segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

(entrevista) Chinese Cookie Poets

Foto: Ervo Perez
O trio carioca Chinese Cookie Poets lança hoje o single En La Mano Del Payaso, como prelúdio para Worm Love, primeiro álbum do grupo. Junto ao single (que você pode escutar no player abaixo), o CCP também disponibiliza o clipe hilário da faixa “En La Mano Del Payaso”. É motivo de júbilo para todos aqueles que admiram o noise-rock-nu-funk-free-improv-no-wave-out-choro-free-jazz-latin-punk-proto-samba com o qual o grupo vem angariando fãs não somente pelas bandas de cá. Além do Rio de Janeiro (capital e Região dos Lagos), São Paulo (capital e inteiror) e Vitória, o CCP fez 5 shows em 3 cidades do Chile. Nada mal para um grupo de música experimental, que iniciou os trabalhos a menos de dois anos em uma cidade inóspita para este tipo de atividade.

Formado por Renato Godoy (bateria), Felipe Zenícola (baixo) e Marcos Campello (guitarra), o Chinese Cookie Poets lançou dois trabalhos até o momento: o EP homônimo de 2010 e o bootleg Dragonfly Catchers and Yellow Dog. Porém, em 2012, o grupo promete pelo menos mais 3 lançamentos até o meio do ano, entre trabalhos de carreira e parcerias. Quem estiver interessado em conferir o som do grupo ao vivo, terá a oportunidade no próximo fim de semana, dia 21 de janeiro, quando o CCP se apresentará na Casa do Mancha, em São Paulo, ao lado de outra boa surpresa carioca de 2011, o Sobre a Máquina – em ambas as apresentações, a participação do saxofonista Alexander Zhemchuzhnikov. Abaixo, um bate papo virtual que tivemos com os integrantes do grupo.

Bernardo Oliveira
Ps.: Na próxima quarta-feira, Thiago Miazzo entrevista o Sobre a Máquina.





Apesar de ter iniciado os trabalhos em 2010, o grupo apresenta um som maduro. Comecemos, então, pelo começo: como surgiu o Chinese Cookie Poets? O que vocês faziam antes de formar a banda?

Renato: Foi um processo de maturação bem natural e lento. Eu e Felipe tocamos desde o colégio, 1998. Tivemos dois projetos com uma direção puxada pro improviso, o Bossal (2000-2005) e o Muwei (2005-2009). O Felipe já conhecia o Marcos (que na época tocava no Fanfarra, depois no Farta Cecília) do estúdio de ensaio onde trabalhava e sempre esbarrávamos os três pelo Plano B na Lapa por volta de 2008. Após o fim do Muwei em 2009, eu e Felipe conversávamos sobre testar umas formações mais enxutas, duos, trios, abordando mais o free jazz, numa onda de fazer mais shows e praticar improvisação. Marcos e Felipe já esboçavam umas idéias, trocavam uns arquivos, marcavam umas sessões de improviso de baixo e guitarra (de onde surgiu “Flat Tire Bikes” do primeiro Ep).

Um dia bebendo uma cerva, Felipe me apresentou umas faixas com umas programações de bateria, pensando em fechar aquele material num EP. Na hora que ouvi gostei muito da proposta, mas achava que o resultado soava muito aquém do que seria se fosse alguém tocando mesmo. Foi quando propus de gravar umas baterias em cima, apenas pra registrar o EP sem intenção de formar uma banda. Em março de 2010 marcamos a sessão de gravação e aproveitamos pra registrar uns takes de improvisos. Os caras editaram tudo e me mandaram o material pronto. Ouvi o resultado, achei excelente e me toquei que precisava seguir com o projeto. Logo depois em julho surgiu a possibilidade de fazer um show na Audio Rebel (estúdio carioca) com o EKE (trio holandês de free jazz).

Foi quando o Felipe, depois de todo o processo de gravação/edição e já com as músicas prontas, me apresentou ao Marcos na véspera do primeiro ensaio pro show. Fizemos uns três ensaios e o show rolou. Aí a banda começou de fato, em agosto de 2010. O Ep mesmo só foi sair em dezembro. 

