quarta-feira, 28 de setembro de 2011

(crítica - disco) Sidi Touré & Friends – Sahel Folk (2011; Thrill Jockey, EUA [Mali])

Para descrever os atributos deste álbum, convém enaltecer a felicidade de um encontro musical calcado na amizade e na espontaneidade dos movimentos, que, no entanto, encerram grande sensibilidade, grande sabedoria. Convém apreciar o quantum de conhecimento e improviso, de frescor e ciência, deleite e método, presentes em cada nota, cada modulação, cada melodia.

Sidi Touré, mestre do songhaï malinês, se junta a seus amigos Dourra Cissé (guitarra, voz), Jambala Maiga (kutigui, violão de uma só corda), Douma Maiga (kurbu, violão de três cordas), Jiba Touré e Yehiya Arby (ambos guitarra e voz). O resultado, Sahel Folk, encanta pela coesão, equilibrando sequências de imensa delicadeza com outras mais agitadas.

Faixas como “Bon koum” e “Artiatanat” apresentam uma vertente mais bluesy do songhaï, através de repetições melódicas e uma entonação reflexiva e espaçada. Somada ao canto sinuoso de Touré, criam um atmosfera árida e, ao mesmo tempo, alerta. Já o balanço agitado de “Djarii Ber”, com seus arpejos em loop, exala uma sonoridade acidentada, decorrente da execução veloz, imprecisa e cheia de suingue. Este elemento, o da "imprecisão programada", confere ainda mais pujança ao conjunto.

Mas é na sobreposição conflituosa do dedilhado dos diversos instrumentos, inclusive o kutigui e o kurbu malinês, que reside a magia do álbum. Em “Bera nay wassa”, a tensão entre o canto parcimonioso de Touré, com a imprecisão rítmica das cordas; em “Taray Kongo”, os ataques enérgicos das palhetas, bem como os diversos trechos que se alternam sobre a repetição da linha de contrabaixo. Nesses momentos, a música adquire um conjunto que só encontra paralelo nas jams extraordinárias de Ali Farka e Toumani Diabaté.

O teor de expresão do conjunto em Sahel Folk remete aos Cinco Batutas de Pixinguinha, os dois quintetos de Miles Davis, os grandes discos do Época de Ouro, e todos os ensembles que expuseram os mecanismos da amizade, da afinidade, da conformidade a um propósito musical, mesmo que eventualmente esta conformidade se traduza em uma sonoridade conflituosa. Equilíbrio não constitui um bom adjetivo para determinar a beleza do disco, pelo contrário. É justamente nessa relação desigual entre inclinações instrumentais diversas, mas que ao mesmo tempo conseguem travar um diálogo pleno, que Sahel Folk constrói um dos momentos mais belos da música malinesa nos últimos anos. 

Bernardo Oliveira

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

(crítica – disco) VA - Nigeria 70 “Sweet Times”: Afro-Funk, Highlife & Juju From 1970’s Lagos (2011; Strut Records, Reino Unido [Nigéria])



Após Nigeria 70: The Definitive Story of 1970’s Funky Lagos e Nigeria 70: Lagos Jump: Original Heavyweight Afrobeat, Highlife & Afro Funk vol. 2, a Strut Records dá continuidade à série lançando, muito oportunamente, este ano, Nigeria 70 Sweet Times: Afro-Funk, Highlife & Juju From 1970’s Lagos, sempre sob a curadoria do colecionador inglês Duncan Brooker. Esta compilação, assim como as anteriores, dá prova de que o cenário musical nigeriano do período contava mesmo com uma produção muito calcada na profunda ruptura estética deflagrada pelo funk, marco divisor inquestionável da linguagem rítmica da música negra moderna. Imediatamente após o seu advento, em meados dos anos 1960, como fundo sonoro de parte do movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos, sua influência veio a ser sentida até mesmo no exterior do seu espectro original, como, por exemplo, na concepção da música eletrônica alemã e de outras escolas teoricamente insuspeitadas. O variado conjunto evolutivo representado por gêneros como kraut rock, fusion, afrobeat, rap, dancehall – e tantos outros que vem se acumulando até hoje –, talvez por uma massificação que se julgue excessiva, faz do funk um fenômeno de origens insuficientemente estudadas. Mas essa pesquisa mais aprofundada do impacto da sua emergência na cena musical de então, e os seus desdobramentos na vida cultural em geral (dança, comportamento, indumentária, gíria etc), não vai ser feita aqui. Apenas se deve partir do princípio de que essa derivação da tradição soul, baseada na agressividade do singular senso rítmico sincopado do seu criador, James Brown, deita raízes na experiência musical ancestral d’África.

