ele também não dá conta das muitas vertentes sonoras caras à etnia bazombo que se misturam nas doze faixas deste disco. E, no entanto, o Kasai Allstars adverte: "beware the fetish". Contradições à parte, este é um dos discos mais poderosos não só deste ano, como desta década que já se encaminha para sua metade. As variações e nuances que pudemos observar, por exemplo, no segundo disco do Konono (Assume Crash Position), se multiplicam em Beware The Fetish, as cores da percussão, da guitarra, das vozes absolutamente comoventes e vigorosas, os andamentos variados. Outro arrasa-quarteirão.





D/P/I – 08.DD.15/MN.ROY (Leaving Records)




















Formado por Cameron Stallones (Sun Araw), M. Geddes Gengras, Aaron Coyes (do Peaking Lights), MatthewDavid, Butchy Fuego e Alexander Gray, mais conhecido como DJ Purple Image ou simplesmente D/P/I formam oselo coletivo Duppy Gun de Los Angeles. A rapaziada arregaçou as mangas e produziu alguns dos grandes momentos musicais de 2014. A excelente coletânea de faixas gravadas na Jamaica pelo selo Duppy Gun (Multiply: Duppy Guns Productions Vol. I), a mixtape do Genesis Hull (Who Feels It, Knows That) e um dos discos mais estranhos do Sun Araw (Belomancie). Mas o destaque ficou mesmo para dois dos três lançamentos de Gray e seu D/P/I: 08.DD.15 e MN.ROY. Dois trabalhos de samba doido, ritmos inesperados, percussões digitais que descrevem rotas irregulares, tensionamento constante e, sobretudo, irreverência. Algo que muitos imaginam ouvir em Flying Lotus, mas é apenas o despontar de um interesse na multiplicação da percepção rítmica. D/P/I foi mais longe.



D/P/I "SWIN.G" / 08.DD.15 ( Leaving Records ) from /// / on Vimeo.


Untold – Black Light Spiral (Hemlock Recordings)




















"O disco se inicia com ruídos variados distribuídos sobre uma marcação em volume baixo. A textura é interrompida pela eclosão de sirenes de todos os tipos: ambulâncias, alarmes, carros de polícia. Os ruídos não se resumem aos bleeps comuns nesta seara, mas possuem algo de ameaçador, carregados de um aspecto documental, como se fossem extraídos das ruas. O grave se torna proeminente enquanto o clima de desorientação toma conta do ambiente. Estamos situados no âmago do descontrole urbano inerente ao imaginário da eletrônica londrina. Porém, o que geralmente se apresenta como uma vinheta de introdução, em “5 Wheels” dura quase cinco minutos. Não se trata somente de uma indicação de contexto, tal como nas vinhetas desse tipo, mas a tentativa de envolver o ouvinte em uma atmosfera rarefeita e impessoal…"

Ouça "Drop it on the one" e "5 Wheels".


Marcus Schmickler & Julian Rohrhuber – Politiken der Frequenz (Editions Mego, Tochnit Aleph)




















Dois discos de 2014 trabalharam a voz de uma forma maquínica, estrategicamente "desumanizada" e essencialmente crítica: Hecker com Articulação (v. abaixo) e a parceria Schmickler/Rohrhuber com Politiken der Frequenz. Segundo os autores, o trabalho parte da seguinte premissa: “Music and Economics share a fundamental object: number”. Uma teoria crítica, cuidadosamente descrita na capa do disco, sobre a volatilidade dos números, as estratégias aceleração do capital, uma metafísica do lucro, circundam esta obra complexa e misteriosa. Como em muitos trabalhos desta natureza, o título não deve ser desprezado. Ele indica que uma tal política irá operar não em relação ao controle das frequências, mas à valorização de noções como densidade, precisão e situações extremas. O que fascina em Politiken der Frequenz é a forma como a dupla encaminha o problema, através de dinâmicas de relaxamento e tensão, uma certa qualidade dramática que se vale de uma suspensão temporal: enredados em uma trama numérica infinita, entre contas e registros que nos controlam, planificamos nossas vidas sob as ilusão de que andamos para frente.



Tyshawn Sorey – Alloy (Pi Recordings)


















Como escrevi recentemente na comunidade do Matéria no Facebook: "O baterista de jazz Tyshawn Sorey, compositor na linhagem "cósmica" de Webern e Morton Feldman, lançou este ano seu quarto disco, "Alloy". Em pouco mais de uma hora de disco, Sorey inverteu uma premissa histórica relativa ao intercâmbos entre o jazz e a composição moderna: enquanto Ellington e Miles permitiram que o campo melódico/timbrístico dos compositores modernos e contemporâneos penetrassem em suas composições deslizando sobre o improviso, Sorey parte de um composição flutuante, completamente independente da harmonia, para, aos poucos, criar ambientes onde impera o improviso, a desmusicalização das notas e a valorização do som."


Cadu Tenório – Cassettes (Sinewave)




















Cassettes lança um paradoxo comum aos dias de hoje, mas de modo singular: pode ser escutado em CD, no Bandcamp ou arquivos de MP3, sua resolução é essencialmente digital, embora o material bruto tenha sido extraído de uma coleção de cassetes acumulada por quatro anos. Misturada a teclados, violinos, vozes, objetos e ambiências, geram loops irregulares compostos por sonoridades híbridas que oscilam entre o estranhamento e a melancolia, mas também podem ser interpretado como uma experiência de construção conceitual do ritmo. Elaborado a partir de estratégias de adição e subtração e lenta modificação das texturas, Cassettes traz um aspecto diferente da música de um dos mais prolíficos produtores cariocas.  

Baixe o disco aqui.


