sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Retrospectiva 2013: 12 funks (Marcelo Mac/Raoni Mouchoque)

MC Nego do Borel 




















Os funks cariocas que, segundo os organizadores, "fizeram o inferno girar em 2013." Lista elaborada por Marcelo Mac, da equipe Eu Amo Baile Funk e Rio Parada Funk e por Raoni Mouchoque, da Rádio Legalize. Algumas notas: o vocal anasalado de Tarapi; algumas letras não se preocupam tanto com a rima, mas com o ritmo; a infusão ragga do MC Romântico, o sotaque latino do Byano DJ, a tendência à mistura; prevalece a utilização do MPC, mas misturada a outras dinâmicas de discotecagem, como se pode observar nos "aquecimentos." Prevalece também os temas sexuais, mas a dupla MC Dollores e Fabinho Zona Sul fez lembrar o funk de protesto dos 80/90 com "Caso Amarildo." Eu acrescentaria o "funk cracodélico" de Mc Carol em "Bateu uma onda forte", mas de fato não parece tão popular quanto os que se seguem. Também ficou de fora o "funk ostentação" produzido em São Paulo, outra vertente passível de atenção. Devo agradecer ao Mac e ao Raoni pela força. Até 2014.   


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MC Cyclone - Sarra pra esquerda, sarra pra direita





MC Tchulin - Tira a mão de mim, deixa eu vacilar





MC Romântico - As novinha tão sensacional





Mc's Fanny e Boneko - É muito bom fazer na onda 




MC Tarapi - Novinha Safadinha





MC Marcelly - Bigode Grosso




MC Magrinho – Tom e Jerry




MC Nego do Borel - Cheguei no Pistão




Bonde das Maravilhas - Aquecimento das Maravilhas




Byano DJ Montagem



Aquecimento do Outro Mundo




MC Dollores & Fabinho Zona Sul - Caso Amarildo


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Raoni Mouchoque (Radio Legalize) e Marcelo Mac (Equipe EU AMO BAILE FUNK/RIO PARADA FUNK)



quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Retrospectiva 2013: 100 faixas (Bernardo Oliveira)

15 das galáxias


“Mind On” – Lonnie Holley (Keeping a Record of It. Dust-to-Digital, EUA)

























A brisa do Caribe, o Mardi Gras, o ambiente cultural do “black atlantic”, mas também a natureza exploratória da música negra diaspórica, o dub, o jazz, o Peru negro. Nos seis minutos de “Mind On” é possível deixar-se absorver por muitas informações, mas sobretudo pela voz agridoce de Holley, algo entre as articulações sinuosas de Horace Andy e o timbre anasalado de Aaron Neville. Batucada digital discreta (um sambinha?) e um teclado estranhíssimo (passarinho esquisito?), servem de base para a voz singular de Holley. Hipnótico e viciante.






“Passarinho Esquisito” – Passo Torto (Passo Elétrico. YB Music, Brasil)















Como bem observou Fred Coelho na crítica ao Passo Elétrico no Matéria, este passarinho não é o “Sabiá”, nem o “Passarim”. Diferente dos muitos passarinhos que povoam a MPB, este é “um animal transtornado”, “estuprador”. A canção, então, incorpora os transtornos obsessivos do passarinho, sua esquizofrenia e rara familiaridade. O contrabaixo marca o andamento, as guitarras distorcidas criam outras dinâmicas rítmicas, garantindo a presença do “Passarinho Esquisito” no rol de canções que desafiam algumas premissas da chamada MPB.






“Don’t Hold the Wall” – Justin Timberlake (The 20/20 Experience. RCA, EUA)



















Reza a lenda que Justin Timberlake chegou a combinar com Michel Jackson um retorno à altura do mestre. Sua morte interrompeu o projeto, mas a parte I de The 20/20 Experience traz uma abordagem arrojada e surpreendente da música de Michael. Com arranjo de Timbaland, “Don’t Hold The Wall” se organiza como um “serialismo pop”, ordenando blocos sonoros que se sucedem e se justapõe, em um procedimento que pode ser observado por todo o disco. Ressalto o efeito de transição obtido com a retirada da harmonia e alteração da batida.






