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sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

“memorable and forgettable”: notas sobre o silêncio ensurdecedor























_o hábito, como a fortaleza do gosto, nos leva a crer que o ruído interfere a fluência do ecossistema sonoro no qual estamos imersos. como é possível então compreender a frase de david toop, segundo a qual “o silêncio é uma espécie de ruído”? o regime de tolerância sonora ao qual estamos habituados produz a falsa sensação de estabilidade, de forma que qualquer corpo estranho induz à sensação de interferência. neste regime, alguns sons são estraga-prazeres, tornam-se corpos estranhos e ameaçadores, pequenas interposições entre nossos hábitos e a cornucópia sonora que transborda dos gadgets eletrônicos, dos meios de transporte, do som das máquinas, dos cientistas do ritmo. o hábito naturaliza de forma particular alguns desses sons, atualizando-os na escala de aceitação e tolerância do gosto médio vigente. a mobilidade da percepção é capaz de embaralhar o sentido estático que a linguagem pretende impor à experiência, produzindo o costume.

_em 2013, por exemplo, kanye west, m.i.a. e justin timberlake se utilizaram de sonoridades que há alguns anos não seriam toleradas na faixa comercial. a noise music não é algo tão recente, mas começa agora a figurar pelas bandas cariocas a ponto de recebermos agora em dezembro um festival de música de “ruído” (organizado por j-p caron e cadu tenório). por outro lado, acostumamo-nos a pensar o ruído, o barulho, como uma matéria que além de produzir interferência, se exprime em altos volumes. entretanto, o mesmo indivíduo que se aflige com o ruído, que não se deleita com a chamada noise music, tolera muitas vezes os altos volumes que caracterizam a masterização do cinema e da propaganda contemporâneas. este alargamento indica que som, silêncio e ruído são conceitos relativos, em perpétua mobilidade no plano do sentido e da experiência. o silêncio é uma espécie de ruído, na mesma medida em que o ruído pode se manifestar como uma espécie de silêncio.

_a bossa nova e, particularmente, a música de joão gilberto, foram encaradas na maioria das vezes pela historiografia e pela crítica musical brasileiras como uma operação sobre o tecido estável do silêncio. john cage e chet baker são evocados quando se fala de joão gilberto, mas para toop, joão gilberto é um “noiseiro” por definição. os ruídos produzidos por sua instrumentação e dicção singulares não são poucos, nem imperceptíveis: o dedo que se arrasta sobre as cordas do violão, a variação de volume e dinâmica na suspensão das cordas, os estalidos produzidos pela boca, gerados pelo descolamento da língua no palato, os ruídos interjetativos que ele interpõem entre os versos como forma de ressaltar o balanço do violão. ruídos em volume baixo, que se interpõem entre a sensação de estabilidade e o desgosto pela interferência, ambos destituídos da significação imprecisa que a linguagem lhes confere. para além do ruído e do silêncio, há a experiência.

_a música hoje não é somente “experimental” porque o artista supostamente trilha caminhos desconhecidos ou porque o publico é desafiado, desviado do costume. a arte nos últimos duzentos anos, mesmo a arte produzida no âmbito da cultura de massas, é experimental por definição, desprendendo-se da representação mágico-religiosa e ramificando-se sobre a diversidade da indeterminação individual. não se explica ou se reduz conceitualmente a classificações e categorias, nem se deixa penetrar simplesmente pela densidade discursiva. pensar/produzir/fruir música hoje é uma operação complexa e ao mesmo tempo automática, comunhão irregular entre o singular e o coletivo que reinvindica violenta e incessantemente a experiência de imersão. um plano de comunhão onde autoria e fruição se embaralham de forma definitiva.



