Prostitutes – Petit Cochon (Spectrum Spools/Editions Mego)





















Diretamente de Cleveland, Ohio, James Donadio chega ao quarto disco do Prostitutes aparando arestas e ressaltando aquilo que seu trabalho tem de mais interessante: a construção sugestiva do ritmo. As estruturas econômicas, focadas sobre texturas repetitivas e timbres lo-fi, sobressaem devido a escassez de elementos harmônicos e melódicos. Sonoridades comuns no universo da música eletrônica de pista (bumbo 4/4, cowbells) se misturam a uma chiadeira em diálogo muito particular com o techno germânico. Um disco soturno, mas repleto de belas batucadas.





Michael Pisaro – Continuum Unbound (Gravity Wave)


























Li recentemente em um site uma definição deste álbum que eu não poderia fazer melhor: "Alguns entusiastas das gravações de campo [field recordings] preferem seus trabalhos sem enfeites; outros preferem incluir alguns ornamentos de forma sutil; e alguns preferem mexer pesadamente no material gravado. O novo projeto de Michael Pisaro oferece as três opções." No primeiro CD, "Kingsnake Grey", temos a paisagem sonora noturna do Congaree National Park, captada por Pisaro e Greg Stuart. "Congaree Nomads" sintetiza em uma hora e doze minutos, 24h seguidas de gravação no mesmo local, adicionado por delicados ornamentos e intervenções de marimba, xilofone e outros instrumentos. Em "Anabasis", a terceira modalidade entra em jogo com a contribuição de Patrick Farmer, Joe Panzner e Toshiya Tsunoda. Trabalho fascinante acompanhado de um projeto gráfico e quatro livros que tematizam toda a experiência, de autoria do artista plástico Yuko Zama.


Racionais MCs –  Cores e Valores (s/g)





















Em seus vinte e cinco anos de carreira, os Racionais MCs dobraram/derrubaram críticos e adversários um a um (eu fui um deles!). Ao mesmo tempo, criaram tantos outros. Não tem como ser diferente, eles anunciam uma guerra, é impossível pensa-los sem a dimensão da nossa grande guerra social, das nossas contradições e conflitos. Se você quer conciliação e uma visão harmônica de país, desista dos Racionais. Mas e a arte? Após "Mulher Elétrica" e "Mil faces de um homem leal", os Racionais mostram que não estão somente em busca de espalhar sua mensagem, mas sobretudo renovar a potência de sua arte. Diálogos com o trap e as vertentes mais recentes do rap, produção econômica e sombria e uma abertura de disco que pode ser considerada como uma das mais impressionantes dos últimos tempos. Alguns acharam que eram vinhetas, outros que era um teaser. Mas o que se revelou foi uma sequência de dez pequenas composições que tomam dezesseis minutos do discos. Os MCs continuam grandes poetas, recusando o papel de arautos de uma nova era, recusando qualquer messianismo — embora seja difícil pensar o Brasil dos últimos 30 anos sem a presença do grupo. Discaço.

Hecker – Articulação (Editions Mego)




















Não topo com o conservadorismo travestido de postura agressiva anunciado por Nick Land através de seu conceito "dark enlightnment"; nem com o cinismo poseur advogado pelos "aceleracionistas"; muito menos com todas essa conversa mole de "realismo especulativo", recauchutagem acadêmica de temas que mais indicam o beco sem saída da filosofia continental do que uma problematização potente do presente. Ainda assim, a música de Hecker soa como um dispositivo crítico relacionado à produção do som e do sentido, correndo por fora do mal estar generalizado que parece tomar conta do pedaço. Como em Chimerization (2012), Articulação é produto da colaboração de Hecker com o filósofo e escritor iraniano Reza Negarestani, associado ao "realismo especulativo", que desenvolveu o conceito de "quimera" — "reunião científica ou mitológica de partes díspares". Deixemos de lado o quanto for possível esta situação teórica para acessar o que Articulação tem de melhor. Em "Hinge*", a artista Joan La Barbara recita dois textos de Negarestani em paralelos, cada um representando os domínios da natureza (canal esquerdo) e da cultura (canal direito). Articulando esses dois grandes "obeliscos", Hecker se propõe a produzir uma síntese de elementos sonoros e textuais, que retornará na terceira faixa ("Hinge**"), completamente alterado por efeitos. No meio das duas articulações, Hecker posiciona "Modulator (…meaningless, affectless, out of nothing…)", uma faixa na qual a "síntese" não passa pela palavra ou pelo texto, apresentando-se de forma mais obscura, mas não menos fascinante.

Ouça "Hinge*".


Sun Araw – Belomancie (Sun Ark Records)





















A viagem para a Jamaica (para a gravação do disco com The Congos) e a formação do selo Duppy Gun reforçaram a visão de que Cameron Stallones buscava fincar uma bandeira no terreno do dub psicodélico: inspiração ambient, andamentos lentos e esfumaçados, bases repetitivas, gravão bem marcado, guitarras saturadas de efeitos, vocais com delay e percussões aleatórias. Mas Belomancie mostra que Stallones tem mais lenha para queimar, apostando em direções, se não divergentes, no mínimo destoantes da densidade inclusiva dos discos do Sun Araw. Neste álbum, composto, tocado e gravado somente pelo próprio artista, o clima psicodélico é substituído pelo delírio onírico: pontos isolados, silêncios por todo o disco, irregularidade. Um esqueleto coberto de penduricalhos aleatórios e um compositor/produtor capaz de fazê-lo andar. 

Ouça Belomancie.