 “LURK” – Chinese Cookie Poets + Zbigniew Karkowski (Hy Brazil Vol 2: New Experimental Music From Brazil; s/g, Brasil/Polônia)





























No ano em que a chamada noise music perdeu dois de seus mais maiores artistas, o polonês Zbigniew Karkowski e o japonês Akifumi Nakajima (Aube), o produtor Chico Dub escalou “LURK” para o volume dois da coletânea de inéditos Hy Brazil. Gravada em 2011, a faixa é produto de uma colaboração prolífica entre o trio carioca e o “noiseiro” polonês. Estruturada por um loop de baixo, “LURK” se impõe pelo diálogo conflitante entre as quebradas da bateria, a guitarra e os ruídos estridentes emitidos pelo lap top de Karkowski.






“Concrete” – Batillus (Andy Stott Remix) (12”) (Modern Love, Reino Unido)




















Há pelo menos três anos, Andy Stott lança algum material difícil de se ignorar. Ainda no início de dezembro, veio a público o remix que Stott produziu para a banda nova-iorquina Batillus. O estranho convite, vindo de uma banda de metal, surgiu após participarem de um mesmo festival nos EUA. Tudo bem que o peso do grave é uma característica marcante de seu trabalho, mas remixando uma faixa de metal, com direito a vocais de monstruosos e percussão digital retumbante, o produtor se revela a cada ano um artista imprevisível.





“A Tooth For An Eye” – The Knife (Shaking The Habitual. Brille Records, Suécia)





















Após o êxito de Silent Shout (2006), era de se esperar que o The Knife se esmerasse ainda mais em um artesanato pop eletrônico, fixando de vez sua presença no cenário mundial. Porém, Shaking Habitual realiza exatamente o que promete, particularmente em “A Tooth for an Eye”: andamentos em 3/4, percussões com sonoridades férreas e uma cantora peculiar. As más línguas falam em Dirty Projectors, mas trata-se de uma faixa surpreendente e poderosa de um grupo que contrariou expectativas.






“Love Is Lost” – James Murphy (Hello Steve Reich Mix) (The Next Day Extra EP. Columbia, Reino Unido/EUA)



















Nunca fui lá muito fã da DFA e mesmo do LCD Soundsystem. Por uma inflexão de época, que geralmente não é observada, superestima-se o poder festivo da disco music, o mesmo tipo de fascínio conservador devotado ao último disco do Daft Punk. No caso do “Hello Steve Reich Mix” que James Murphy produziu para a mais bela faixa do último álbum de Bowie, há muito mais do que disco music. Há a citação à “Clapping Music” de Steve Reich e a outras canções de Bowie, como “Ashes to Ashes”. Uma espécie de museu do futuro, articulando as muitas facetas de Bowie às muitas vanguardas nova-iorquinas.






“Let’s Play That” – Metá Metá (E Volto Pra Curtir – Tributo a Jards Macalé. s/g, Brasil)





































Gravada para a coletânea em homenagem a Macalé e a seu primeiro disco de 1972, a interpretação do Metá Metá para “Let’s Play That” é o produto de uma execução espontânea protagonizada por três músicos absolutamente conscientes do que estão fazendo. O trio abre espaço para a improvisação, há momentos em que a música cresce para reinar a absoluta cacofonia. E, no entanto, nada aqui parece fora do lugar. Corro o risco de soar injusto talvez com o próprio Macalé, mas esta é a versão mais poderosa de sua canção.





“The Last Unicorn” – Negro Leo (Tara. s/g, Brasil)

































“O delírio antitotalitário da cola de sapateiro. O estado sente muito.” Durante os levantes de julho de 2013, esta frase me veio à cabeça por muitas vezes. O delírio da cola de sapateiro é o impulso delirante da arte contra a ação repressora do capital (leia-se, do Estado). Mas “The Last Unicorn” comporta outras interpretações. Uma canção política que reivindica o poder do delírio através de uma arte violenta, enunciada aos berros. Canção-dispositivo, incendiária, cresce muito nos shows.






“Maxim’s I” – Julia Holter (Loud City Song. Domino, EUA)



















Os ruídos dos pratos de bateria crescem, um teclado celestial toma todo o espaço, talvez um mellotron, talvez cordas, não sei bem. Com dois minutos, um segundo momento, outra harmonia seguida de um interlúdio executado por quarteto de cordas. Em certos momento somos convocados à contemplação onírica, fluindo a profusão de ideias sonoras que Holter concentra em apenas seis minutos. A harmonia é vaga, enquanto sua voz flutua sobre os belos contrapontos e volutas orquestrais. Van Dyke Parks e Linda Perhacs são algumas de suas referências, mas, ano após ano, Julia vem confirmando que possui um discurso próprio.