As influências parecem evidentes: free jazz e demais sonoridades instáveis, de Sun Ra a Otomo Yoshihide. O que vocês costumam escutar hoje? E quais os artistas contemporâneos que mais influenciam o CCP? 

Renato: Otomo é o cara, eu diria. Keiji haino e Tatsuya Yoshida, a cena de free europeia: Peter Brötzmann, Mats Gustafson, Zu, Moonchild do Zorn. A cena de Nova york anos 80 e 90, muito fértil, James Chance, Marc Ribot, DNA e Aggregates (trio do Arto Lindsay em 1995).

Felipe: Otomo é sem dúvida uma grande influência, assim como outros artistas japoneses como Boredoms, Melt Banana, Merzbow... Sobre nosso processo de edição/construção dos arranjos me influencio muito pela linguagem usada pelo duo Haino/Yoshida, mencionado pelo Renato. Fora isso John Zorn, free jazz em geral, Fantômas, Mr. Bungle, a cena No Wave... Também os trios Primus, Zu e Trans AM. “Baixisticamente” é impossível não impregnar o CCP com o som do Les Claypool, do Primus, faz parte da minha (de)formação como instrumentista.

Marcos: Frank Zappa e Alvin Lucier são grandes influências no que diz respeito à composição. Na guitarra, muito Derek Bailey, Marcelo Birck, Raphael Rabello, Brian May, John Russel, Fred Frith, Pepeu, João Bosco, Arto Lindsay. Atualmente tem o Hamilton de Holanda, Alex Macacek, Allan Holdsworth (não tão atual), Scott Henderson.

Como é o processo de composição do CCP? Quais as estratégias que vocês adotam no sentido de gerenciar os momentos de composicão e improviso?

Marcos: Temos dois processos principais de composição: a improvisação, de onde tiramos temas criados coletivamente, e a apresentação de idéias de cada um, que geralmente é feita através da produção de uma gravação tosca para indicar aos outros o caminho imaginado pelo autor.

O primeiro caso subdivide-se em duas frentes, sendo elas a gravação de sessões de improviso para posterior edição (onde surgem as músicas do disco), e a levação de som vendo o que sai, que também é gravada, mas de forma documental pra não perdermos o que acontecer de bom. No segundo caso, da música já imaginada por alguém, lapidamos até ficar decente pra ser tocada ao vivo ou lançada em disco – e geralmente a versão gravada é bem diferente da tocada em shows.

Respondendo a segunda parte da pergunta, nossa forma de conjugar composição/improvisação é mais empírica do que teórica; testamos partes improvisadas em meio a compostas e inserimos partes compostas entre improvisações. Outra situação é quando a música não tem um tema definido (o que geralmente significa que é mais textura sonora, ou então extremamente complexa para ser reproduzida literalmente). Nesse caso ou usamos a idéia geral da coisa como base pra improvisar ou então partimos para algo livre mesmo. 

Foto: Mauro Castro
No Myspace está escrito: “Para os sedentos por comparações, CCP percorre diversos estilos compostos e hypados, como Noise-Rock, Nu-Funk, Free-Prov, No-Wave, Out-Choro, Free-Jazz, Latin-Punk, Proto-Samba...” Classificar o trabalho é realmente importante ou trata-se de uma ironia? Ainda existem “gêneros” hoje em dia?

Felipe: Em um primeiro momento sentimos a necessidade de “classificar” o som da banda no release, pois acabávamos de surgir e ainda apresentávamos uma sonoridade que soaria “estranha” para a grande parte das pessoas que ouvissem. Por isso sentíamos a necessidade de contextualizar nosso som dentro das nossas influências. Mas com certeza, fizemos isso intencionalmente de forma irônica, uma auto-zoação, pois nessa hora é muito fácil acabar com um discurso pedante, excessivamente intelectualizado. E eu pessoalmente vejo todo o “escracho” existente no CCP como uma forma de quebrar esse excesso de pedantismo que permeia o meio “experimental”. 

Falem a respeito das gravações dos dois Eps. Foram retiradas integralmente das apresesentações? Vocês fazem algum tipo de pós-produção?