Millie & Andrea – Drop The Vowels (Modern Love)




















Millie é Miles Whittaker (Demdike Stare) e Andrea é Andy Stott. Juntos tocam desde 2008 a dupla Millie & Andrea, sempre atentando para a alteração de padrões estabelecidos do techno e do UK garage. Drop the Vowels, primeiro disco da dupla, desenvolve uma exploração inteligente de timbres e sonoridades aplicadas a uma grade rítmica mais próxima do drum and bass, dos breaks e big beats. Em "GIFF RIFF", escutamos primeiramente um sampler de música árabe (ou egípcia), seguindo-se por sons de máquinas e kalimbas digitais. A sequência varia entre o drum and bass mais direto ("Corrosive", "Drop the Vowels"), variações do UK Garage ("Stay Ugly") e momentos mais abstratos ("Back Down","Quay"). Situado propositalmente entre tradição e renovação, Drop The Vowels trabalha a partir de uma síntese particular de aspectos da música eletrônica britânica dos anos 90.   
Aphex Twin – Syro (Warp)




















A volta de Richard D. James ao cenário da música atual foi marcado primeiramente pela aparição de sinais misteriosos, seguido de um estardalhaço entediante: a reedição de Caustic Window LP, stencils por toda parte, um zepelim cruzando os céus de Londres, vazamentos fake. A ação orquestrada contrastou com a impressão ambígua de que o trabalho não teria ido tão longe quanto o esperado. Mas talvez esta seja a maior força de Syro: o modo como James se mostra senhor do universo diversificado que ele próprio criou nos anos 90. Modulações de seus trabalhos ambient, batidas frenéticas, vozes fantasmagóricas e um otimismo bizarro percorrem as doze faixas de Syro.  
Yersiniose – 1911 (Seminal Records)




















Um dos grandes lançamentos da Seminal Records, selo dirigido pelo chapa J-p Caron, 1911 foi produzido pelo paulistano Mario Brandalise. Quatro faixas que sintetizam de forma consistente os timbres pesados associados ao power electronics e a espacialização de nuvens cacofônicas, características de algumas manifestações da música de ruídos. Uma construção conceitual arrojada, mas ao mesmo tempo extremamente fluida e cativante.

[Ao lado de Cassettes de Cadu Tenório e outros lançamentos como Rainha, Heavy Metal Maniac, o primeiro disco solo de J-p Caron (Sinewave), os trabalhos do God Pussy, 1911 indica temos hoje na seara das abstrações sonoras e música extrema, uma produção consistente e diferenciada do restante do mundo. Delírio? Pelo jeito, os norte-americanos já sacaram. Convém ficar de olho].




Valerio Tricoli – Miseri Lares (PAN)




















A julgar por uma apresentação que assisti no ano passado, imaginei que esse segundo álbum de Valerio Tricoli pudesse trazer um improvisador ainda mais radical do que aquele que gravou Forma II ao lado de Thomas Ankersmit (também editado pelo selo PAN). Gravado entre 2011 e 2013, Miseri Lares traz um artista mais preocupado em elaborar um panorama complexo, descrevendo rotas acidentadas e ricas em materiais sonoros. Trabalhando de forma indistinta com procedimentos variados, desde field recordings até manipulação de fita, Tricoli produz modulações incessantes na forma da composição, valorizando as dinâmicas de volume e os detalhes de timbres.

Ouça "Miseri Lares".


Peter Brötzmann, Jason Adasiewicz, John Edwards, Steve Noble – Mental Shake (Otoroku)




















Um dos discos de improviso mais fortes desse ano conta com Peter Brötzmann empunhando o Tarogato, uma espécie de flauta turca, Noble e Edwards comandando as dinâmicas de seus respectivos instrumentos e, ao fundo, Jason Adasiewicz construindo um tapete de harmonias delicadas, fugidias.




Stefan Jaworzyn – Drained of Connotation (Blackest Ever Black)





















Um disco brutalmente repetitivo, desprovido de sentimentalismos melódicos. A revolta das máquinas através da manipulação de timbres diáfanos e estruturas rudimentares. Os títulos são amistosos: "Psychoanalytically Speaking, You're Fucked", "Sinister Eroticism In Oslo", "Pillars Of Excrement". Drained of  Connotation é uma coleção de faixas produzidas em 1982, um dos três discos lançados esse ano que quebram um hiato de 17 anos e inauguram a carreira solo do veterano Stefan Jaworzyn, ex-membro do Whitehouse e do Skullflower.

Ouça "Sinister Eroticism in Oslo".


Sei Miguel – Salvation Modes (Clean Feed)




















Sei Miguel é um trumpetista francês que já morou no Brasil e desde a década de 80 reside em Portugal. Na ativa desde a década de 80, sua música sempre esteve de alguma forma vinculada ao improviso e às vertentes experimentais do jazz contemporâneo. Em Salvation Modes, Miguel dá início à divulgação de composições que vem armazenando na gaveta ao longo de 30 anos. Uma sequência de paisagens e panoramas climáticos, trilha sonora para filme noir entrecortada pelas intervenções dos treze músicos — com destaque para o trombone de Fala Mariam, a guitarra de Pedro Gomes e as intervenções eletrônicas de Rafael Toral. Sugestão: ouça no fone.  


Vladislav Delay – Visa (Ripatti)


Pudemos comprovar a versatilidade de Sasu Ripatti no Festival Novas Frequências deste ano. Ele domina tanto a pista de dança quanto o palco, mostrando que a importância do seu trabalho hoje não se restringe somente à música eletrônica, mas a convergência indiscriminada de fontes sonoras. Desenvolvendo diversos projetos ao mesmo tempo, Ripatti demonstra um espírito aguçado em busca de sons e estruturas sonoras. Sob a alcunha Vladislav Delay, faz uma interpretação absolutamente particular da ambient music em Visa, disco que nasceu de uma recusa de visto para entrar nos Estados Unidos.




Vários artistas – Next Life (Hyperdub)




















DJ Rashad celebrado por seus parceiros e amigos: Spinn & Taso, Taye, Traxman, RP Boo, Manny, entre outros. Uma homenagem à altura deste que foi um dos grandes inovadores de um dos mais inovadores movimentos da bass music mundial.