“Sambaúba” – Kiko Dinucci, Thiago França e Serginho Machado (Dada Radio Sessions. s/g, Brasil)


































O que me fascina no trabalho de Kiko Dinucci é o fato de que reabilita certas tendências presentes na história da MPB (a partir dos anos 60, bem dito). Sua ferramenta é o punch e o punk, força e precisão. No caso de “Sambaúba”, duas tendências estão em jogo: o emprego dos parônimos com função rítmica, capaz de remeter ao trabalho de Djavan, Caetano e dos repentistas nordestinos. E o suingue roqueiro da formação em trio, semelhante ao balanço do primeiro disco de Macalé — com o saxofone de Thiago França substituindo o contrabaixo e a bateria de Serginho Machado combinando balanço e inventividade.





“Obvious Bicycle” – Vampire Weekend (Modern Vampires Of The City. XL Recordings, EUA)














































A quantidade de informações com as quais os membros do Vampire Weekend elaboram sua música pode até justificar a interpretação segundo a qual eles seriam uma banda presa ao passado. Noto apenas que as referências não são tão evidentes, tampouco a forma como eles se apropriam delas. “Obvious Bicycle” é marcada com “grilhões digitais”, em alusão à percussão que acompanha os cantos de trabalho gravados por Alan Lomax (produzido pelas enxadas, bem entendido). Também ouvimos inflexões da música afro-americana, litúrgica e profana (spirituals, doo wop, blues). Tudo isso sintetizado a uma melodia estritamente pop e exuberante, “Obvious Bicycle” é, para mim, a “canção” do ano.






“Fail” – Demdike Stare (Testpressing #004. Modern Love, Reino Unido)





















Em pouco tempo, Miles Whittaker e Sean Canty produziram faixas e discos muito diferentes. E no entanto, sustentaram um “caráter” para o Demdike Stare, ou seja, conseguiram experimentar em muitas direções, mantendo o conceito primordial: reproduzir/explorar o caráter eficaz da “música aplicada”, da library music e das trilhas sonoras, mas também buscando extrair novos procedimentos dos aparelhos e discos que eles adquirem incessantemente. Dos quatro volumes da série Testpressing, editada esse ano, muitas faixas poderiam figurar nessa lista, tais como “Collision” e “Primitive Equations”. Mas escolhi “Fail” por uma simpatia irresistível pelo ruído estridente, uma ladainha  simultaneamente incômoda e confortável.





“Gang Gang Riddim” – DVA (Mad Hatter. Hyperdub, Reino Unido)
























DVA é Leon Smart, produtor londrino que lançou ano passado o subestimado Pretty Ugly pela mesma Hyperdub que edita seu novo EP, Mad Hatter. As quatro músicas indicam uma inclinação ao maximalismo, desdobrando-se em uma série de variações rítmicas, sobretudo no andamento. Dialogando com os beats sintéticos do wonky, particularmente das dinâmicas aceleradas de Rustie, DVA faz de “Gang Gang Riddim” um verdadeiro achado do maximalismo de pista. Duas faixas rivalizam com "Gang Gang Riddim": “Xingfu Lu”, de Kode9 e “Gong”, do Four Tet.





“Konono Ripoff No. 1” – Dan Deacon (Domino USA, EUA)
























A sonoridade estridente, característica do trabalho de Dan Deacon, combinada às kalimbas igualmente estridentes do Konono No. 1. O resultado foi o 7” Konono Ripoff No. 1, composição que Dan Deacon já vinha tocando em alguns shows, e que foi editada em abril por ocasião do Record Store Day. No lado A, os bateristas Kevin O'Meara e Jeremy Hyman. No lado B, a versão instrumental, com Denny Bowen e Dave Jacober. Para Dan Deacon foi uma homenagem ao som grupo. Para nós, uma brincadeira mais do que acertada.