Renato: Nosso processo de gravação até agora tem sido um exercício interessante, pois trabalhamos muito na pós-produção, construímos e arranjamos muito na edição criativa dos improvisos, que gera resultados sempre improváveis, caminhos que não seguiríamos naturalmente. Depois do disco pronto, tem todo o trabalho de sentar e estudar o que foi criado mecanicamente. Por isso, no show, os arranjos ganham um sabor bem diferente, mais fluido pois usamos o espaço dentro das estruturas para executar tudo mais solto. 

Mas tudo isso depende do conceito inicial que vamos seguir no disco, sempre estamos conversando sobre essas possibilidades se vamos gravar ao vivo, separado, editar, sobreposição, 4tracks… Até agora, em estúdio não gravamos nenhuma música composta previamente, todos os arranjos foram feitos durante a pós, processo que usamos pra fazer o primeiro Ep e o próximo álbum. Já o bootleg Dragonfly catchers and yellow dog (segundo Ep) é um show gravado na Audio Rebel na íntegra. 

De qualquer forma, parece que há uma lacuna entre as gravações dos dois Eps e as apresentações ao vivo, pois percebe-se uma certa dificuldade para levar as nuances para o estúdio e vice-versa. Isto é previsto, ou vocês pretendem criar arranjos específicos para os próximos lançamentos?

Marcos: Na verdade o primeiro Ep foi feito em estúdio, sem sessões em que os três presentes, apenas takes em duplas e solos, com muita edição (onde surgiram os temas), num trabalho sem muita organicidade, mas com o objetivo justamente de criar algo minimamente orgânico – o que consideramos que foi atingido.

O segundo Ep foi o contrário, uma gravação tosca de um show nosso que ao ouvirmos achamos boa pela musicalidade. E nesse sentido ela mostra o fim do caminho de um dos nossos processos de composição, onde improvisamos/editamos em estúdio e depois aprendemos a tocar as músicas.

Com relação à diferença entre o show e os discos, na verdade às vezes temos dificuldade para levar as nuances da música editada para a situação de tempo real, pois o que está nos discos muitas vezes tem um suingue estranho, difícil de ser realizado ao vivo. Além disso, nos shows acontece muita coisa extra-musical que nos levar pra outros lugares aonde uma sessão em estúdio não tem chegar, assim como sessões também levam a lugares por onde os shows não passam. 

E sobre essas duas novas faixas? Serão parte de um EP ou um álbum de formato convencional?

Felipe: Estamos lançando agora o single En la mano del payaso, como uma prévia do disco que lançaremos até final de fevereiro, Worm Love, pelo selo Sinewave. Esse será nosso primeiro álbum, com 10 faixas. Elas foram produzidas de forma similar ao primeiro EP: fizemos uma sessão de improviso no início de 2011 na Audio Rebel, e durante o processo de pós-produção fomos editando, montando os arranjos a partir do material bruto. Ficamos satisfeitos com o resultado, bem cru, visceral, e ao mesmo tempo heterogêneo.

Há duas principais diferenças em relação à produção do primeiro Ep: dessa vez a gravação foi feita com os três tocando juntos, e o processo de edição dos improvisos foi em geral mais radical que o do primeiro EP. Nesse álbum a edição é mais explícita, funcionando como um quarto instrumento mesmo. O disco ainda conta com uma participação especial em uma das faixas. Agora o desafio está sendo em “tirar”os arranjos do disco pra tocar ao vivo… Quem for no show em SP, na Casa do Mancha (no próximo dia 21 de janeiro) já vai ter uma amostra desse material.

Além do single, estamos lançando hoje nosso segundo clipe, da música En la mano del payaso: um clipe pop pra uma música pop, é nossa "Ana Júlia", digamos assim.



O som do Chinese é, evidentemente, direcionado para um público específico, interessado em experiências, noise, e demais sonoridades. Como vocês avaliam as condições atuais de produção, distribuição, consumo e fruição para quem pensa a música fora das grandes estratégias de mercado?