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FAIXAS

MC Bin Laden e todo o crew que o acompanha. Ramificações criativas do funkcarioca se espraiando pelo território, modulando. Gente mexendo com estrutura, conceito, não é mimetismo vazio. Algumas produções dessa turma não tem batida, só o gravão sustentando. Em referência à experiência do popular "lóló", "Lança de Coco" tem alguns segundos de uma frequência agudíssima, impensável para o funk de alguns anos atrás. É preciso liberdade para mexer profundamente com um gênero tão popular. A burrice roqueira característica da melomania média brazuca nunca foi capaz de produzir a partir desse espírito renovador e irreverente.



Corpo-máquina, corpo-som:



Faixas indispensáveis:

"Devora o Lobo" – Alessandra Leão
"Chorus" – Holly Herndon


"Grey Over Blue" – Actress (lançada em 2013, mas incluída em um disco de 2014)



Outras faixas indispensáveis:

"Electric Fish" – Cadu Tenório + Marcio Bulk (com César Lacerda)
"Drop It On The One" – Untold
"Bololo Haha" – MC Bin Laden
"Picada Fatal" – MC Livinho
"Make Her Say (Beat It Up)" – Estelle
"200 Press" – James Blake
"Velho Amarelo" – Juçara Marçal
"Last Mistress" – Body/Head (Jake Meginsky remix)
"Faith OG X" – Copeland
"Irmandade de São Benedito" – Projeto Mujique



"Fortress (The Hague, 2005)" – A Made Up Sound
"Momentum I (para Giacinto Scelsi II)" – J-P Caron
"Emtee" – S Olbricht
"No Surrender" – Andy Stott
"Ruckus In B Minor" – Wu Tang Clan
"Behind the Loops" – Ena


"Boxoff" – Machinedrum
"Eat My Fuck" – I.B.M.
"Primate 2" – Kevin Drumm
"Exu" – Juçara Marçal
"Oneiric Contour" – Lee Gamble 
"False Entities" – Sendai 
"Colony Collapse" (with Nova) – Filastine
"Anger Alert" – Kevin Drumm & Jason Lescalleet
"Past Majesty" – Demdike Stare
"Nan Nife" – James Ruskin
"Forerunner Foray" – Shabazz Palaces


"Two Weeks" – FKA twigs
"White Flower with Silvery Eye" – Shackleton
"Gland Collector" – Stefan Jaworzyn
"Retrato na Praça da Sé" – Tom Zé
"Hidden Lake Club" – Fischerle
"Chaghaybou" – Tinariwen
"Léthé" – Kaumwald
"Everything" (Villalobos & Loderbauer: Vilod high blood pressure mix) – Neneh Cherry
"Somethin ‘Bout the Things You Do" – DJ Rashad ft. Gant-man
"Scarface" – Freddie Gibbs & Madlib
"Jhones" – DEDO
"Ndikagona (When I Sleep)" – Malawi Mouse Boys
"The Only Scarf" – Prefuse73 & Machinedrum
"Lurch" – Perc
"Periscope Blues" – Ron Morelli
"Static Things" – Fennesz
"Reddin Off" –Afrikan Sciences
"The Holy Cave" – Clap! Clap!





RELANÇAMENTOS




Aby Ngana Diop – Liital
Mestre Cupijó e Banda – Siriá
Hailu Mergia and The Walias – Tche Belew
Morton Subotnick – Silver Apples of the Moon
Caustic Window LP
Half Japanese  – Volume 1: 1981-1985
Nick Drake – A day gone by
Verckys et l'Orchestre Vévé – Congolese Funk, Afrobeat and Psychedelic Rumba 1969-1978


COLETÂNEAS



Francis Bebey – Psychedelic Sanza 1982-1984
Les Amabassadeur du Motel Bamako
Music from the Mountain Provinces
Anastenaria – Music Of The Fire Walkers
Hyperdub 10.1,10.2, 10.4
Let No One Judge You — Early Recordings From Iran, 1906-1933
Belgrade Is The World
David Toop – Mondo Black Chamber


INÉDITOS ANTIGOS



John Coltrane – Offering: Live At Tempel University
Αναστενάρια – Music Of The Fire Walkers
Miles Davis – Miles at the Fillmore - Miles Davis 1970: The Bootleg Series, Vol. 3'
Gal Costa e Gilberto Gil – Live in London 71' 
Mars – Rehearsal Tapes and Alt-Takes NYC 1976-1978
Angus MacLise – New York Electronic, 1965

CASSETES



HATE – Bad History
Vatican Shadow – Death Is Unity With God

MIXTAPE



SHOWS


DJ Rashad. Foto: Eduardo Magalhães. 






















12/04 – DJ Rashad – Wobble (Usina, RJ)
25/04 – Paal Nilssen-Love + Felipe Zenícola + Eduardo Manso + Arthur Lacerda  – Quintavant (Audio Rebel, RJ)
22/05 – Untold – Wobble (Fosfobox, RJ)
14/06 – Juçara Marçal – Quintavant (Audio Rebel, RJ)
26/07 – Metá Metá, Passo Torto, Juçara Marçal, Rodrigo Campos, Romulo Fróes, Sambanzo (Ibirapuera, SP)
30/08 – Bassekou Kouyaté – MIMO (Ouro Preto, MG)
19/09 – Arto Lindsay + Paal Nilssen-Love + Kiko Dinucci + Thiago França – Quintavant (Audio Rebel, RJ)
01/11 – Coletivo Abaetetuba – Quintavant (Audio Rebel, RJ)
04/12 – Aki Onda – Novas Frequências (Oi Futuro, RJ)
09/12 – Mark Fell + Keith Fullerton Whitman – Novas Frequências (Audio Rebel, RJ)
12/12 – Bill Orcutt – Novas Frequências (Oi Futuro, RJ)