Assim, a partir do final dos anos 1960, por praticamente toda a extensão do leque musical do – perdão pelo clichê – “continente negro”, a voga funk veio confirmar esse atavismo no seu código “genético”. Principalmente na costa oeste, o então novo compasso do Godfather of Soul encontrava solo amigo nas culturas rítmicas dos povos Iorubá, Ibó, Fon, Agouda, Haussá etc. Uma identificação mais que imediata gerou artistas e bandas como Geraldo Pino & The Heartbeats (Serra Leoa) – influência inicial confessa de Fela Kuti –, A TODA PODEROSA Orchestre Poly-Rythmo de Cotonou (Benin), Amadou Balaké (Burkina Faso), Moussa Doumbia (Mali), The Funkees (Nigéria), Rob (Gana) Ernesto Djedje (Costa do Marfim) etc. Fora do eixo ocidental africano, não se pode deixar de citar o Matata, grupo queniano despudoradamente emulador de James Brown e os J.B.’s, em todos os seus mínimos trejeitos e cacoetes. (Como registro da louvação panafricana ao Mr. Dynamite, recomenda-se Soul Power, documentário sobre o festival musical realizado para promover a luta que decidiu o título dos pesos pesados entre Muhammad Ali [seu vencedor] e George Foreman, no Zaire [atual República Democrática do Congo], em 1974, que o teve como principal atração.

Dito isto, conclui-se que, n’África, ancestralidade musical é vanguarda. Indiferente a qualquer paradigma ocidental relativo às suas manifestações culturais, os mais distintos ritmos e sonoridades seguem se reproduzindo incessantemente por lá desde o advento do Homem. Quando se trata d’África, o conceito imposto de folclore – sempre sob a vigilância para com a integridade de uma pretensa “autenticidade cultural” das suas formas de expressão ditas primitivas –, é uma balela etnocêntrica legitimada em praticamente todos os âmbitos da reflexão e da informação de que se pode dispor. Prevalece no inconsciente e/ou na má consciência dos – favor atentar para o negrito das aspas – “formadores de opinião”, uma muito deformada ideia de que a moderna música africana é uma etapa avançada, já superada do atraso das suas origens, por conta de uma evolução considerada “necessária” que teria incorporado a sofisticação do aparato tecnológico contemporâneo. (É evidente que se diz “moderna música africana”, aqui, exclusivamente com base em critérios cronológicos.) Dispensável dizer que uma perspectiva como essa não se dá ao trabalho de conceber as múltiplas visões africanas sobre o mesmo fenômeno, já que, a ela, parece bastar mesmo a sua autossuficiência. As afinidades entre a produção estrangeira afrodiaspórica e o legado ancestral africano dão prova de uma interação que o discurso quase consensual sobre – generalizemos, sem medo, agora – o que quer que seja relativo à África, possa supor. Melhor e finalmente dizendo: a ponte África-diáspora negra tem na (re) apropriação (auto) transformadora do funk um dos capítulos mais frutíferos da história da black music e, por tabela, da vida cultural do século XX.