_na última quarta-feira, dia 04 de dezembro, recebemos no rio de janeiro a apresentação de david toop ao lado do trio carioca chelpa ferro no festival novas frequências. momentos nos quais pudemos presenciar a prática, a demonstração exuberante do caráter imersivo no qual esta submetida a música — e a arte — contemporânea. não se trata de algo que se possa atribuir a qualidade de “vanguarda” ou avant-garde, como que para distingui-la da cultura de massas; também não se pode falar de “música experimental”, tamanha a precisão dos gestos, dos movimentos, da execução. precisão esta que já não é fruto de experimentação, mas do adensamento progressivo de certas práticas, usos, conexões, sentimentos. durante a apresentação, lembrei por diversas vezes do que certa vez me disse fernando torres, artista e curador, responsável pela espaço/loja de disco plano b, na lapa: “eu não faço música experimental, pois sei exatamente o que estou fazendo.”

_imerso em absoluto silêncio, toop se movimenta pelo palco. encontra seu assento e saca o violão. dedilha uns acordes e interage com os sons que são emitidos por seu lap top. arranha a pele de uma caixa de bateria com gravetos, quebra-os, esmaga-os, minúcias sonoras captadas por um microfone ultra-sensível. o computador prossegue emitindo uma gama sonora indistinta, que tanto pode ser resultado de síntese digital, gravações de campo, sons naturais ou library music. duas flautas, uma guitarra preparada tocada com gravetos e baqueta de feltro, miuçalhas (moedas, pequenos sinos) completam seu aparato instrumental. texturas, diálogos improváveis entre ruído e silêncio, silêncio e ruído embaralhados, reavaliados em um horizonte que já não pode ser reduzido ao âmbito “sonoro”, mas extrapola a arte e se traduz no corpo, nos afetos, nas imagens, ate mesmo no paladar…

_com seus instrumentos “inventados”, o trio carioca chelpa ferro contribuiu decisivamente para aumentar a densidade sonora e o sentido abrangente da experiência de improvisação proposta por toop. luiz com sua guitarra tocada à moda de uma cítara; sergio utilizando primeiro o ebow, e depois um instrumento indiano apelidado como “bina”; barrão tocando o “ruim”, uma lata de lixo com cordas de cello amplificadas executada com o arco. uma intervenção suave e perspicaz de um trio capaz de criar espessas camadas de ruídos, mas que embarcaram na onda de toop, optando pelo diálogo com a fluidez acidentada da “toopografia”.




_silêncio e ruído são categorias móveis, operadas no amplo horizonte sonoro elaborado por toop e o chelpa. densidade é a palavra, mas uma densidade que não se deixa reduzir sobre nenhuma certeza discursiva. a música de chelpa e toop reivindica do ouvinte a entrega, a comunhão a que me referi acima. o espectador carregado de certezas quanto àquilo que pensa e sente a respeito da música ou do som, se viu obrigado a deixá-las de lado por uma hora e dez minutos. uma apresentação memorável e, ao mesmo tempo, “esquecível”, como ressaltou o próprio toop, logo ao sair do palco. memorável pela experiência, pelo teor demonstrativo, pela beleza exuberante. “esquecível” por nos jogar de forma implacável no oceano do som.

Bernardo Oliveira
Fotos: Eduardo Magalhães | I Hate Flash

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Chelpa Ferro – Chelpa Ferro 3 (2012; Mul.ti.plo, Brasil)























Conhecido pelas instalações e intervenções que desenvolve no território da sound art, o Chelpa Ferro chega ao terceiro disco invertendo uma das premissas centrais de seu trabalho. Até então os limites do som e dos materiais empregados foram tematizados através de instalações, performances e demais circuitos intersemióticos — como “Autobang” (2002), no qual o trio destruía "percussivamente" um Maverick 74', com o auxílio de Laufer, Dado Villa-Lobos, Domenico, Bacalhau e Leo Monteiro. Desta vez, estes mesmos circuitos fornecem subsídios para que o som ocupe um espaço central. Chelpa Ferro 3 privilegia a construção de um discurso elaborado a partir do aspecto sonoro das obras, valendo-se de sua interação com o improviso de instrumentistas afinados com a proposta do coletivo.