Renato: Acho que nunca rolou tanta liberdade pra produzir. Distribuição é um grande problema, poucos selos especializados, poucos blogs interessados. Acredito que quando o foco é a música, não o mercado e se tem tempo, naturalmente as coisas começam a funcionar. O público vai procurando, umas pessoas passam pra outras. Pessoalmente acho que a divulgação “boca a boca” sempre foi o melhor meio, onde os músicos e projetos se criam, na rua. Apostamos muito na cena experimental do Rio, excelentes músicos, linguagens distintas, público pequeno mas fiel, apesar de micro é única. Começou com o Fernando no PlanoB uns anos atrás (onde participamos com o Bossal e Muwei 2005, no primeiro festival de música experimental carioca, o Outro Rio). Atualmente vem ganhando tentáculos no Quintavant (um coletivo de músicos criado em 2011 que vem organizando shows e sessões de improviso na Audio Rebel). É muito importante a criação de uma cena, um local definido onde músicos e o público troquem ideias regularmente, se criem e registrem projetos. Não somente situações esporádicas de um show ou outro, uma vez por ano, como era um tempo atrás. Com uma cena forte, consequentemente os projetos amadurecem e surge o interesse dos blogs, selos daqui e de fora, estamos caminhando.

Felipe: No âmbito da música experimental, falando em Brasil, há ainda o desafio de consolidar novas estéticas para um público ainda desinformado. Acho que hoje é importante o artista sair do seu nicho, e tocar para públicos diversos. E junto com esse processo, a tríade artista – mídia – público precisa se auto-sustentar/alimentar. Quando tocamos fora do Rio, ocorre um fenômeno interessante. Em todo show, geralmente parte do público acha aquilo tudo sem muito sentido… Mas ao menos uma pessoa nos procura, entusiasmada, dizendo que nunca ouviu nada parecido com aquilo e que o som é “muito doido”! Por isso é importante que todos esses agentes atuem paralelamente, o artista divulgando o som, e a midia contextualizando aquele momento; nós não participamos de  nenhum tipo de revolução musical, existem milhares de artistas, cenas pelo mundo afora nas quais nos espelhamos e é preciso que esse público interessado tome conhecimento do contexto no qual a banda atua. Tanto para poder usufruir de um imenso e interessante universo musical, já que há o interesse, quanto para, a partir disso, poder usufruir mais do que nós estamos fazendo, para além do “muito doido”. Mas para isso, acho que falta um diálogo maior os artistas e o público (maior circulação, viver a música na prática, como disse o Renato) e especialmente maior cobertura (embasada) das mídias alternativas, blogs, etc… Creio que assim teremos uma cena forte, concisa e de melhor qualidade também, porque a formação de um público informado e crítico influenciaria diretamente na produção artística.

Mesmo com todos os problemas e limitações, é evidente que há uma cena experimental se consolidando no Rio. Ela pode ser mínima, parcial, mas é maior que há 10 anos atrás. Claro que o Fernando e o Plano B tem importância fundamental nisso. Mas como vocês avaliam a emergência não só da Audio Rebel e do Quintavant como prepostos criativos, como também o surgimento de bandas e projetos dedicados à música experimental?

Marcos: Não sei se dá pra dizer que há mais atividade experimental hoje do que há dez anos atrás, mas talvez mais contato entre os vários tipos de experimentação, consolidando talvez o que você chama de “cena experimental”. Nesse sentido imagino que os espaços estejam também menos parciais, ortodoxos, podendo-se fazer projetos diferenciados, sem a necessidade de ser seguidor de uma estética específica.

Imagino a Rebel e o Quintavant como decorrências da atividade incessante do Plano B, uma expansão da proposta de apresentação de coisas sonoras quaisquer para um público interessado. E é interessante ver que ainda assim cada lugar tem suas especificidades, o que enriquece ainda mais a experiência de frequentá-los.

Finalmente, acho que muitos contatos são criados nestes lugares, muitos choques estéticos são vividos e muitas questões levantadas, e é isso que coloca o experimentalismo na roda, confrontando opiniões e gerando discussões, levando sempre ao contato com algo desconhecido ou ignorado. Daí surge um novo caminho, geralmente.

O que vocês curtem hoje na música brasileira?

Marcos: Eu ouço Teresa Cristina com grupo Semente, Hamilton de Holanda, João Bosco, Arismar do Espírito Santo, Chico César ...