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Playing the blues: entrevista com Bill Orcutt























Entre 1992 e 1996, Bill Orcutt foi um dos responsáveis por uma das experiências sonoras mais brutais e niilistas da história da música norte-americana. Ao lado de sua mulher, a baterista Adris Hoyos, e do guitarrista Mark Freehan, Orcutt criou o Harry Pussy. Seus discos eram gravados em baixa fidelidade e saturados de guitarras fuzzy e berros alucinados, trazendo à tona uma linguagem visceral, esgarçando o espaço sonoro através de improvisos de curtíssima ou longa duração. Segundo o músico e produtor norueguês Lasse Marhaug, “Harry Pussy deveria ser obrigatório em todas as escolas de música”. 

Com o encerramento dos trabalhos do Pussy, Orcutt se mudou para São Francisco, retornando a música somente em 2009 e chamando a atenção através do álbum solo A new way to pay old debts. Primeira diferença: não mais a guitarra saturada, mas um antigo e surrado violão Kay com apenas quatro cordas (sem as cordas D e A) e um captador DeArmond. Tocando esses instrumento — que requer afinação constante para não quebrar de vez — Orcutt produziu uma sequência de faixas gravadas de forma espontânea, demonstrando uma estilo rebuscado e particular de tocar o violão: dedilhados fortes, pizzicattos (técnica de puxar as cordas), arpeggios acelerados, harmônicos, arabescos, captados sob uma leve poeira cacofônica. A forma de gravação indica uma qualidade imersiva: o telefone toca, o músico resmunga, passa um carro lá fora…

Se por um lado, é nítida a influência de algumas tradições do violão norte-americano — de bluesmans como Son House e Robert Johnson até experimentadores como John Fahey e Robbie Basho — é notável também a influência de músicos como Glenn Gould, que, contrariando as prerrogativas formais da música erudita, costumava falar durante as gravações. Abaixo, conversamos por email sobre alguns desses assuntos. 

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Entre 1992 e 1996, você foi responsável por uma das experiências sonoras mais brutais e niilistas da história da música norte-americana. Passados tantos anos, você saberia dizer quais os principais elementos por trás da força do Harry Pussy?
O fato é que o Harry Pussy nunca se propôs a ser "brutal" ou "niilista". Curiosamente começamos como uma banda que pretendia tocar mais silenciosa e lentamente, e nosso primeiro disco é de fato bastante silencioso e lento. O que quer que eventualmente tenha se tornado ocorreu porque foi por onde a nossa curiosidade e interesses nos levou. Provavelmente esse é o elemento-chave: sem ideias preconcebidas, apenas seguindo nossa própria lógica interna. Assim, quando lançávamos algum disco ou fazíamos shows sempre foi a expressão autêntica do que estávamos criando naquele momento.

Um das características centrais do grupo era a liberdade extrema com a qual vocês trabalhavam. Havia no Harry Pussy limites pré-determinados entre composição, gravação e apresentação?
Tínhamos liberdade na concepção, mas não muita liberdade na execução. Tocar era diferente de compor, mas a gravação poderia abranger tudo. Gravávamos tudo e lançávamos o que quer que nos tenha parecido interessante, independente de ser ensaio, show ou algum evento incidental.

Você já fazia experiências com afinação? Nos conte um pouco sobre como você lidava com a guitarra durante esse período.
Desde os anos 80 que eu tocava guitarra com quatro cordas, usando o conjunto de cordas padrão e afinando sem as cordas A e D. Ocasionalmente eu afinava a corda E grave até G. E é isso. Até o momento eu brincava com Adris, minha configuração já tinha sido estabelecida, por isso não houve qualquer experimentação com afinação nesse momento, embora houvesse muita experimentação com a forma de jogar com essas quatro cordas.

Uma certa inclinação dadaísta sempre atravessa os trabalhos do Harry Pussy, mas Let’s Build a Pussy essa tendência chega a um minimalismo radical. Conte-nos um pouco sobre a motivação e o conceito por trás do disco.
Tivemos uma oferta de um selo interessado em remixar uma de nossas faixas. Reuni os materiais para o remix, mas por alguma razão, isso nunca aconteceu. Então decidi fazer por conta própria. Isso foi em 1997, exatamente no período em que a banda estava prestes a acabar. Parecia um gesto apropriado para o nosso último lançamento fazer um disco duplo com a simples dilatação de uma única sílaba da voz de Adris. Agora, esse procedimento seria trivial, mas em 97 foi uma provação, exigindo vários dias e diversos discos rígidos.

O que você fez entre o fim do Harry Pussy e o álbum solo A new way to pay old debts? Ouvi dizer que você trabalhou com filmes, é verdade?
Não. Na verdade, a maior parte do meu trabalho com cinema aconteceu antes. Depois que o Harry Pussy se separou, eu me mudei para San Francisco, comecei uma família e ganhava a vida como engenheiro de software. Por cerca de 10 anos depois do fim da banda, eu quase não toquei na guitarra.


















De repente você reaparece tocando um violão completamente original: dedilhados, pizzicattos, arpeggios acelerados, harmônicos, arabescos, timbres saturados. Quando você começa a desenvolver esse conjunto de ideias em torno do violão?
Em 2008, eu montei uma compilação do Harry Pussy para o selo Load e o ouvir a nossa música me fez ficar interessado em tocar novamente. O violão era a opção mais conveniente porque eu poderia tocar em casa sem perturbar ninguém. Coloquei quatro cordas e comecei a desenvolver uma técnica que funcionaria no violão. Em parte, era uma tradução do que eu costumava fazer com a guitarra elétrica, mas em parte também era algo novo. Eu pratiquei por cerca de um ano antes de começar a gravar de novo.