Por exemplo, na primeira faixa, “Mesa de samba” (2009), o som é gerado por um aparelho montado com máquina de costura, arame, molinete de pesca, mesa de madeira, caixa de bateria e dímer. Quando o circuito é acionado, agita o fio de arame de forma a percutir sobre a caixa, gerando um batuque aleatório, realçado pelo zumbido da máquina. Por cerca de doze minutos, as guitarras de Arto Lindsay e Pedro Sá redobram a irregularidade das configurações rítmicas, conduzindo a tensão do improviso através da utilização de microfonias, acordes soltos e ruídos.

As faixas seguintes seguem a mesma construção conceitual, explorando a interação entre o aspecto sonoro das instalações e o improviso dos músicos. Em “Microfônico” (2009), com a participação do violoncelista Jaques Morelembaum, a máquina é composta por motor, trilho, microfone, amplificadores e vasos; à medida que os microfones pairam sobre a boca dos vasos, captam as reverberações internas e geram microfonias. Percebe-se que a estratégia de improvisação do instrumentista responde às microfonias e reverberações provenientes da instalação, gerando justaposições harmônicas e frequências incomuns.

Percutindo trinta sacolas plásticas contra a parede, comandadas por motores, cabos e um circuito eletrônico apelidado como “cabeção”, “Jungle Jam” (2008) é dos momentos mais instigantes dos cinquenta e um minutos do trabalho. E isso graças não só à sonoridade gerada pelo engenho conceitual da máquina, mas ao diálogo entre Kassin e Berna Ceppas. Munido por seu contrabaixo, Kassin imprime uma dinâmica marcial sobre à percussão frenética das sacolas plásticas, ao passo que Ceppas recorre aos sintetizadores e à lap steel guitar para explorar as mudanças de clima no transcorrer do improviso. Em relação às cinco faixas do álbum, esta é a que equilibra de forma mais perceptível e eficiente o conteúdo sonoro da instalação e a intervenção do improviso.

Por seu turno, “On – Off Poltergeist” (2008), com a participação de Chico Neves, se inscreve de forma contundente no aparente revigoramento das experiências sonoras limítrofes que marcam a música hoje — por exemplo, através da reabilitação do interesse pela otoacústica, a espacialização do som e de nomes como Maryanne Amacher e Eliane Radigue. A instalação consiste em sete auto-falantes extraídos de sete aparelhos de televisão, separados e dispostos em cada um dos extremos de uma sala, com a intenção de desvincular som e imagem. Neves manipula um Simmons SDS-V, recortando padrões rítmicos a partir dos sons emitidos pelos aparelhos. A aparência espectral — ou fantasmagórica, como indica o título — não compromete a preponderância do ritmo sobre os outros elementos. Dupla tendência reafirmada na última faixa, “Acusma” (2008), que conta com o baterista Stephane San Juan interagindo com trinta vasos de cerâmica em treze formatos e tamanhos diferentes, cada um contendo um auto-falante que reproduzem o solfejo editado e processado de cinco cantores. Os cantores entoam números ao invés de notas, com a intenção de estimular no ouvinte uma sensação “acusmática” — termo explicado no encarte, que designa uma “alucinação auditiva pela qual se julga ouvir vozes humanas ou instrumentos musicais”.

Não parece despropositada, ou mesmo casual, a referência à fantasmagoria inerente ao trabalho do Chelpa Ferro. E isto na medida em que ela remete tanto à efetividade material quanto à presença espectral da obra. Basta observar que entre a experiência de se presenciar as instalações, com todo o aparato audiovisual e sinestésico, e de escutá-las como um instrumento entre outros, é possível detectar diferenças relevantes. Esta característica indica que a instabilidade nas peças elaboradas pelo Chelpa Ferro não é meramente estilística, mas constitutiva e essencialmente criativa. Atribuindo o mesmo nome das obras às sessões de improviso, o grupo converte todo o seu trabalho em jogo aberto, sujeito a mudança de regras e mutações imprevistas. Além de uma audição fascinante pela riqueza de procedimentos e ideias, Chelpa Ferro 3 abriga uma perspectiva entrópica segundo a qual tudo opera por deslocamento e descontrole. Constitui-se, assim, não no isolamento ou reaproveitamento de aspectos das instalações, mas na desintegração da própria obra, sua fragmentação necessária e regeneração particular. 

Bernardo Oliveira