Felipe: Do que há de novo, Domenico Lancelotti, Bixiga 70, Duplexx, Cidadão Instigado, Kassin, Negro Leo, Abayomy Afrobeat Orquestra, Ava Rocha…

Renato: Hoje em dia Rubinho Jacobina, Negro Leo, Cidadão Instigado, Kassin, Domenico, Ava Rocha, Rumpilezz Orquestra, Alberto Continentino (um dos discos mais clássicos que ouvi em muitos anos, deve sair esse ano), Stephane San Juan, Orquestra Contemporânea de Olinda também... Muita coisa boa acontecendo no Rio!

Fale um pouco a respeito do show do dia 21, na Casa do Mancha, em SP.
Felipe: Esse show vai ser foda! Há algum tempo estamos pra marcar um show com o Sobre a Máquina, que é uma banda bem interessante do Rio, dark/pop/ambient/post/drone! Nosso set será diferente dos últimos shows que fizemos. Voltamos a tocar músicas que havíamos parado de tocar, aproveitaremos a presença do grande saxofonista Russo/carioca Alexander Zhemchuzhnikov no show do SAM e faremos um improviso em algum momento. E, como falei antes, “tiramos” dois arranjos do Worm Love. Vai ser divertido. Levaremos cópias do single pra SP, em mini CD, pra quem quiser.

Depois do Worm Love, quais os próximos passos do CCP?

Marcos: Temos três discos que já estão gravados, em diferentes fases de produção, e pretendemos lançar todos no primeiro semestre de 2012. Os três são parcerias com músicos diferentes, cada um com uma direção bem peculiar. Uma das parcerias foi com o saxofonista argentino Sam Natch, inclusive divulgamos uma das faixas desse disco na ultima sexta-feira (13/01) no podcast do blog A Camarilha dos Quatro. Além disso, faremos uma turnê nacional com o trio instrumental suiço MIR no final de fevereiro/começo de março. Ainda temos um disco conceitualmente amarrado a ser gravado esperamos que em meados desse ano, e vamos tentar lançar até dezembro; e um outro acústico, mas esse ainda está no mundo das idéias. Apesar de tanto material, estamos mais preocupados agora em tocar, rodar por aí fazendo shows e conhecendo quem trabalha com sons mais experimentais, ou pelo menos instrumentais.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

(crítica - disco) Wilson Moreira + Baticun (1991-2011) (2011; Musicazes, Brasil)


Este talvez seja o álbum mais injustiçado nas famigeradas listas de fim de ano. Trata-se do encontro entre Wilson Moreira e o grupo percussivo Baticun, formado por Beto Cazes, Carlos Negreiros, Jovi Joviniano e Marcos Suzano. Sem dúvida, um dos maiores compositores da segunda metade do século XX no Brasil, Wilson Moreira é autor de sucessos como “Goiabada Cascão”, “Gostoso Veneno”, “Senhora Liberdade”, “Judia de Mim” e “Quintal do Céu”, as últimas duas gravadas por Zeca Pagodinho. Acompanhado pelo Baticun, registrou, entre os anos de 1988 e 1991, vozes e bases com a intenção de pleitear o auxílio do produtor e fotógrafo japonês Katsunori Tanaka – que também produziu Nelson Sargento, Velha Guarda da Portela e o próprio Moreira. O projeto não foi adiante e só agora, vinte anos depois, foi editado pelo selo de Cazes, acrescido de violão, cavaquinho, sopros, percussões e coral.

O resultado? Bem, posso afirmar, de saída, que contrasta radicalmente com tudo o que se faz hoje em termos de samba no Brasil. Vale notar como é significativo o fato de que esse contraste seja derivado da personalidade de Wilson Moreira, 75 anos, grande compositor e “solucionador cultural” carioca, que ao lado de Nei Lopes, compôs uma das parcerias mais prolíficas de toda a história do samba carioca. Conservou, porém, sua independência estilística, destilada através de pérolas como Okolofé, Peso na Balança, Entidades, ou nas que participou com o Partido em 5, de Antônio Candeia. Tradição e ousadia sempre caracterizaram seu trabalho.