Como se dá a relação entre composição e improviso no seu trabalho?
Normalmente acho que a improvisação é uma espécie de ponto de partida para a composição ou uma forma de reelaborar uma composição já existente. Provavelmente, só cerca de um terço do que eu faço ao vivo é improvisado, embora, geralmente, os ouvintes pensem que a porcentagem seja muito maior.

Em entrevista recente, você disse: “I’m just a guy who is trying to find his own way to playing the blues.” Conte-nos um pouco sobre a concepção de A new way to pay old debts? Quais as referências e influências que determinaram o resultado sonoro do álbum?
Esse foi o primeiro disco solo que fiz e me preparei escutando um monte de instrumentistas solo, especialmente de jazz, pianistas clássicos, bluesmans, guitarristas de flamenco, o Anthony Braxton de "For Alto", etc. Como sempre fiz parte de um grupo, passei boa parte do tempo tentando entender como tocar sem o apoio de ninguém. Essa é provavelmente a principal coisa sobre A New Way to Pay Old Debts: aprender a tocar sozinho.



Por favor, fale um pouco sobre como você encontrou seu instrumento, um violão Kay com apenas quatro cordas (sem as cordas D e A) e um captador DeArmond.
Eu comprei esse violão Kay quando eu era universitário e tive desde que eu era um adolescente. O catador eu comprei no eBay, porque era o mesmo modelo que Elmore James usava em sua guitarra. Eu aposentei o Kay um par de anos atrás, porque ele estava caindo aos pedaços. Por um tempo eu colecionei violões dessa marca, então ainda tenho vários destes Kay de 1950. Ultimamente tenho viajado com uma acústica Guild um pouco entediaste, um instrumento que posso substituir facilmente se as companhias aéreas o perderem ou quebrá-lo...

Em seus discos solo a ambiência fala alto: um telefone toca, o músico resmunga, passa um carro lá fora… A forma como são gravados indica espontaneidade, imersão no ambiente. Ouvi dizer que há a influência de Glenn Gould. Fale um pouco a respeito da espontaneidade e da presença sonora do entorno em suas gravações.
A New Way foi gravado em nosso velho lugar em uma rua comercial muito barulhenta em São Francisco, em um apartamento de esquina onde escutamos um monte de ruídos da rua. O barulho incidental foi inevitável. O telefone tocando aconteceu acidentalmente mas deixei como um tributo a Derek Bailey, que tem um telefone incidental tocando em seus registros. (Bailey também inclui conversas, o que optei por não fazer). Quanto aos meus murmúrios e vários barulhos de boca, eu os deixei por não saber como removê-los. Há um monte de pianistas que fazem algum tipo de som vocal quando estão tocando, talvez seja incomum para um guitarrista, mas não é tão estranho em geral.

Há em seu último trabalho, A History of Every One, um movimento de “limpeza” dos arpeggios e dos timbres, como se você depurasse os elementos mais ruidosos, ressaltando o discurso musical? Se eu estiver certo, este movimento foi proposital?
A History of Every One foi gravado em minha casa atual, que é muito mais silenciosa do que o apartamento onde gravei A New Way. Também usei uma guitarra diferente, afinada um tom acima, e por isso, provavelmente, obtive um som mais claro e mais limpo. Além disso, não usei catadores ou amplificadores, apenas o som do violão acústico. (Isto é válido inclusive para o LP que veio antes How The Thing Sings). Então é verdade que se trata de uma gravação mais limpa, mas, principalmente, é parte da progressão de um disco para o outro, mais do que uma reflexão sobre seu conteúdo.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Diferença e repetição: entrevista com Keith Fullerton Whitman























Tarefa nada simples a de circunscrever em termos estéticos a militância eletrônica que Keith Fullerton Whitman conduz com autoridade de um inventor. São muitos os trabalhos envolvendo seu nome, mesclando formatos (CD, CDr, cassete, LP), selos (No, PAN, Root Strata, etc.), parcerias, aparatos técnicos e vertentes da eletrônica experimental — ambient, drone, eletroacústica, além de momentos do mais enervado artesanato noise. 

Compositor de música eletrônica e eletroacústica norte-americano, Whitman se tornou conhecido primeiramente como Hrvatski, pseudônimo para seu trabalho mais voltado para drum’n’bass e IDM. A partir de 1999, passou a lançar discos assinando com seu próprio nome, utilizando-se primeiramente de samplers e guitarra processada e, posteriormente, operando sintetizadores. Desde então, lançou uma série de trabalhos importantes no domínio dos sintetizadores modulares analógicos e digitais.

Ultimamente, Whitman tem se dedicado a desenvolver meios para interação com sintetizadores modulares e softwares no sentido de viabilizar uma apresentação de música eletrônica em tempo real. Em decorrência deste trabalho, Whitman editou dois álbuns pelo selo austríaco Editions Mego: Generators e Occlusions, totalmente improvisados e, segundo o próprio, “tocados sem ajuda de quaisquer materiais pré-gravados ou mesmo pré-arranjados”. O músico comandou o estúdio Reckancomplex/Mimaroglu e mantém a distribuidora de música de vanguarda Mimaroglu Music Sales. Abaixo, a reprodução da conversa que tivemos por e-mail, sobre vários aspectos de sua carreira. (B.O.)

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Esta entrevista pretende servir como uma introducão de seu trabalho no Brasil, de modo que não poderei fugir desta pergunta famigerada: por favor, conte-nos um pouco sobre como você começou a se interessar por música. Quais foram as influências musicais e não-musicais que o levaram a trabalhar com música?
Me interessei por música simplesmente por estar cercado por ela desde que era uma criança. Havia música constantemente lá em casa, inclusive a que vinha pelas ondas do rádio. Cresci na cidade de Nova York durante o final dos anos 70, de modo que tive acesso a quase todos os tipos imagináveis de música. Ficava fascinado com qualquer música que caísse em minhas mãos. A proximidade deste ambiente, o rádio e as vendas de garagem (“garage sales”) foram, provavelmente as minhas maiores influências não-musicais.