O terceiro título da série Nigeria 70 traz um relato sonoro precioso desse intercâmbio. E é até interessante que não figure nas suas 13 faixas nenhum afrobeat, estritamente dentro dos termos do célebre formato moldado por Fela Anikulapo Kuti, seu inventor avant la lettre (auxiliado, na tarefa, pelo baterista Tony Allen, responsável direto pelo seu compasso sui generis). Duncan Brooker é feliz ao não explorar um filão tão na ordem do dia (musical biográfico de Fela na Broadway, orquestras contemporâneas do gênero a granel por todas as latitudes do globo, pauta anacrônica cada vez mais assídua na mídia etc) para ceder espaço a outros ritmos do panorama musical da época. (Mas, reparar que o termo funk – um dos ingredientes do afrobeat – subintitula todos os álbuns da série.) Pode-se dizer que as variações “modernas” do highlife são o carro chefe da coletânea, tanto na sua versão mais guitarrada – caso das duas primeiras faixas: “Life”, de Moneyman and The Super 5 International, que soa como um soukous congolês, e “Henrietta”, de Ali Chukwumah & His Peace Makers International –, quanto na pegada soulfunky de “Ire”, de Don Isaac Ezekiel Combination, ou D.I.E (composto por três ex-Koola Lobitos, banda de Fela imediatamente anterior ao Afrika 70: Don Kemoah, Issac lasugba e Ezekiel Hart), que já compunha o repertório de Afro Baby: The Evolution of the Afro-Sound in Nigeria 1970-79, outra compilação, lançada em 2004 pela Soundway Records. Também segue essa vertente funkeada “Kinringjingbin”, dos versáteis Dr. Victor Olaiya’s International All-Stars (Olaiya, o “Gênio do Mal do Highlife”, para quem Fela e Tony Allen já tocaram, numa formação anterior da sua banda de apoio). E, claro, para compor o quadro estético do período, certas tonalidades psicodélicas contaminam a maioria dessas ramificações do highlife – em contraste, “Ama Mbre Ewa”, do mestre Etubom Rex Williams, pode ser considerada sua expressão mais “pura. A faixa mais impregnada pela batida do black norte-americano é mesmo a panafricanista “Unity Africa”, de Eji Oyewole, mas sem abrir mão da vasta gramática rítmica nigeriana. Em Sweet Times, as únicas composições representativas da juju music são “It’s Time For Juju Music”, de Admiral Dele Abiodun & His Top Hitters International – que demonstra o quão oportuno podiam ser sintetizadores e bateria eletrônica quando não caíam nos vícios típicos dos arranjos de desde a segunda metade dos anos 1970 aos 1980 (estes, seu auge) – e “Ajoyio”, a última faixa, de autoria de Chief Commander Obenezer Obey & His International Brothers, que apresenta uma sonoridade mais crua, cadenciada, contida – atmosférica, até. Nesta, as guitarras soando na distância, e a sessão percussiva, no seu momento solo de praxe, estão lá para referendar a cartilha do estilo que o consagrou. De Dele Abiodun, pode-se dizer que é próprio mesmo dele associar a um gênero pop tão elíptico, sinuoso e fragmentado nas camadas percussivas e nas guitarras (por sinal, aquela que faz a base em “It’s Time For Juju Music” tem uma levada funky já filtrada pelo afrobeat), o aparato identificado com a cerebralidade da eletrônica. Abiodun e Ebenezer Obey formam o triunvirato nigeriano da juju com King Sunny Ade, que talvez se encontre ausente por conta dos 15minutos e 11 segundos de “It’s Time For Juju Music”, de longe, a mais extensa do álbum. Já a instrumental “Viva Disco”, de Tunde Mabadu, é um afrodisco muito bom, porém, um tanto estranho à seleção do repertório, mas que não deixa de dar testemunho, mais uma vez, do influxo funk sobre toda essa geração. O referencial Bola Johnson, em “E Ma S’eka”, tem um registro vocal similar ao de outro gigante nigeriano, Sir Victor Waifo, que, infelizmente, também não consta na presente coletânea. O domínio das cordas, nesta faixa, é absoluto, daí, mais outra aproximação com o “Guitar Boy Superstar” (outro nobre qualificativo do auto-intitulado “Sir”). 

Sweet Times mantém a coerência e a qualidade da série Nigeria 70. Que ela prossiga a partir desse manancial longe de se esgotar que é a discoteca de Duncan Brooker...

Lucio Branco

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

(ensaio) A Ofensiva Cultural: Compartilhamento de Arquivos, Audiofilia e Capitalismo (parte I)




 
Duas realidades no atual estágio do capitalismo ficam a cada dia mais evidentes. Primeiro, a substituição da linguagem do marketing pela linguagem do design, como a principal depositária das estratégias de comunicação vinculadas à reprodução do capital. Não se concebe mais a relação entre produção e consumo como um fator relativo à libido direcionada, “consumista”, mas à própria libido em si. Assim, o ato de consumir não se resume à mera satisfação de vontades pontuais, mas refere-se à construção de uma identidade clara e distinta, ainda que eventualmente ilusória.[1]

Igualitariamente distribuída entre os indivíduos abstratos que o marketing, assim como a filosofia moderna, se ocuparam em consolidar, a inclinação desenfreada ao consumo passou a se amparar não em necessidades gerais, mas em um território estilhaçado e fragmentário, cujo imaginário refletiria escolhas e processos muito diferentes entre si. Assim, o fetiche da “auto-imagem” se apresentou como uma versão categórica do fetiche da mercadoria.

