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segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Chelpa Ferro – Chelpa Ferro 3 (2012; Mul.ti.plo, Brasil)























Conhecido pelas instalações e intervenções que desenvolve no território da sound art, o Chelpa Ferro chega ao terceiro disco invertendo uma das premissas centrais de seu trabalho. Até então os limites do som e dos materiais empregados foram tematizados através de instalações, performances e demais circuitos intersemióticos — como “Autobang” (2002), no qual o trio destruía "percussivamente" um Maverick 74', com o auxílio de Laufer, Dado Villa-Lobos, Domenico, Bacalhau e Leo Monteiro. Desta vez, estes mesmos circuitos fornecem subsídios para que o som ocupe um espaço central. Chelpa Ferro 3 privilegia a construção de um discurso elaborado a partir do aspecto sonoro das obras, valendo-se de sua interação com o improviso de instrumentistas afinados com a proposta do coletivo.

Por exemplo, na primeira faixa, “Mesa de samba” (2009), o som é gerado por um aparelho montado com máquina de costura, arame, molinete de pesca, mesa de madeira, caixa de bateria e dímer. Quando o circuito é acionado, agita o fio de arame de forma a percutir sobre a caixa, gerando um batuque aleatório, realçado pelo zumbido da máquina. Por cerca de doze minutos, as guitarras de Arto Lindsay e Pedro Sá redobram a irregularidade das configurações rítmicas, conduzindo a tensão do improviso através da utilização de microfonias, acordes soltos e ruídos.

As faixas seguintes seguem a mesma construção conceitual, explorando a interação entre o aspecto sonoro das instalações e o improviso dos músicos. Em “Microfônico” (2009), com a participação do violoncelista Jaques Morelembaum, a máquina é composta por motor, trilho, microfone, amplificadores e vasos; à medida que os microfones pairam sobre a boca dos vasos, captam as reverberações internas e geram microfonias. Percebe-se que a estratégia de improvisação do instrumentista responde às microfonias e reverberações provenientes da instalação, gerando justaposições harmônicas e frequências incomuns.

Percutindo trinta sacolas plásticas contra a parede, comandadas por motores, cabos e um circuito eletrônico apelidado como “cabeção”, “Jungle Jam” (2008) é dos momentos mais instigantes dos cinquenta e um minutos do trabalho. E isso graças não só à sonoridade gerada pelo engenho conceitual da máquina, mas ao diálogo entre Kassin e Berna Ceppas. Munido por seu contrabaixo, Kassin imprime uma dinâmica marcial sobre à percussão frenética das sacolas plásticas, ao passo que Ceppas recorre aos sintetizadores e à lap steel guitar para explorar as mudanças de clima no transcorrer do improviso. Em relação às cinco faixas do álbum, esta é a que equilibra de forma mais perceptível e eficiente o conteúdo sonoro da instalação e a intervenção do improviso.

Por seu turno, “On – Off Poltergeist” (2008), com a participação de Chico Neves, se inscreve de forma contundente no aparente revigoramento das experiências sonoras limítrofes que marcam a música hoje — por exemplo, através da reabilitação do interesse pela otoacústica, a espacialização do som e de nomes como Maryanne Amacher e Eliane Radigue. A instalação consiste em sete auto-falantes extraídos de sete aparelhos de televisão, separados e dispostos em cada um dos extremos de uma sala, com a intenção de desvincular som e imagem. Neves manipula um Simmons SDS-V, recortando padrões rítmicos a partir dos sons emitidos pelos aparelhos. A aparência espectral — ou fantasmagórica, como indica o título — não compromete a preponderância do ritmo sobre os outros elementos. Dupla tendência reafirmada na última faixa, “Acusma” (2008), que conta com o baterista Stephane San Juan interagindo com trinta vasos de cerâmica em treze formatos e tamanhos diferentes, cada um contendo um auto-falante que reproduzem o solfejo editado e processado de cinco cantores. Os cantores entoam números ao invés de notas, com a intenção de estimular no ouvinte uma sensação “acusmática” — termo explicado no encarte, que designa uma “alucinação auditiva pela qual se julga ouvir vozes humanas ou instrumentos musicais”.

Não parece despropositada, ou mesmo casual, a referência à fantasmagoria inerente ao trabalho do Chelpa Ferro. E isto na medida em que ela remete tanto à efetividade material quanto à presença espectral da obra. Basta observar que entre a experiência de se presenciar as instalações, com todo o aparato audiovisual e sinestésico, e de escutá-las como um instrumento entre outros, é possível detectar diferenças relevantes. Esta característica indica que a instabilidade nas peças elaboradas pelo Chelpa Ferro não é meramente estilística, mas constitutiva e essencialmente criativa. Atribuindo o mesmo nome das obras às sessões de improviso, o grupo converte todo o seu trabalho em jogo aberto, sujeito a mudança de regras e mutações imprevistas. Além de uma audição fascinante pela riqueza de procedimentos e ideias, Chelpa Ferro 3 abriga uma perspectiva entrópica segundo a qual tudo opera por deslocamento e descontrole. Constitui-se, assim, não no isolamento ou reaproveitamento de aspectos das instalações, mas na desintegração da própria obra, sua fragmentação necessária e regeneração particular. 