Quais caminhos o levaram até os primeiros discos do Hrvatski? Neste período, a guitarra parecia ser mais importante do que os sintetizadores.
Na verdade, toco muito pouco a guitarra nos registros Hrvatski — uma linha aqui, outra acolá — a maioria são samples. Até cheguei a produzir música sampleando faixas pré-existentes. Não faço mais, embora pense sobre isso o tempo inteiro. Estudei guitarra durante todos os anos de faculdade, portanto acho que ainda é meu principal “instrumento”. Então, compus um pouco para guitarra processada com o auxílio de computadores no final da década de 90 e início dos anos 2000, mas foi tudo com meu próprio nome.



Playthroughs (2002) parece indicar uma guinada em seu trabalho, uma guinada para a ambient, o drone e para paisagens sonoras mais contemplativas. Como se deu essa mudança de perspectiva?
Minha mãe ficou doente e, em seguida, faleceu. Durante esses anos, não me via fazendo uma música alegre, exuberante, talvez até mesmo irreverente. Playthroughs refletiu uma séria mudança na forma como comecei a conceber a música em geral. Fazer música tornou-se minha vida desde então, e não me arrependo.

Houve um movimento deliberado na passagem da guitarra processada para os sintetizadores? Podemos dizer que nessa transição, sua música migrou de uma percepção do ritmo como “repetição” para uma concepção irregular e subjetiva?
Playthroughs, em essência, foi uma síntese de padrões, um colcha de retalhos. Na minha juventude não tive acesso a sintetizadores de verdade. Quando comecei a produzir, quase todo esses equipamentos já existiam em softwares. Então, não acompanhei todo esse período em que trabalhava-se com teclados e sintetizadores. Era tudo novo quando comecei a operar sistemas como sistemas Buchla ou Serge no início de 2000. Por outro lado, todas as idéias polirrítmicas que estão no final de Playthroughs permanecem em evidência no meu trabalho atual. Nesse sentido, eu não mudei muito.























A peça “Dream House Variations” sugere uma experiência análoga às intervenções espacializantes que artistas como Eliane Radigue desenvolveram nos anos 70? Como você pensa sua música em relação a esse universo das artes, particularmente a chamada “arte sonora”?
Essa peça é tão específicamente dedicada a La Monte Young que é impossível vê-la de qualquer outra forma. Trata-se de uma meta-resposta às políticas de “portas fechadas” (“closed-door policies”) de La Monte. Foi uma peça definitivamente destinada a ser irreverente. Dito isso, eu sou um grande fã da chamada “primeira onda” de artistas sonoros. Eu penso neles da mesma forma como penso nos músicos da época. O problema é que a ênfase nos componentes visuais e físicos de seus trabalhos se perderam para mim, pois os descobri através de gravações. Relaciono esses compositores com a ideia de um tempo musical extensivo e irregular, que trabalha, por exemplo, com músicas muito longas, performances extremamente curtas, etc.

Ao contrário da estrutura econômica de Generators, Occlusions segue por uma linha mais “granulada”? Mas consta que os procedimentos são muito semelhantes. Em linhas gerais, como você definiria suas estratégias técnicas e conceituais para a utilização de sintetizadores modulares em tempo real? Conte-nos um pouco sobre a produção dos dois álbuns lançados pelo selo austríaco Editions Mego: Generators e Occlusions.
Ambos os registros foram feitos quase que simultaneamente, utilizando exatamente a mesma configuração e o mesmo gravador — um Dictaphone de $ 99. Depois, os sons foram completamente remodelados com aparelhos digitais. Fazia sentido publicá-los quase ao mesmo tempo, mas eu mesmo fiquei espantado com a diferença radical de Occlusions em relação a Generators. Isso se deu como resultado de uma forma específica de “quantificar” as frequências mantendo o tempo relativamente sub-dividido. De outra forma, eles corresponderiam literalmente aos mesmos padrões. Eu gostaria de mostrar como a música pode ser amplamente variável de acordo com meios técnicos e procedimentos semelhantes. Embora, no final, eu tenha ficado com a impressão de que a experiência tivesse fracassado. 

Sobre trabalhar com o Editions Mego e com Peter (Rehberg, diretor do selo) foi perfeito, é claro, assim como trabalhar com Graham Lambkin na arte para o Generators.



Tenho uma curiosidade particular com o split que você fez com Eli Keszler. Você parece partir da premissa sonora posicionada pelo maquinário de Keszler. Vocês trabalham esse split juntos? 
Sim, eu realmente me deixei influenciar pela abordagem de Eli Keszler para o solo de caixa (snare drum). Admiro muito a forma coesa com que Eli aperfeiçoa suas soluções para tocar ao vivo, trata-se de um músico fantástico. Nós fomos para o estúdio no ano passado e gravamos vários dias de música bastante interessante, mas tive que lutar para encontrar o tempo e os recursos para sentar e passar algumas semanas mixando e desenvolvendo o trabalho. O tempo nunca parece ser suficiente diante de tantos shows, de minhas responsabilidades aqui em Cambridge, etc.