O efeito imediato deste deslocamento é o gap entre a linguagem universalizante do capital e a construção de particularidades pontuais. Advoga-se em favor de seu próprio raio cultural – costumes, hábitos, gostos, moral, supostamente quantificáveis – lançando mão de uma linguagem capaz somente de expressar-se através de “universais”. Os exemplos mais graves podem ser elencados a título de exemplo: "justiça", "consciência", "sexo". Francamente, quem endossaria hoje uma compreensão unívoca e universal destes termos, a não ser pela mais inconfessável inclinação etnocêntrica?

Por conseguinte, e este é o segundo fator, não interessa mais valorizar a mera universalidade. Antes, é preciso fazer jus a este processo de autoreificação localizada, o que leva o foco do capitalismo não para os consumidores universais, que figuram nas “pesquisas de mercado”, mas para os particularismos de cada tribo, de cada povo, território, enfim, de cada “cultura”.

Enquanto a fragmentação dos mercados serviu aos propósitos da grande indústria, ela se manteve como uma contingência do próprio mercado, na pior das hipóteses, um acidente de percurso. Mas agora, começa a lhe trazer problemas, pois tanto a aceleração da comunicação, como a crise financeira dos grandes centros, ocasionam o fortalecimento de outros centros, costumes, rituais, imagens, palavras e sons. Sua hegemonia não perdeu a validade, mas apresenta claros sinais de desgaste.

Como esta perspectiva pode introduzir uma série de contrasensos no âmago de uma geopolítica instável, trataram de domesticar o assunto. Assim, no início da década passada, vimos emergir o discurso multiculturalista, sob a forma de políticas públicas nos chamados países de primeiro mundo. Um multiculturalismo falso, porém investido de propósitos muito claros: tratava-se de uma última e vã tentativa de apaziguar os conflitos sócio-raciais, nivelando as expectativas em prol de uma “nova ordem mundial”.

Hoje, com a democratização radical da informação, contraditoriamente a “cultura” se tornou o último bastião entre os grupos empresariais hegemônicos, mas também em meio a cultivadas elites intelectuais europeias e americanas. Através de argumentos “culturais”, e não mais financeiros ou morais (“tu deves…”), empresários, políticos, jornalistas, pensadores e cientistas, defendem a restituição, a qualquer custo, do patrimônio cultural e financeiro que a internet solapou.

Com a significativa diferença de que antes, argumentavam em favor da indústria – como no caso de Fred 04, no Brasil ou Lars Ulrich, baterista do Metallica, nos EUA –, compreendendo que ao menos ela sustentava condições mínimas de produção: “ruim com ela, pior sem ela”. Mas esta argumentação somente expôs o desdobramento das contradições do capital, que anuncia alegremente “a banda larga mais rápida do mundo”, mas busca desesperadamente regular a troca de informação na internet. Trata-se de uma reação à modulação do valor da mercadoria, que se apresenta sob o seguinte paradoxo: tornou-se maleável em relação à cultura local, em desacordo com regras impostas pela linguagem universalizante do mercado.


Bernardo Oliveira

[1]  Como na perspectiva ordenadora do jornalista e designer David McCandless, que trabalha com os chamados Dataviz, gráficos multicoloridos nos quais cada cor exprime o resultado de pesquisas e estatísticas. Através desses “mapas”, McCandless tem por objetivo “retirar o véu de algumas conexões que estavam encobertas pelo excesso de informação que às vezes não conseguimos interpretar”, e completa: “mapas nos ajudam a achar caminhos quando estamos perdidos, (..) como um guia que permite navegar através dele. Você acaba engajando as pessoas através de um fascínio visual. E isso é lindo – e muito poderoso”. Assim, o jornalista suprime os conflitos e as nuances do jogo político, para favorecer a produção de um desenho informacional redutor, achatando a realidade complexa das coisas, em favor de maior compreensão. Cf.: http://blogs.estadao.com.br/link/informacao-conceito-desenho/

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

(crítica – disco) Zomby – Dedication (2011; 4AD, Reino Unido)



No primeiro disco, Where Were U in ’92, o misterioso Zomby compôs um comentário arrojado sobre a cena eletrônica inglesa dos anos 90. Reduzindo a pluralidade de vertentes que marcou o período a alguns elementos padronizados (timbres, samplers, patterns rítmicos, etc.),  obteve uma sonoridade “crítica”, voltando o olhar simultaneamente para o passado e o futuro. Where Were U in ’92 era um álbum conceitual, rigoroso ao restringir o número de referências musicais a uma linhagem bem delimitada (o UK garage, o techno, o drum’n’bass), mas com fôlego e timbres de século XXI.