Bernardo Oliveira

segunda-feira, 26 de março de 2012

(crítica - disco) Gal Costa – Recanto (2011; Universal Music, Brasil)
























“Viver é um desastre que sucede a alguns.” Tomo o verso escrito por Caetano Veloso como um elogio ao amor fati, um canto de júbilo pela existência, pela singularidade da arte, pela vida em seu caráter multiforme. Ora, em que consiste o “desastre” se não na própria incongruência entre o caos e a forma, restando somente o ímpeto de conferir sentido a um turbilhão que nos é, antes de mais nada, indiferente? Neste caso, o desastre não possui o significado de “catástrofe”, mas de algo que irrompe inevitavelmente, de um acontecimento inexorável. Aqui, Recanto quer dizer "re-cantar", refazer, recompor...

O primeiro álbum que Caetano Veloso produziu para Gal Costa, Cantar (1974), com Perinho Albuquerque, se inscrevia no refluxo londrino, a partir do qual ele e Gilberto Gil reconfiguraram suas posições no cenário da música brasileira. Lá se pode escutar a mistura de estilos (bossa, rock, soul, fado…) que caracterizou o Tropicalismo, bem como os compositores afinados com o mesmo legado (Donato, Jobim, Péricles Cavalcanti, Carlos Lyra, Mautner). Porém, percebe-se uma diferença importante. Nos primeiros discos, Gal experimentava consideráveis variações de registro, ora investindo na economia singela de Domingo (com Caetano, 67), ora esbanjando vigor e uma certa ironia, como nos dois discos homônimos de 69 e Le Gal, de 70. A pluralidade de interesses cara ao Tropicalismo contaminou seu canto até explodir no verdadeiro acontecimento que foi Gal a Todo Vapor, disco e show.

Ocorre que em Índia e, adiante, Cantar, estas variações deram lugar a uma estabilidade estilística, que conjugava seu timbre melífluo com energia e força de expressão. Pode-se dizer que até início da década de 90, o canto de Gal Costa manteve-se nesse registro, sem prejuízo para bons álbuns como Gal Canta Caymmi (1976) e Água Viva (1978). Desenho essa genealogia de seu canto para sublinhar algo que parece ter passado desapercebido em relação a Recanto. Muitos foram seus produtores, de Manoel Barenbein a Arto Lindsay, de Mazolla a Morelembaum, de Perinho Albuquerque a Waly Salomão, entre outros. Mas o canto de Gal Costa, me parece, sempre foi e ainda é um assunto para uma única pessoa: Gal Costa. 

Desta lista de produtores, o mais ousado e criativo é, sem dúvida, Caetano Veloso, que até por conta do laço de amizade, conhece sua biografia, compreende seu pensamento musical, o estágio no qual se encontra sua voz e, sobretudo, aquilo que Gal Costa de fato quer cantar. Em entrevistas, ambos manifestaram receio em relação à proposta de Recanto, cuja sonoridade se encontraria em sintonia com duas importantes cenas contemporâneas: a produção eletrônica e o improviso instrumental. Pela primeira vez em muitos anos, um trabalho de Gal Costa retoma o espírito experimental comum aos discos dos 60 e 70. Mesmo em relação a seu último disco digno de nota, O Sorriso do Gato de Alice (1993), produzido por Arto Lindsay, Recanto sobressai, pois trata-se não só de uma investida em outras sonoridades, mas na própria concepção estética de intérprete.  

As programações eletrônicas enxutas, contribuição fundamental de Kassin, casam perfeitamente com seu timbre grave e metálico, qualidade perceptível nas duas mais belas faixas do disco, “Recanto Escuro” e “Tudo Dói”. Além da presença de instrumentistas do calibre de Donatinho (teclado), Alberto Continentino (contrabaixo), Pedro Sá (guitarra) e Luis Filipe de Lima (violão de 7 cordas), Recanto conta com duas bandas cariocas especializadas em improvisação: o Rabotnik, no blues anômalo “O Menino”, e o Dupplex de Bartolo e Léo Monteiro na melancolia visceral de “Madre Deus”. Há que se notar também a inserção bossanovista da sugestiva “Mansidão”, com Morelembaum e Daniel Jobim. Recanto se afirma na harmonização entre universos aparentemente  distantes, mas que são singularmente unificados pelo canto de Gal.

Em termos temáticos, tal qual o último disco de Chico Buarque, o momento pessoal forneceu a matéria-prima a partir da qual Caetano elaborou as letras, misturando olhares e perspectivas: Caetano olhando para Gal em “O menino”, Gal respondendo a Caetano em “Recanto Escuro”, os dois se entreolham em “Mansidão” (que retoma a prática do canto como tema, tal qual em Cantar) e riem juntos no suingue sagaz de “Miami Maculelê” – cujo pulo do gato é o prato do samba de roda se fazendo de hi-hat do funk. 

Por fim, a visão segundo a qual Recanto é um disco “eletrônico” é evidentemente equívoca, mero subproduto do jornalismo e do marketing. Em Recanto, sobressai a forma do canto de Gal, criativamente adaptado a um cenário tomado por uma certa melancolia, pela batucada robótica e um conjunto de canções perceptivelmente esgarçadas pela intenção de dialogar com a aridez dos arranjos – às vezes nos lembramos de Third, do Portishead, outras da “cristaleira digital” de Björk...

Explorando nuances, alturas e possibilidades no registro mais grave, no sussurro, na exploração simbólica dos efeitos (como em "Autotune Autoerótico"), ou nas entonações minimalistas de “Neguinho” e da soturna “Sexo e Dinheiro”, Gal, mais uma vez, reinventou-se a si mesma. Sim, viver é um “desastre” que nos leva a experimentar encontros, máscaras e identidades. “Só deus sabe o duro que eu dei”, ela canta pelas palavras de Caetano. Ou seria Caetano poetizando, “palavreando” o canto expressivo e inigualável de Gal Costa? 

Bernardo Oliveira