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quarta-feira, 22 de abril de 2015

Matana Roberts – Coin Coin Chapter Three: River Run Thee (2015; Constellation Records, EUA)






































1.
O tempo como problema filosófico e, por consequência, a memória enquanto algo mais que um repositório de impressões e experiências, foram temas centrais para a arte e o pensamento produzidos durante o século XX. As relações entre tempo e subjetividade foram desdobradas não somente pelos conceitos filosóficos de autores como Bergson, Heiddeger ou Deleuze, mas se originaram em contextos nos quais a arte tendia a fornecer respostas mais eficazes, seja através de problematização teórica (Boulez, Klee), seja através de obras de arte concretas, como o “Quarteto para o fim dos tempos” (Messiaen) e as pinturas de Malévitch. O tempo contado do relógio e das relações sociais, que fornece o parâmetro adequado para que os exércitos marchem e os trabalhadores cumpram seu turno, seria o tempo da representação, ao passo que o tempo afetivo, o tempo não-contável dos artistas, constituiria o tempo da expressão.


2.
Como afirma Deleuze, em A Lógica do Sentido: “(…) as representações sensíveis são designações, as representações racionais significações, mas somente os acontecimentos incorporais constituem o sentido expresso” (DELEUZE, p. 148, 2013). Assim, entre a representação e a expressão do tempo há uma diferença de natureza que os artistas souberam exprimir de forma mais concreta e múltipla daquela exposta pelos filósofos. Como os acontecimentos incorporais, a memória tende a se exprimir na sua própria atualização, o que implica em dizer que a memória é sempre criativa, e não representativa. A memória, portanto, não se resume a um dispositivo de rememoração e atualização, mas também de criação.


3.
Matana Roberts parece estar ciente desta distinção. Compositora, instrumentista, bricoleur, poeta dos sons e das palavras, Matana opera com o som, o tempo e a memória em uma direção singular. Sua música autoral visa a reelaboração do legado cultural diaspórico na América sob um ponto de vista “pós-racial”, isto é, um enfrentamento dos conflitos e das redefinições impostas pela América de Obama encarados de forma mais complexa daquela que separa raças e credos no espírito do capitalismo. Para realizar este projeto, Matana vem aos poucos concebendo uma panaceia sonora capaz de trazer à tona não somente este presente conflituoso e, quem sabe?, promissor, mas todo um apanhados de objetos sonoros e experiências reunidos sob uma técnica particular batizada inicialmente como “Panoramic Sound Quilting”: “Em suma, é uma linguagem que tenho desenvolvido desde 2005 — um sistema de linguagem de som chamado PSQ (Panoramic Sound Quilting), que usa a notação musical ocidental e trechos de idéias visuais, tudo reunido para representar um som ‘acolchoado’, coeso, que me intrigue e desafie como compositora e musicista, assim como ao ouvinte.” 


4.
Como escrevi em um artigo que antecipava seu primeiro show no Rio de Janeiro em 2013, o projeto COIN COIN “consiste em um panorama sonoro programado para doze capítulos voltados à exploração de temas como memória, imaginação e ancestralidade. (…) A intenção é ressignificar os traços dessa cultura em vistas de sua atualização e problematização, não como um balanço retrospectivo, mas como um dispositivo criativo endereçada ao futuro.” Ressignificar, bem entendido: recusar as representações disponíveis, sondar a memória enquanto provedora de imagens e afetos, amplificar a subjetividade, borrar as fronteiras da representação, remodelar a experiência presente. Se podemos afirmar hoje que o problema político se concentra em uma disputa pelo espaço da imaginação pública, é possível identificar no embaralhamento sonoro-afetivo proposto por Matana a marca indelével de uma artista capaz de vincular experimentação e política como poucos no panorama da música contemporânea. 


5.
Munida de um conceito (a expressão da América pós-Racial como um dispositivo criativo endereçado ao futuro) e de uma técnica de composição (Panoramic Sound Quilting), Matana vem construindo seu projeto COIN COIN. A cada volume, um desenvolvimento particular do conceito e da técnica. No terceiro volume da série (ouça aqui), uma surpresa: ela está sozinha. Não divide mais com os músicos a responsabilidade de mediar expressão sonora e conceitual. Ela é responsável por tudo: conceito, som, disposição dos elementos, apresentação em concerto. De início, percebe-se que o conteúdo provocador sobressai. No concerto realizado em 2013 no Rio de Janeiro, ela, negra, adentra o palco com um “Black Face”. No lançamento do álbum em janeiro deste ano em Nova Iorque, duas bandeiras, a norte-americana e a dos Confederados, a segunda operando uma função semelhante àquela desempenhada pelo "black face" no show do Rio. Sobre a bandeira norte-americana, dois objetos simbolizando a passagem do tempo: uma vela vermelha acesa (o tempo queimando, o tempo subjetivo) e uma ampulheta (o tempo contável), volta e meia revirada. Um livro de São José e um fichário sugerem as palavras, cantadas, sussurradas, gritadas, exorcizadas, expelidas. Saxofone, clarinete, samplers e eletrônicos construindo com sons um cenário pós-racial, mas ainda assim conflituoso, distópico.  