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+ 85 sinistras

“200.2” – Donato Dozzy
“A Cage of Stars” – Phil Niblock
“All Out Of Sorts” – Black Pus
“Amélias Polamilanesas” – Psilosamples
“Atherkal” – Etran Finatawa
“Azmari” – Mulatu Astatke
“Aztec Chant” – Peverelist
“Baby” – Walton
“Black Skinhead” – Kanye West
“Blood On The Cobblestones” (Feat. U-God & Inspectah Deck) – Ghostface Killah & Adrian Younge
“Blue Dub” – Moritz Von Oswald Trio
“Boarder” – Bambounou
“Calango” – Fudisterik
“Capetinja” – Porto
“Casamance” (with Ale & Khadim Mboup) – Jeri-Jeri
“Collision” – Demdike Stare
“Dankou” – Bassekou Kouyaté et Ngoni Ba
“De Donga à Doca” – Sombrinha
“Dew” – Ceticências
“Dismantle” – Morphosis
“Dream Phone VIP” – E.M.M.A.
“Electric Funk” – Traxman
“Eras” – Juana Molina
“Feel Beauty” – The Cyclist
“Finger Back” – Vampire Weekend
“Friday Mighty”  Deep Listening Band
“Galera da Laje” – Gang do Eletro
“Get It” – El-P + Killer Mike 
“Gong” – Four Tet
“Hard Love” – Marina Rosenfeld
“Havoc Devastation – RP Boo
“Ijiraq” – Dawn Of Midi
“In This Rubber Tomb” – Mudhoney
“Jamba” – Tyler, The Creator
“Javelin Unlanding” – Bill Callahan
“João Filipe” – Epicentro do Bloquinho
“Jubilee Street” – Nick Cave And The Bad Seeds
“Judge Jury and Executioner” – Atoms For Peace
“Last Famous Words”  The Ex & Brass Unbound
“Last Mistress” – Body/Head
“Lifetrax” – Florian Kupfer
“Listen and Wait” – Grizzly Bear
“Love Is Lost”  David Bowie
“Madwoman” – Cut Hands
“Makeshift” – The Cyclist 
“Manabadman” (feat. Spikey Tee) – Mark Pritchard
“Marching Time” – Gabriel Saloman 
“Montparnasse Derailment” – Ikue Mori & Steve Noble
“More Games” – Kowton
“Nah Ina It” – Paul St. Hilaire
“Niamey Jam” – Bombino
“Norbat Okelo” – Owiny Sigoma Band
“Nothing Is” – My Bloody Valentine
“Nozes” – Nanã Parú, Peter Gossweiler, Diego Dias
“Only 1 U” – M.I.A.
“over.load” – Frank Bretschneider 
“Pipocalipse” – Satanique Samba Trio
“Psychic Conspirators” – John Zorn
“Punk Authority” – Pete Swanson
“Q.U.E.E.N.” (feat. Erykah Badu) – Janelle Monáe
“Radar” – Marcel Dettmann
“Rollin’” – DJ Rashad
“Shading” – Senking
“Shoulda Rolla” – Pinch & Roska
“Sim Mestre + Kayoriver” – Vermes do Limbo
“Símbolo Sexual” – Passo Torto
“Slasherr” – Rustie
“So Pale It Shone in the Night” – The Stranger
“Spl9” – Autechre
“Still Life” – Oneohtrix Point Never
“Sun & Water” (feat. Lillian Blades) – Lonnie Holley
“The Death Of The Real” – Hacker Farm
“The Vastness Is Bearable Only Through Love” – Ensemble Economique
“Tiao Yue” – Chinese Cookie Poets
“Tunnel Vision” – Justin Timberlake
“Vem me colocar só um pedacinho” – MC Beyoncé 
“Voodoo and the Petrified Forest” – Rob Mazurek Octet
“Watermark” – Heatsick 
“Wenu Wenu” – Omar Souleyman
“What falls to the ground” – James Ruskin
“Where Do We Go From Here” – Charles Bradley
“Wipe” – µ-Ziq
“Worst Illusion” – Jam City
“Would I Whip” (Without Noticing) – Fire! 
“Xingfu Lu” – Kode9

sábado, 7 de dezembro de 2013

Elementos Arcaicos: à conversa com Stephen O’Malley























Como se alimenta a imaginação dos artistas? Como se estabelecem os métodos particulares dos grandes criadores? No caso de Stephen O’Malley, americano de Seattle, — e, creiam-me, estamos a falar de um grande criador! — esta equação não parece tão distante ou intangível. “Sempre fui fascinado por ouvir música, acho que é provavelmente a minha principal fonte de inspiração”, declarou à FACT Magazine PT, em entrevista por telefone. Músico, compositor e designer, O’Malley desembarca no Brasil esta semana para uma única apresentação no Sónar São Paulo, com seu projeto drone, o KTL. Uma oportunidade de ouro para assistir a um dos artistas mais prolíficos e decisivos do ainda jovem século XXI.