Que os grandes órgãos de imprensa insistam inexplicavelmente em não lhe prestar a devida atenção, e que ele nunca habite a lista dos “cem mais da música brasileira”, apenas comprova a profunda importância de sua obra. A seu lado, outros grandes compositores como Luiz Carlos da Vila e Beto Sem Braço permaneceram a meio palmo de uma divulgação justa, evidenciando que a questão não passava somente por critérios estéticos… E, no entanto, se tornou habitual considerar a música desses autores sob o guarda-chuva do “samba de raiz”, ou samba “tradicional”. Mas a julgar exclusivamente pela música que emana desta colaboração, nada leva a crer que se pretendam ligados a uma “tradição” pétrea, ou a uma identidade musical limitada a certos procedimentos, timbragens, tipos de composição etc.. Pelo contrário, Wilson Moreira + Baticun evidencia uma tensão constante entre o legado e o futuro, entre o que já é sabido e adquirido e aquilo que é fruto de inesperados lampejos criativos. 

Assim, a faixa de abertura, “Abrindo os Trabalhos”, ouvimos um “aguerê” – ritmo de oxóssi, oriundo do candomblé – com percussões pesadas e um baixo grave que, num primeiro momento confundi com Massive Attack. À moda de um mestre de cerimônias, Moreira dá as boas-vindas ao ouvinte, e com seu sorriso característico,  brinca com a própria ousadia: “hiiiii, agora tá gostando né? Pode sambar, pode sambar, isso…” Na sequência, “Questão de Identidade”, demonstra como um eventual alistamento ideológico não restringe a criatividade de seus agentes. Trata-se de um jongo de refrão em versos brancos (i. é, sem rimas), cuja instrumentação se constitui apenas por instrumentos de percussão: duas práticas incomuns no samba carioca. 

“Só você não entendeu
A história está aí
Seu problema é pessoal
Que não assume onde nasceu”

É lícito considerar que tanto o significado do verso, como o título da canção, apontam para uma perspectiva abstrata acerca do conceito famigerado de “identidade nacional”. Porém, há uma farta literatura sobre o tema, e longas batalhas ideológicas ainda serão travadas a esse respeito – as inclinações didáticas do “cepecismo” não morreram, assim como o deslumbre diante da "diversidade"... Porém, considero uma hipótese discreta, mas válida: de que o mero soar da música incrível presente nesta colaboração possa trazer, com suas ondas invisíveis, mais do que questões, polêmicas e explicações sócio-científicas, mas uma resposta consistente e efetiva em forma de música. Música rica, jovial e festiva.

Um capítulo à parte são os arranjos e a instrumentação compostas pelo Baticun, que, primeiramente, foge à timbragem comuns às concepções padronizadas que marcaram o gênero nesses últimos vinte anos. Em comparação com este trabalho, o samba gravado hoje no Brasil abdicou da pesquisa de timbres. Reparem nas sonoridades pouco usuais em “No Talho da Madeira” ou no bravun “Negro Doce Amor”, atravessado por ataques de guizos e derbak. E mesmo em sambas como “Terreiro Grande”, percebe-se não só a inclusão de instrumentos pouco utilizados, como também empregados de modo atípico. Tal orientação transfigura o clima malemolente de algumas das canções de Moreira, conferindo-lhes um balanço forte e vibrante, reforçado pela jovialidade de sua voz, captada em um momento de grande vigor criativo. Um momento particularmente emocionante do disco é a entrada do deslumbrante naipe de sopros em “Ôloan”, arranjados por Henrique Cazes.

As letras de Moreira percorrem miríades urbanas, suburbanas e rurais, como na parceria com Nei Lopes, “Mulata do Balaio” ou no jongo/reggae “No Arrebol”; antigos hábitos e costumes, como na descrição extemporânea, quase poética, do trabalho madeireiro em “No Talho da Madeira”; a religiosidade afrobrasileira, em “Ôloan” e na corimba “Nanã”. Além de um domínio impressionante dos ritmos afrobrasileiros, que o permite explorar uma ampla variedade de inflexões poéticas e musicais, Moreira é artesão de canções, que sempre revela palavras e ritmos invulgares, para não dizer inusitados. A combinação deste talento com a ousadia dos arranjos do Baticun, portanto, é absolutamente bem-sucedida, uma surpresa em todos os sentidos. Que este projeto tenha ficado tanto tempo engavetado só confirma o que se suspeita desde a primeira audição: de que se trata de um trabalho adiante do seu tempo. 

Bernardo Oliveira