6.
No encarte da terceira parte de COIN COIN há uma frase que se encontra em íntima relação com o conteúdo do projeto: “Uma panacéia sonora para o que o que aflige a mim, a você... uma coleção de sons que assentam o tempo, assentam a memória naquele espaço para além lembrança…” A memória, situada para além da lembrança, constituiria então um espaço ambíguo entre a reconstituição fidedigna do tempo vivido, e aquela memória impressionista, composta por camadas e mais camadas de fragmentos  avulsos, sons e imagens que, como as fotos impressas no encarte do disco, foram manchadas e envelhecidas pela passagem do tempo. Trata-se portanto de uma atitude de descrédito perante o turbilhão da memória: reiterar os traços do presente e da representação ou reencená-los através de um espírito desafiador? “Come away, come away…” ela repete em uma das faixas de COIN COIN 3. Podemos encontrar uma atitude semelhante em uma canção do Funkadelic em que Clinton pergunta a seu brotha nigga: “Ain’t you deep in you semi first class seat? You picket this and protest that, and eat yourself fat!”


7.
Em comparação com os dois primeiros volumes, COIN COIN 3: River Run Thee é de longe o mais estranho e incomparável. O mais rico em contribuições e ideias. O volume capaz de exprimir o sentido geral do projeto de maneira mais contundente, difícil e, ao mesmo tempo, inebriante. A colagem é, sem dúvida, mais complexa que nos discos anteriores. Não se percebe imediatamente o papel de cada instrumento, eles estão justapostos e modulam com vozes, sons do cotidiano, ruídos de naturezas diversas, rumores. O amálgama impressionista sobressai à própria noção de “instrumentação”. Composto por uma miríade de elementos, River Run Thee ensaia tempos simultâneos através de gravações de campo extraídas de uma estadia temporária no inverno do Mississipi/Tennessee/Louisiana e da “caótica Nova Iorque do século XXI”; trechos de um discurso de Malcom X (“Confronting White Opression”, 1965); excertos dos escritos de Captain G.L. Sullivan e de W.M. Scott; canções de domínio público como “Star Spangled Banner” (Francis Scott Key), “Beautiful Dreamer” (Stephen Foster), entre outras. Matana canta, fala, toca seu saxofone alto, um piano vertical Archambault do início do século passado, sintetizadores. 


8.
A impressão de caos sonoro da primeira audição vai se transformando em uma torrente de acontecimentos e impressões com caráter indefinido. E no entanto, ainda assim, a impressão de um rio correndo em fluxo desenfreado não cessa. COIN COIN 3 não é um disco de “faixas”, mas de afetos que atravessam a experiência da audição. Em favor da expressão, Matana recusa a representação, isto é: para exprimir uma arte alienígena e endereçada ao futuro, prefere abrir mão dos significados disponíveis e leva o problema político-racial da América para o campo perigoso e inapreensível da expressão. Durante as audições, me lembrei do conto de Guimarães Rosa, “A terceira margem do rio”, as margens psico-metafísicas mais ou menos detectáveis no peito de cada um. Lembro de Riverão Sussuarana de Glauber Rocha,  “renovela”, “recordel” que combina narrativa, teatro, poesia e jornalismo em um estilo absolutamente original e sem seguidores. Mas referências não explicam a magnitude do trabalho. Talvez seja o caso de, pelo menos aqui, seguir os conselhos da autora: “Melhor ouvi-lo em um quarto escuro, alto, em uma sessão ininterrupta, com alguém que você ama, que talvez também te ame?”.