Aos 37 anos, O’Malley acumula um volume de produção monumental, que ultrapassa uma centena de discos. Como líder, criou bandas que desafiaram os limites do metal, o redefiniram como gênero e expandiram suas fronteiras: Sunn O))), Burning Witch, Khanate e o próprio KTL. Como membro, participa de projetos igualmente desafiadores como o Æthenor, sem contar as colaborações com Merzbow, Nurse With Wound, Boris, Jim O'Rourke, Oren Ambarchi, Melvins, entre outros. Sob a influência de uma banda conterrânea, o Earth, O’Malley adquiriu reconhecimento explorando nuances do metal, incorporando dark ambient, doom, drone e rock psicodélico às texturas rascantes das guitarras headbangers, tingido-as de um caráter cerebral e sombrio. Tal inclinação à experimentação, no entanto, alinha-se a uma percepção muito particular da música e do som:

“Ao longo dos anos, percebi a música como uma forma tradicional de comunicação e arte, passada através de gerações que, de alguma forma, continuaram explorando certas ideias musicais. Algumas idéias são novas, mas um monte de idéias estão presentes em manifestações fundamentais como o ritual, a cerimônia social, a atividade extra-consciente. Trata-se de um atavismo da natureza humana, elementos arcaicos que tem a ver com a necessidade de fazer música.”

Sunn O))) – “Alice”



Com o KTL, O’Malley se junta ao inglês Peter Rehberg (mais conhecido como Pita) para lançar-se à experimentação eletrônica, buscando recriar sobre outras bases, o clima soturno dos discos de death e black metal que o acompanham desde a adolescência. A dupla, que iniciou os trabalhos em meados da década passada, lançou em maio seu quinto álbum, simplesmente batizado como V (eMego, 2012). 

“Peter Rehberg e eu lançamos o último disco do KTL em 2009, e desde então, trabalhamos em muitos projetos, como o Pita, algumas instalações de arte e, é claro, concertos do KTL. Na verdade, nos mantivemos em atividade e fomos convidados para trabalhar em alguns estúdios europeus especializados em música eletrônica. Então, o disco resulta de uma variedade de projetos que nos tomou cerca de dois anos. Na verdade, trata-se de um álbum mais ‘democrático’ que os anteriores, e tanto o clima quanto o tom do disco testemunham o que eu e Peter fizemos juntos recentemente.”

KTL – “Phil 1”



Esta variedade se refletiu no resultado final do disco, que foi gravado em estúdios tradicionalmente ligados à música eletrônica europeia, como o EMS, em Estocolmo e o Meccas GRM, em Paris. Assim, V é talvez um dos trabalhos mais elaborados da dupla, trazendo consideráveis variações de abordagem e composição entre as cinco faixas, ora remetendo ao clima carregado dos trabalhos anteriores, ora dialogando com as dissonâncias e sonoridades eletroacústicas presentes na obra de Gÿorgy Ligeti e Eliane Radigue. A escatológica “Last Spring: A Prequel”, por exemplo, repleta de diálogos em francês, advém do trabalho de Rehberg e O’Malley com a coreógrafa e diretora de teatro Gisèle Vienne, ao passo que “Phil 1” se aproxima das experiências anteriores, dedicadas à exploração dilatada dos drones. Mas o carro-chefe reside na participação do compositor e produtor islandês Jóhann Johanson na apocalíptica “Phil 2”. Johanson compôs a orquestração da faixa e convocou a Filarmônica da Cidade de Praga, conduzida por Richard Hein, realçando o ambiente lúgubre com uma pletora de detalhes.

“Quanto a Jóhann, sempre conversamos a respeito de trabalhar juntos, e achamos que agora era a hora certa. Ele fez um arranjo para esta peça em um dos estúdios em que trabalhamos e tivemos a oportunidade de gravar com uma orquestra. Trata-se de algo muito difícil de se fazer, e por sorte tivemos esses recursos. Não estou certo de que poderíamos arranjar esta música… Certamente não faríamos o arranjo para orquestra, mas até mesmo a produção do arranjo...”