Sem recair em revisão ou reapropriação, mas como os mosaicos compostos por velhos ladrilhos, Zomby recriou padrões da eletrônica inglesa, em um processo de vivificação. E como a combinação de velhos mosaicos, Where Were U in ’92 possui também a leveza democrática do colorido difuso, revelando o talento especial do autor para a composição de temas e melodias extremamente palatáveis, mas que em nenhum momento se tornam vulgares ou desinteressantes. Com essas duas particularidades, a releitura e a leveza, Zomby fez um dos discos mais surpreendentes de 2008.

Não parece muita coisa afirmar que Dedication repete as duas características bem-sucedidas do primeiro álbum. Pois é o que de fato acontece, com algumas diferenças substanciais. Primeiramente, o disco é mais fragmentário, não prima pelo rigor conceitual do anterior. Where Were U in ’92 segue um fluxo comum, ao passo que Dedication alterna variações mais evidentes de volumes e bpms.

Mas o que o diferencia consideravelmente é o fato de que suas referências atravessam mais de duas décadas de música eletrônica. A matéria-prima extrapola uma época específica e engloba não somente os anos 90, mas o que derivou daí, nomeadamente o dubstep (“Things Fall Apart”, com participação de Noah Lennox), o witch house (“Witch Hunt”), o wonky (“Vortex”), o techno (“Riding With Death”), o chiptune (em todo o disco, mas especificamente em “Digital Rain”), o dancehall digital (“Mozaik”) e outras que desafiam nossa capacidade de citar rótulos. O drum'n'bass não poderia faltar, responsável pela tensão psicológica de “Florence”, a faixa que mais opera com as variações de volume na mixagem.

Diversificando suas fontes, Zomby também variou no cardápio. Enquanto Where Were U in ’92 era disco de festa, que apostava em um continuum massivo de batucada digital, Dedication traz faixas mais lentas, reflexivas quase ao ponto de soarem com a parcimônica ambient (sobretudo em “Vanquish” e “Basquiat”), harmonias e texturas mais trabalhadas, construídas com o mesmo senso milimétrico do anterior. E tudo sublimado por uma consciência pop expressa em melodias e batidas cativantes, que tornam Dedication uma audição mais do que agradável. Não deixa de admirar esta verdadeira contradição: uma capa com cara de bula de remédio, uma identidade incógnita, e o pop como profissão de fé, com a única intenção de fazer dançar.

Bernardo Oliveira

terça-feira, 6 de setembro de 2011

(crítica - disco) Tinariwen – Tassili (2011; V2, Reino Unido [Mali])




















 








Para manter a escrita, compareceu à apresentação do Tinariwen, grupo tuareg do Saara, dentro do festival Back2Black, na Estação Leopoldina, no último 26 de agosto, o paraquedismo vocacional que parece definir em muito o perfil da audiência de shows de artistas estrangeiros – relativa ou inteiramente – desconhecidos que aportam no Rio de Janeiro. A julgar pelo comportamento de parte expressiva do público que compareceu ao show que fez parte da agenda carioca do grupo liderado pelo enigmático Ibrahim Ag Alhabib, o que não era claro e ofensivo desprezo pelo que se passava sobre o palco (gritos de “Macy Gray! Macy Gray!” – artista a se apresentar na sequência – ouviam-se incomodamente), soava apenas como curiosa expectativa por um exotismo kitsch de terceira ao qual, nossos homens em Bamako, em nenhum momento, quiseram corresponder. Queríamos crer que São Paulo os recepcionaria diferentemente, até sabermos que o grosso do público presente a sua apresentação no Bourbon Street Music Club, meio que repetindo o Rio, estava mesmo lá pela atração que fecharia a noite: o soulman contemporâneo Aloe Blacc. Só ignoramos se as manifestações de impaciência e rancor foram no mesmo diapasão que as registradas entre o público carioca...

Porém, no Rio, os músicos nômades do Saara multifronteiriço, e por isto, sem nacionalidade formal definida (eles tanto podem ser originais do Mali, Níger, Argélia etc), comprovaram pairar acima de tudo isso. Bastou adentrarem o palco para provocarem um semi transe de por volta de uma hora, mestres que são na arte da Distância e do Alheio. Sorte dos que se deixaram hipnotizar. No seu palco, tudo compõe a cena visual-sonora do Sahel: a clássica indumentária de turbantes que praticamente só deixam os olhos à vista, danças hipnóticas, dedilhados que davam a partida em todas as músicas etc. Mas talvez apenas os iniciados no grupo tenham dado pela falta das backing vocals e seus trêmulos trinados.