Bernardo Oliveira

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Matana Roberts: Folk Music do Século 21




















A velocidade do raciocínio de Matana Roberts pode a princípio comprometer o sentido do que ela deseja exprimir. Por exemplo, na entrevista para a última edição da revista Wire (ed. 356, outubro de 2013), Matana expõe um dilema inaudito: se no passado a beleza pagã e profunda das sonoridades afro-americanas contrastava com o alijamento do povo negro do processo político, a América pós-Obama lhes obriga a confrontar outra situação. É preciso agora responder a outras necessidades, lidar com o legado dentro de uma perspectiva que vislumbre, ao mesmo tempo, a suspensão do estigma social e o gozo das virtudes de um futuro aberto. Não se trata de negar a história ou o sofrimento de seus antepassados, muito menos de fazer vista grossa para as desigualdades raciais que ainda vigoram nos Estados Unidos. A obra recente de Matana parece tatear respostas para perguntas extremamente problemáticas: é possível livrar-se do ressentimento e extrair positividade de uma experiência traumática? Como lidar com o legado cultural de modo a permitir um outro olhar em direção ao futuro? Não deixa de ter um significado incômodo o fato de que tanto as respostas, quanto as perguntas se tornem visíveis no âmbito da música, a linguagem da guerra, da festa e do dinheiro, particularmente na América negra. 

Matana alcançou considerável reconhecimento como saxofonista de jazz, operando basicamente entre sua cidade natal, Chicago, e a cidade onde mora atualmente, Nova Iorque. Tal reconhecimento se deu basicamente através de projetos e grupos tais como Sticks & Stones (ao lado de Chad Taylor), com seu próprio quarteto ou, ainda, através do álbum The Chicago Project, em parceria com Frank Rosaly, Jeff Parker, entre outros. Tocou também com Rob Mazurek, Roscoe Mitchell, Henry Grimes, Pauline Oliveros, além de ter participado da gravação de Yanqui U.X.O, do Godspeed You Black Emperor!, de colaborações com o Savath & Savalas de Guillhermo Scott Heren e com o TV On The Radio. Contudo, foi a partir de “Coin Coin”,quando trouxe à tona as questões expostas acima, que despontou como uma das vozes mais contundentes da cultura negra norte-americana produzida no século 21.

Projeto de residência artística situado primeiramente no Canadá, “Coin Coin” consiste em um panorama sonoro programado para doze capítulos votados à exploração de temas como memória, imaginação e ancestralidade. O primeiro capítulo, intitulado Coin Coin Chapter One: Gens de Coleurs Libres, foi lançado em 2011 e obteve destaque na imprensa especializada ao sintetizar a linguagem do jazz acústico, cantos, declamações, articulações imprevisíveis e até mesmo caóticas entre a memória, som, imagem e poesia. A intenção é ressignificar os traços dessa cultura em vistas de sua atualização e problematização, não como um balanço retrospectivo, mas como um dispositivo criativo endereçada ao futuro.



A ideia não parece estranha se levarmos em consideração o aspecto autobiográfico do projeto, “Coin Coin” é o apelido de Marie Therésè Metoyer, escrava liberta que no século XVIII fundou uma comunidade em Cane River, Louisiana, onde outros negros libertos tinham acesso a grandes oportunidades. Segundo Matana, seus pais foram criados nessa região e, através de contos e estórias, cultivavam a memória de Coin Coin. “Ela foi o primeiro arquétipo feminino forte, além de minha mãe e minha avó, e isso foi exposto sob a forma de narrativas (storytelling)”, declarou à Wire. A presença da memória de Coin Coin pode causar a impressão de que trata-se de uma viagem ao passado. Mas basta escutar faixas como “Kersalia”, para adiar essa impressão. A composição condensa de forma absolutamente particular, declamações, estilos jazzísticos de épocas diferentes (fire music e dixieland), de forma a suspender a sucessão temporal em favor de um tempo mítico, concentrado não sobre a cor da pele, mas sobre a gama de experiências.

“Estou buscando destacar a experiência através do som de uma forma profundamente desafiadora para o ouvinte”, explica Matana, após lhe perguntar o que ela espera alcançar quando combina múltiplas referências para criar música. A respeito do caráter multifacetado de seu trabalho, pode-se afirmar que, não somente em relação ao projeto Coin Coin, mas de uma forma geral, Matana se utiliza de um amplo fundo extra-musical, recorrendo à fotografia, às narrativas audiovisuais e poéticas e, é claro, à música para elaborar algo como uma tapeçaria sonora. Isso se reflete claramente em seus álbuns, tanto os que se podem situar na seara do jazz tradicional, como nas possibilidades experimentadas nos dois primeiros volumes de Coin Coin.