Sobre como pretendem levam esta diversidade para os palcos e, particularmente, como conduzirão o concerto no Sónar São Paulo, O’Malley demonstra a intenção de abordar sonoridades divergentes:

“No último concerto que fizemos em Moscou, no mês de março, resolvemos improvisar sobre a estrutura de uma peça antiga, composta em 2007. Não fazíamos isso em uma apresentação há muitos anos! Quando você toca em um festival como Sónar, onde há tanta música ambient e eletrônica no programa, bem como um tipo de música mais baseada no ritmo… Bem, Pete e eu provavelmente faremos algo completamente diferente (risos). Pode ser mais black metal, mais pesado... Estou apenas estimando...”

Não há dúvidas de que seu métier é a música, muito embora manifeste habilidades que não se resumem ao universo musical. Além de percorrer com desenvoltura o espectro de expressões artísticas de nosso tempo, como instalações, performances, design e experimentações de toda sorte, O’Malley foi designer de numerosas capas de disco (Onehotrix Point Never, Boris, Earth, etc.), elaborou peças e instalações com a já citada coreógrafa Gisèle Vienne, o escultor americano Banks Violette, o performer ialiano Nico Vascellari, o coletivo suíço KLAT e o cineasta belga Alexis Destoop. Não pairam dúvidas quanto ao aspecto imagético, quase cinematográfico — e, com certeza, dramático — que perpassa todos os seus trabalhos, mas ele acrescenta:

“Uma das coisas mais interessantes da música é que você pode entrar em contato com ela de muitas maneiras, não apenas através da audição ...  Sempre pensei a música como um dispositivo visual, mas também ‘físico’. A música não é simplesmente direcionada para os ouvidos, parte de seu poder de atração advém do fato de que ela estimula a imaginação de maneiras diferentes. Me surpreende o fato de que as pessoas possam ser estimuladas pela música que eu faço, mantendo uma relação ‘visual’ com a escuta. Porém, a grande ilusão é que a audição é um sentido isolado! Pois ela tem a ver também com o toque e a visão.”

Na carreira de O’Malley, a improvisação ocupa um lugar de destaque, desempenhando talvez o papel extático, “extra-consciente”, que ele reivindica para as manifestações musicais. No ano passado, o artista se apresentou completamente sozinho em uma venue em Jerusalém chamada Uganda. Desta apresentação, resultou uma fita cassete de quarenta minutos batizada Romeo, e editada pelo selo Ideologic Organ. O artista nos falou sobre como é estar em um palco completamente sozinho:

“Evitei improvisar sozinho em público por um longo tempo. Na verdade é muito assustador, porque basicamente você explora seus próprios limites. Em grupo, há uma estrutura, você pode se resguardar em suas próprias limitações. Às vezes, se você está improvisando algo que não é realmente bom, você pode se escorar em alguém como Steve Noble (risos). Quando você está improvisando por si mesmo, está nu e exposto. Sobre um projeto solo, a pergunta que me vem à cabeça é: ‘isso vale a pena não para mim, mas tem valor para a experiências das pessoas?’ Improvisar com as pessoas implica em alguma forma de comunicação, mas quando você está sozinho é outro exercício. É como assistir ao crescimento de uma personalidade. Não é que não seja prazeroso, trata-se de um desafio interessante.”

Stephen O’Malley – Ao vivo em Gênova



Pergunto a respeito da guinada considerável do Æthenor, que além de Daniel O’Sullivan e O’Malley, contou em seu último trabalho, En Form For Blå (VHF, 2011), com Kristoffer Rygg e com o baterista Steve Noble (parceiro de Derek Bailey, entre outros), com quem O’Malley dividiu recentemente o acachapante St. Francis Duo (Bo’Weavil, 2012). A mudança se deve não somente à inclusão momentânea do baterista, mas também a outros fatores.

“Em primeiro lugar, o Æthenor nunca foi realmente uma banda direcionada para as apresentações. Na verdade, fomos convidados para tocar em um festival, cerca de três ou quatro anos atrás, e Daniel O'Sullivan, que é como o líder da banda, trouxe Steve Noble para o projeto. Foi a primeira vez que tocamos juntos ao vivo e, é obvio que passou a soar diferente, porque é uma outra coisa. Os três primeiros discos do Æthenor são basicamente produções de estúdio, e falando por mim mesmo, tenho muito pouco a ver com esses discos, é algo que eu honestamente não domino. Quer dizer, eu sei quais são as partes em que eu estou tocando (risos)… Mas quando começamos a tocar ao vivo, aí a coisa ficou real, pelo menos para mim. Então, é um tipo diferente de projeto. Noble já não esta mais envolvido no Æthenor, mas, de certo modo, houve sim uma segunda geração do grupo que contou com sua presença. Ora, tocar com Steve Noble foi um prazer, e sempre que conseguimos cumprir uma tarefa diferente em conjunto é realmente estimulante!”