Por que evocar tudo isso no início de um texto destinado a analisar criticamente Tassili, o último álbum do Tinariwen? Mais do que recriminar certos equívocos da recepção em geral ao tipo de música do grupo, entre nós, busca-se, aqui, compreender a surpresa que Tassili consegue provocar no seu público ouvinte, por mais atento e seleto que este possa – ou se julgue – ser.  

Em Tassili, o flerte com a atualidade pop/rock é avalizado por algumas parcerias interessantes. (A veterana Orchestre Poly-Rythmo, de Benin, ano passado, talvez tenha lançado a tendência desse encontro geracional/intercontinental ao convidar Paul Thomson e Nick McCarthy, do Franz Ferdinand, para uma grata participação em “Lion is Burning”, última faixa do seu último disco de estúdio, Cotonou Club.) A primeira parceria, em Tassili, é em “Imidiwan Ma Tennam”, que abre o disco trazendo Neils Cline, guitarrista do Wilco. A terceira faixa, “Tenere Taqqim Tossam”, conta com o vocalista Tunde Adebimpe e o guitarrista Kyp Malone, do nova iorquino TV On the Radio. Sem pudor – e por que deveria tê-lo, se mencionaremos, agora, uma referência fundamental? – Adebimpe pastichiza o vocal de Damon Albarn (Blur, Gorillaz, The Good, the Bad and the Queen), não coincidentemente idealizador de Mali Music, projeto de 2002 em que se pôs ao lado de músicos provavelmente conterrâneos da maioria do line-up do Tinariwen. Demérito algum nisso, afinal, tal aproximação demonstra que Adebimpe é capaz de um registro que foge ao inusitado do timbre e das inflexões soul que caracterizam o vocal à frente da massa instrumental do TV On the Radio. Além de dar prova de versatilidade, também sugere que dispõe de uma discoteca digna de consulta. Na quarta faixa, “Ya Messinagh”, os convidados do Dirty Dozen Brass Band, de Nova Orleans, sopram na medida. Não é mesmo à toa que o Tinariwen venha sendo saudado por medalhões tais como Santana, Robert Plant, Bono e o próprio Damon Albarn. Em tempo: a delicadíssima “Walla Illa” não tocará na sua estação predileta. Azar o seu.

O material promocional do lançamento de Tassili traz um depoimento de Albarn que diz não ser necessário dominar o tamashek, o idioma tuareg, para perceber a densidade do seu conteúdo sonoro. (Impossível não concordar. A saber: a maioria das letras versa sobre a resistência da cultura tuareg, e a desolação poética que o Saara inspira – há tradução para o inglês, no encarte do CD.) Mas também se diz, no release de Tassili, que o grupo volta a abraçar as raízes da sua cultura musical por se tratar de um trabalho predominantemente acústico, ao contrário dos álbuns anteriores, em que, supostamente, as guitarras e os arranjos mais para o rock assomam. Que se diga: não é isso. Por antítese, lembremos mais uma vez das parcerias, neste álbum, com artistas que compõem o que há de mais contemporâneo dentro da cena contemporânea (talvez mais no sentido estético que cronológico). No caso do “blues do deserto”, gênero assim batizado para definir a sonoridade do Tinariwen e congêneres, tais como Group Bombino, Group Doueh, Group Inerane etc, a tradição está sempre lá. Tal é a singularidade desta tradição musical de tão árida paisagem – com um padrão rítmico e uma estrutura marcada por pausas abruptas e a retomada da linha melódica, sempre na mesma toada –, que fica invalidado, por gasto, o argumento do regresso às origens. A guitarra é um instrumento fundante dessa cultura musical, não importando qual o rótulo que esta receba. Que ela seja produto da modernidade, não se questiona, por razões lógicas (o Tinariwen foi formado em 1979), mas o que é curioso é que ainda se fique insinuado, em comentários assim, mesmo que involuntariamente (e, claro, é este o caso), que ainda possa haver, por aí, uma essência musical impermeável à “má influência” deste artefato ocidental, cuja permissão – ou não – de uso, já foi tema de tanto debate rasante e inútil, nos 1960, em cenas como a da dita MPB, ou do folk norte-americano. Naturalmente, a opção pelos arranjos acústicos em Tassili explica a suavidade do momento atual do Tinariwen (seu líder trocou o violão pela guitarra no último quarto do show, no Rio), mas onde o folclore entra nisso é questão para se deixar mesmo aos raciocínios mais à mão. Portanto, quanto a essa questão de que, do ponto de vista formal, as raízes do Tinariwen estariam mais preservadas neste álbum, só podemos mesmo dizer, delas, que são tão fugidias ao nosso conhecimento quanto o itinerário dos seus supostos “guardiões” pelas infindáveis dunas do Sahel. O que, queremos crer, só confere mais interesse ao material que ouvimos.