Curioso observar que desde o Hrvatski até seu trabalho com os “greatest hits”, você parece gostar muito de descaracterizar grandes sucessos de mercado. Conte-nos um pouco sobre esse interesse, quais os principais conceitos por trás desses processos de descaracterização? Eles são políticos? Em que sentido?
Realmente não penso os “Greatest Hits” como algo além de uma rotina pessoal, terapêutica. Eu estava na dúvida se deveria compartilhar esses experimentos publicamente depois de fazê-los por tanto tempo (10 anos!). Mas, no fim das contas, tive algum retorno positivo. Sim, alguns deles funcionam como um comentário à falta de qualquer “policiamento” real no modo como a música é apresentada na internet, que se reflete na confiança das pessoas em seus resultados de busca no Google. Se você procurar por várias dessas canções, o Soundcloud dos “Greatest Hits” é o seu primeiro resultado de busca, que é ao mesmo tempo muito revelador do estado atual desta área específica da cultura musical que me parece extremamente problemático. E isto me abriu alguns diálogos muito frutíferos.



Por favor, conte-nos um pouco sobre sua experiência compondo “Rythmes Naturels” no antológico estúdio INA-GRM em Paris.
Isso foi realmente algo muito importante. Uma comissão adequada após entrar por tantos anos em muitos desses estúdios pela porta dos fundos, uma experiência real estilo “porta da frente”. Eu mal podia conter a minha emoção, e no final, compus uma peça que me deixou muito feliz. Eu teria adorado passar mais um mês lá, mas é importante saber quando seguir em frente.



Como tem se desenvolvido as apresentações ao lado de Mark Fell?
Mark é alguém cujo trabalho respeito há muito tempo, desde os primeiros 12 polegadas do SND em meados dos anos 90. Nós nos conhecemos há alguns anos e realmente nos entendemos bem. Em seguida, tocamos em alguns shows juntos no ano passado na Alemanha. Isso levou à colaboração atual, que eu estou achando muito satisfatória no momento. O resultado da parceria não tem sido diretamente ligado nem ao meu, nem ao seus interesses estéticos, mas parace apontar para algum caminho próprio. Estou muito curioso para ver onde essa parceria irá nos levar.



Você é um artista prolífico, e ainda encontra tempo para administrar um estúdio (Reckancomplex) e uma loja online especializada em música experimental (Mimaroglu Music Sales). Você pode ser considerado um cara que trabalha muito. Como essa saturação de tarefas repercute/interfere sobre seu trabalho? A condição de workaholic é uma premisa do trabalho artístico contemporâneo, especialmente o trabalho com música experimental?
O Reckankomplex está fechado já há algum tempo, mas ainda comando a Mimaroglu no meu tempo livre. Para mim, é fundamental ter todas estas ocupações diferentes acontecendo ao mesmo tempo. Sempre comparo com a imagem circense de ter muitos pratos girando sobre as varas. Eventualmente, alguns pratos cairão no chão, mas é relativamente fácil levantá-los e colocá-los para rodar novamente. Mas não acho que uma ética do trabalho pesado seja necessariamente parte da música experimental. Alguns dos meus artistas favoritos trabalham lentamente e de forma esporádica ao longo de décadas em uma única idéia! Eu sou um pouco mais curioso e não estou tão preocupado em me repetir.

Sim, estou constantemente trabalhando com música, seja produzindo, seja na Mimaroglu. Mas não lanço um registro adequado há dois anos, um recorde! Em parte, isso tem a ver com as variações eternas para me manter à tona. Mas também não estou interessado em lançar algo simplesmente por lançar. 

Você costuma escrever sobre a música que você vende na Mimaroglu e é sempre muito interessante. Você acha que a crítica de música tem uma certa influência especial sobre as obras do artista hoje em dia?
Minha crítica não deveria ter qualquer efeito sobre qualquer outra pessoa. Raramente pode ser considerada como uma “crítica”, mas, principalmente, um comentário. Sempre quis ser despreocupado, bem-humorado. Acho desafiador o trabalho de apresentar a música experimental na linguagem cotidiana, para realmente ajudar a quebrar essas barreiras geladas que muitas vezes impedem as pessoas de se aproximarem deste universo.

Em uma recente entrevista para Lasse Mahraug, você observa que alguns dos underdogs mais talentosos da música eletrônica são negligenciados pela academia. Você acha que a academia ainda é uma instituição importante para a música? Eu pergunto isso porque no Brasil, acredito que este papel exploratório foi perdido e foi substituído pela música que é desenvolvida de forma independente.
Eu estava falando especificamente sobre os históricos compositores da Música Eletrônica dos anos 60 e 70 (como Tod Dockstader, por exemplo). Mas, sim, sinto que isso é verdade. Ou, pelo menos, não percebi nenhuma diferença qualitativa real entre o que encontrei no fundo das lojas de discos ao longo dos anos em relação ao que éramos forçados a escutar enquanto estudantes de graduação no início dos anos 90. Acho que um estudo formal de música é sempre uma boa idéia, não tenho arrependimentos de ter cursado uma faculdade de música. Mas sou crítico ao sistema que alimenta uma polarização entre compositores que fizeram seus nomes ligados a alguma instituição e os outros compositores. 

Por fim, gostaria de saber se você identifica particularidades no modo como a música é concebida, produzida e consumida. De onde vem a música hoje?
A passividade do consumo nos dias de hoje parece estranha para mim. Não vivemos em uma época onde as pessoas estejam inclinadas em definir seus próprios gostos. Elas parecem mais felizes em ser alimentadas, seja de forma invisível ou mesmo ativamente. A idéia de pesquisar durante anos para gravar uma composição, depois de ter lido sobre ela uma década antes, é uma coisa difícil de explicar para as pessoas mais jovens. Especialmente nestes tempos de gratificação instantânea e de uma instabilidade ainda mais veloz. Apesar de termos os meios disponíveis para a pesquisa plena e para o mapeamento de qualquer idéia, continuo escutando toneladas de música completamente redunante, que copia quase exatamente a música pré-existente. Me pergunto por que isso acontece em tal escala como ocorre agora.