Stephen O'Malley, Steve Noble @ Cafe Oto 18.08.10



Para finalizar, pergunto a O’Malley a respeito do selo Ideologic Organ, distribuído pelo Mego de Peter Rehberg. Como se não bastasse sua hiperatividade como artista na música e nas artes visuais, o autor é o responsável pela curadoria e a programação visual do selo. Desde 2007, o Ideologic Organ se dedica a lançar trabalhos de O’Malley e companhia, mas também a desvendar autores misteriosos como Ákos Rozmann e Eyvind Kang. Trata-se de um trabalho em progresso, segundo as palavras de O’Malley:

“Estou tentando descobrir qual é o conceito do selo. Acho que trata-se de uma composição conceitual. Você pode ter Ákos Rozmann, que é um compositor eletrônico, e algo como Sunn O))), trabalhando em um mesmo universo. E ainda assim, tento descobrir que tipo de universo remete ao conceito do selo. Acho que ainda estamos longe de defini-lo. Estamos ainda definindo a identidade visual, trata-se de um selo diferente de todos nos quais já trabalhei. Demora um tempo até que se consolide uma identidade.”

Bernardo Oliveira
Entrevista publicada em 09 de maio de 2012 na edição portuguesa da revista eletrônica FACT Magazine.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

“memorable and forgettable”: notas sobre o silêncio ensurdecedor























_o hábito, como a fortaleza do gosto, nos leva a crer que o ruído interfere a fluência do ecossistema sonoro no qual estamos imersos. como é possível então compreender a frase de david toop, segundo a qual “o silêncio é uma espécie de ruído”? o regime de tolerância sonora ao qual estamos habituados produz a falsa sensação de estabilidade, de forma que qualquer corpo estranho induz à sensação de interferência. neste regime, alguns sons são estraga-prazeres, tornam-se corpos estranhos e ameaçadores, pequenas interposições entre nossos hábitos e a cornucópia sonora que transborda dos gadgets eletrônicos, dos meios de transporte, do som das máquinas, dos cientistas do ritmo. o hábito naturaliza de forma particular alguns desses sons, atualizando-os na escala de aceitação e tolerância do gosto médio vigente. a mobilidade da percepção é capaz de embaralhar o sentido estático que a linguagem pretende impor à experiência, produzindo o costume.

_em 2013, por exemplo, kanye west, m.i.a. e justin timberlake se utilizaram de sonoridades que há alguns anos não seriam toleradas na faixa comercial. a noise music não é algo tão recente, mas começa agora a figurar pelas bandas cariocas a ponto de recebermos agora em dezembro um festival de música de “ruído” (organizado por j-p caron e cadu tenório). por outro lado, acostumamo-nos a pensar o ruído, o barulho, como uma matéria que além de produzir interferência, se exprime em altos volumes. entretanto, o mesmo indivíduo que se aflige com o ruído, que não se deleita com a chamada noise music, tolera muitas vezes os altos volumes que caracterizam a masterização do cinema e da propaganda contemporâneas. este alargamento indica que som, silêncio e ruído são conceitos relativos, em perpétua mobilidade no plano do sentido e da experiência. o silêncio é uma espécie de ruído, na mesma medida em que o ruído pode se manifestar como uma espécie de silêncio.

_a bossa nova e, particularmente, a música de joão gilberto, foram encaradas na maioria das vezes pela historiografia e pela crítica musical brasileiras como uma operação sobre o tecido estável do silêncio. john cage e chet baker são evocados quando se fala de joão gilberto, mas para toop, joão gilberto é um “noiseiro” por definição. os ruídos produzidos por sua instrumentação e dicção singulares não são poucos, nem imperceptíveis: o dedo que se arrasta sobre as cordas do violão, a variação de volume e dinâmica na suspensão das cordas, os estalidos produzidos pela boca, gerados pelo descolamento da língua no palato, os ruídos interjetativos que ele interpõem entre os versos como forma de ressaltar o balanço do violão. ruídos em volume baixo, que se interpõem entre a sensação de estabilidade e o desgosto pela interferência, ambos destituídos da significação imprecisa que a linguagem lhes confere. para além do ruído e do silêncio, há a experiência.