Os vocais do grupo estão mais brandos e afinados que nunca em Tassili – a contenção de Alhabib ao microfone revela controle total sobre tudo o que paira ao seu redor. Os fraseados invariavelmente rotulados como “mântricos” pela crítica, o tempo peculiar da percussão enxuta, reduzida ao essencial, e a referida disposição em não corresponder ao anseio por exotismo por parte do mercado musical no qual cada vez mais o grupo vem ingressando, dentre outras particularidades, estão todos no álbum, a comprovar a fidelidade de sempre à sonoridade do Tinariwen. Um dado curioso: as sessões de gravação de Tassili foram realizadas numa região do Saara dentro da fronteiras da Argélia, e não no Mali, como se pretendia originalmente, por uma questão de segurança para com os músicos convidados.

Mas eis o que queríamos dizer desde a primeira linha do texto, e talvez não tenha ficado tão claro: baixem ou comprem Tassili. É mais que fundamental.

Lucio Branco

domingo, 4 de setembro de 2011

(artigo) A Música Pós-Industrial Brasileira

(Artigo publicado hoje, 04 de setembro, no Diário do Nordeste, de Fortaleza)  

Crítico de música traça um paralelo histórico das últimas mudanças ocorridas na música brasileira. Ele destaca alguns dos motivos e personagens que vêm ajudando a definir o cenário atual

Em "Incidente em Antares", Érico Veríssimo descreve a saga de duas famílias que disputam o poder no Sul do Brasil: dois lados de uma mesma moeda. Trata-se de um dos romances mais sarcásticos da literatura brasileira, que denuncia, entre outras vicissitudes, a tendência nacional em reduzir a pluralidade de conflitos a algumas correntes predominantes, geralmente opostas. De forma semelhante, faz parte do ambiente intelectual brasileiro o hábito de perceber o mundo através da força embriagante das oposições simétricas. Esta tendência migrou para a República, e perdura nos dias de hoje, ainda que mal das pernas. Os desmentidos cotidianos evidenciam que as contradições brasileiras são mais intrincadas do que os "fla-flus" a que estamos habituados, principalmente no plano da cultura.

Foi assim que, durante o Festival da Canção de 1967, criou-se uma divergência entre o grupo tropicalista e os artistas que catalisavam o interesse das correntes nacionalistas de esquerda, simpatizantes do legado da Bossa Nova e do Centro de Cultura Popular da UNE. De um lado, Caetano, Gil, Os Mutantes; do outro, Sérgio Ricardo, Edu Lobo e Chico Buarque.

O filme "Uma Noite em 67" pôs lente de aumento sobre esse evento, trazendo à tona uma perspectiva mais heterodoxa. Ao ser vaiado, o cantor Sérgio Ricardo quebrou seu violão à moda de Pete Townshend, o roqueiro Roberto Carlos cantou um samba ("Maria, Carnaval e Cinzas") e mesmo o jornalista Sérgio Cabral, jurado do concurso e notório defensor das "glórias nacionais", rendeu-se aos encantos da guitarra elétrica…


Contudo, no calor do momento — atiçada pela intervenção da TV Tupi e da conturbada situação política da época -, a expressão "chicolatria" foi criada, se não me engano, pelo poeta Augusto de Campos. É evidente que não se trata de uma crítica à obra de Chico Buarque, mas à sua cooptação pela xenofobia "avant la lettre" que impregnava a mentalidade de setores da esquerda brasileira.

A "chicolatria" não só indicava o caráter do ambiente cultural que elegeu Chico Buarque de Hollanda como o oponente adequado às incursões tropicalistas, como também ressoava um prolongamento do conservadorismo nacionalista, outrora alinhado a correntes políticas em nada progressistas - o Integralismo, por exemplo.

MPB
As décadas seguintes, porém, mostraram que entre Chico Buarque e os tropicalistas não havia exatamente uma distância ideológica. Chico e Caetano gravaram discos e programas de TV, declararam admiração mútua, e seus álbuns, diversos na forma e no conteúdo, foram abrigados sob um rótulo vago, mas apaziguador e comercialmente adequado: MPB.