No primeiro, Matana incorporou elementos dramáticos e evocativos, de forma a amarrar o conteúdo sonoro em uma narrativa descontínua. Ao passo que Coin Coin Chapter 2: Mississippi Moonchile soa mais como um trabalho coletivo, voltado para dinâmicas de banda, remetendo às orquestras, aos ensembles, às fanfarras que perfazem a história da música negra norte-americana. Pergunto se a autora percebe diferenças entre os dois primeiros capítulos, se de fato esta distinção foi intencional: “Cada capítulo deve ter seu próprio caráter individual, mas estão muito ligados pela criação. A propósito, este é apenas o segundo capítulo. Quero que cada capítulo tenha seu próprio sabor, mas eu ainda quero que a reunião de todos eles represente um todo de emoção e experiência humana.”



Embora seu trabalho tenha primeiramente se associado à cena do jazz tradicional, Matana considera a história da(s) cultura(s) negra(s) americana(s) como algo vivo e presente. A memória exerce um papel fundamental nesse contexto, mas ao invés de reafirmar o ressentimento, opera de forma criativa. Não há espaço para a nostalgia em Coin Coin. É perceptível uma tensão entre o passado e o presente, entre a memória e a experiência, mas sempre em vistas do futuro e da celebração do presente: “Algumas pessoas saem dos meus shows em Nova York porque não é ‘jazz’. Eu sou mais uma experimentalista que às vezes usa o jazz para comunicar meus sons, mas não é a única forma de arte americana com a qual eu flerto no meu trabalho. Estou lidando com a história da cultura afro americana, mas também estou lidando com a história da cultura americana como um todo. Eu amo a história americana — e isso inclui muitos elementos culturais que me interessam além da cor e do gênero. Para mim será sempre fascinante. Eu também sou fascinada pelas idéias das lembranças, e de como nós, como seres humanos, priorizamos as memórias, armazenamos idéias que vêm de algum lugar, que nos pede para lembrarmos algumas características que poderiam ser esquecidas. Fico intrigada com o que as pessoas deixam para trás.”

Certa vez Matana declarou que Coin Coin “é uma composição de linguagem e som". Em outra entrevista, teceu algumas considerações a um conceito particular, "panoramic sound quilting". Ela explica: “Em suma, é uma linguagem que tenho desenvolvido desde 2005 — um sistema de linguagem de som chamado PSQ (Panoramic Sound Quilting), que usa a notação musical ocidental e trechos de idéias visuais, tudo reunido para representar um som ‘acolchoado’, coeso, que me intrigue e desafie como compositora e musicista, assim como ao ouvinte.” Parece evidente que o termo quilt ("colcha" ou "acolchoado" em inglês) diz respeito a uma dupla característica: na medida em que remete ao artesanato, alude à força do trabalho manual, mas também exprime o aspecto presente das experiências, sintetizando muitas expressões em uma forma musical coesa e poderosa.

















Uma das ferramentas mais intrigantes nesse som panorâmico que Matana desenvolve é a utilização da voz, seja para declamar trechos de escritos seus e de outros autores, seja para flertar com as frequências do saxofone. Seu canto também aparece com mais destaque no capítulo dois de Coin Coin, embora no primeiro sua aparição seja mais contundente. Pergunto se existe alguma razão específica para isso e ela responde com um misto de sinceridade e modéstia: “Eu não estou nem um pouco interessada em ser vista como uma vocalista. Eu realmente não sei cantar muito bem, e não trabalho o canto da mesma forma que o saxofone, mas Coin Coin para mim é um trabalho de folk music experimental do século 21. E cantar é uma parte importante das tradições da folk music. Eu até costumo fazer o público cantar com as bandas durante estas performances. Mas o Capítulo 2 pediu muito mais o uso da voz do que o Capítulo 1, por razões que eu realmente não posso explicar. Foi apenas a forma como a peça saiu de mim. Eu sempre vou pelo instinto primeiro, e muitas vezes a música me diz mais o que fazer do que eu digo.”



Matana se apresenta no próximo sábado, 28/09 no Centro Cultural São Paulo e domingo, 29/09 na Audio Rebel, Rio de Janeiro. Matana coleciona fotos e objetos dos séculos 18 e 19, e os utiliza para se inspirar e construir seu trabalho. O título do concerto que apresentará no Brasil é Ephemera, uma combinação de imagens antigas, sons processados ​​e sons executados ao vivo, em que a artista testa as ideias que possivelmente serão reaproveitadas com seus grupos maiores. Por fim, manda um recado para os brasileiros, um recado aparentemente standard, mas que, vindo de quem vem, soa como uma consideração sobre a história do negro na América: “Estou realmente ansiosa para voltar ao Brasil. (...) É o único país que visito onde sou muitas vezes confundida com uma brasileira!”

Bernardo Oliveira