_a música hoje não é somente “experimental” porque o artista supostamente trilha caminhos desconhecidos ou porque o publico é desafiado, desviado do costume. a arte nos últimos duzentos anos, mesmo a arte produzida no âmbito da cultura de massas, é experimental por definição, desprendendo-se da representação mágico-religiosa e ramificando-se sobre a diversidade da indeterminação individual. não se explica ou se reduz conceitualmente a classificações e categorias, nem se deixa penetrar simplesmente pela densidade discursiva. pensar/produzir/fruir música hoje é uma operação complexa e ao mesmo tempo automática, comunhão irregular entre o singular e o coletivo que reinvindica violenta e incessantemente a experiência de imersão. um plano de comunhão onde autoria e fruição se embaralham de forma definitiva.



















_na última quarta-feira, dia 04 de dezembro, recebemos no rio de janeiro a apresentação de david toop ao lado do trio carioca chelpa ferro no festival novas frequências. momentos nos quais pudemos presenciar a prática, a demonstração exuberante do caráter imersivo no qual esta submetida a música — e a arte — contemporânea. não se trata de algo que se possa atribuir a qualidade de “vanguarda” ou avant-garde, como que para distingui-la da cultura de massas; também não se pode falar de “música experimental”, tamanha a precisão dos gestos, dos movimentos, da execução. precisão esta que já não é fruto de experimentação, mas do adensamento progressivo de certas práticas, usos, conexões, sentimentos. durante a apresentação, lembrei por diversas vezes do que certa vez me disse fernando torres, artista e curador, responsável pela espaço/loja de disco plano b, na lapa: “eu não faço música experimental, pois sei exatamente o que estou fazendo.”

_imerso em absoluto silêncio, toop se movimenta pelo palco. encontra seu assento e saca o violão. dedilha uns acordes e interage com os sons que são emitidos por seu lap top. arranha a pele de uma caixa de bateria com gravetos, quebra-os, esmaga-os, minúcias sonoras captadas por um microfone ultra-sensível. o computador prossegue emitindo uma gama sonora indistinta, que tanto pode ser resultado de síntese digital, gravações de campo, sons naturais ou library music. duas flautas, uma guitarra preparada tocada com gravetos e baqueta de feltro, miuçalhas (moedas, pequenos sinos) completam seu aparato instrumental. texturas, diálogos improváveis entre ruído e silêncio, silêncio e ruído embaralhados, reavaliados em um horizonte que já não pode ser reduzido ao âmbito “sonoro”, mas extrapola a arte e se traduz no corpo, nos afetos, nas imagens, ate mesmo no paladar…

_com seus instrumentos “inventados”, o trio carioca chelpa ferro contribuiu decisivamente para aumentar a densidade sonora e o sentido abrangente da experiência de improvisação proposta por toop. luiz com sua guitarra tocada à moda de uma cítara; sergio utilizando primeiro o ebow, e depois um instrumento indiano apelidado como “bina”; barrão tocando o “ruim”, uma lata de lixo com cordas de cello amplificadas executada com o arco. uma intervenção suave e perspicaz de um trio capaz de criar espessas camadas de ruídos, mas que embarcaram na onda de toop, optando pelo diálogo com a fluidez acidentada da “toopografia”.




_silêncio e ruído são categorias móveis, operadas no amplo horizonte sonoro elaborado por toop e o chelpa. densidade é a palavra, mas uma densidade que não se deixa reduzir sobre nenhuma certeza discursiva. a música de chelpa e toop reivindica do ouvinte a entrega, a comunhão a que me referi acima. o espectador carregado de certezas quanto àquilo que pensa e sente a respeito da música ou do som, se viu obrigado a deixá-las de lado por uma hora e dez minutos. uma apresentação memorável e, ao mesmo tempo, “esquecível”, como ressaltou o próprio toop, logo ao sair do palco. memorável pela experiência, pelo teor demonstrativo, pela beleza exuberante. “esquecível” por nos jogar de forma implacável no oceano do som.

Bernardo Oliveira
Fotos: Eduardo Magalhães | I Hate Flash