Há muito que se observa no ambiente intelectual brasileiro, particularmente vinculado aos estudos culturais, a necessidade de um maior enfrentamento das questões que surgem com a velocidade das inovações técnicas e científicas. Ficamos confortavelmente ancorados em um território de temas consolidados, deixando de lado o profundo caráter ideológico de siglas como a MPB e a dinâmica da atualidade.

Não há dúvidas de que os acontecimentos ocorridos durante a década de 60, ainda hoje fornecem as balizas para quem deseja pensar a música no Brasil - quando se fala, por exemplo, em "samba de raiz" em oposição ao "samba paulista", supostamente mais comercial. Algumas vezes, tenho a sensação de que aquela noite de 67 ainda não acabou, mas, ao mesmo tempo, ela parece não só distante, como também desproporcional em relação à música que é composta, gravada, produzida e veiculada hoje no Brasil.

Contexto atual
A última década viu surgir uma série de procedimentos e condições de produção musical, alimentadas pelo vertiginoso desenvolvimento dos programas de gravação e edição digital. Pois este aparato técnico ocasionou um período extremamente fértil e controverso da produção musical brasileira, cujo desenrolar aponta para reconfiguração das relações de poder e da paisagem estética que vigoraram no País até o fim do século passado.

O surgimento dos estúdios caseiros (home studios) permitiu que muitos artistas gravassem seus trabalhos sem, necessariamente, assinar contrato com uma gravadora. Nordestinos e sulistas não são obrigados a migrar para o Sudeste, como nas décadas passadas, mas gravam em seu próprio território, utilizando-se das referências locais.

Pouco depois, veio a internet fechar o ciclo virtuoso: além de produzir, o artista ainda pode negociar seu trabalho diretamente com o público. Parece evidente que esta safra de músicos se desenvolve em uma época tomada pela influência da internet, pela acessibilidade dos equipamentos digitais, e por trocas culturais antes inviabilizadas pela presença massacrante da indústria fonográfica.

Esta estrutura independente, aparentemente idealizada, pode ser verificada não somente no grande número de selos independentes e artistas que administram o próprio trabalho, mas também no leque "geomusical" que se abriu nos últimos dez anos. A música brasileira atual é fragmentária e não comporta as velhas oposições da chamada MPB. Ela ainda é território de conflitos, mas localizados de forma mais democrática e, portanto, mais complexa.

Produções
Surgiram gêneros populares, marcadamente híbridos, como o tecnobrega de Gaby Amarantos e o funk "tamborzão" de MC Catra. Manifestações antes circunscritas a seu local de origem, passaram a aparecer no âmbito nacional, representados pela guitarrada paraense dos Mestres da Guitarrada, o carimbó do saudoso Mestre Verequete e o Jongo da Serrinha, no Rio de Janeiro. Digna de nota a atuação do Circuito Fora do Eixo, rede de trabalho que nasceu da confluência de produtores das cidades de Cuiabá, Rio Branco, Uberlândia e Londrina, cujo maior representante é a banda de rock instrumental cuiabana Macaco Bong.

Como consequência da profusão de fontes sonoras presentes na internet, advindas da Europa, Ásia, América Latina e, sobretudo, da África, não é incomum escutarmos combinações entre o afrobeat nigeriano e o maracatu de pernambuco - como no caso do Nação Zumbi. Ou mesmo uma releitura dos toques de candomblé, com o sotaque eletrônico do baiano Carlinhos Brown e seu álbum Candombless. Ou ainda o avant-rock do paraibano Burro Morto, responsável pelo excelente "Baptista Virou Máquina".

E mesmo no Sudeste, surgiram artistas, grupos e coletivos apresentando propostas diversificadas. Entre eles, Romulo Fróes, os coletivos Hurtmold e Instituto, os rappers independentes como Quinto Andar, Criolo e Emicida, o paulistano Metá Metá e o carioca Do Amor. Note-se que essa geração não carece dos habituais conflitos com a geração anterior, como ocorreu com o "BRock" dos anos 80. Pelo contrário, nomes como Chico Buarque e Caetano permanecem plenamente compatíveis com as propostas estéticas da atualidade.

Pode-se criar objeções quanto à sua amplitude e potencial emancipatório, mas não há como negar que está em curso um processo de descentralização criativa na geopolítica da produção musical brasileira. O eixo produtivo se deslocou do sudeste para privilegiar outros mercados e aportes culturais, configurando o que pode ser chamado de período "pós-industrial" da música brasileira.

Bernardo Oliveira

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